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Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Quando Ciência e Arte se encontram...

"Você não precisa de artistas? Então me devolve os momentos bons. Os versos roubados de nós. As cores do seu caminho. Arranca o rádio do seu carro, destrói a caixa de som".


"Joga fora os instrumentos e todos aqueles quadros, deixa as paredes em branco, assim como a sua cabeça. Seu cérebro cimento, silêncio, cheio de ódio. Armas para dormir, nenhuma canção pra ninar, e suas crianças em guarda, esperando a hora incerta para mandar ou receber rajadas"


"Você não precisa de artistas? Então fecha os olhos, mora no breu. Esquece o que a arte te deu, finge que não te deu nada. Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma flor na sua blusa. Nem Van Gogh, nem Tom Jobim, nem Gonzaga, nem Diadorim",


"Você vai rimar com números. Vai dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada. E esse vazio no seu peito não tem refrão para dar jeito, não tem balé para bailar"


"Você não precisa de artistas? Então, nos perca de vista. Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma. Bom dia, para quem tem alma"


(Zélia Duncan)



Me impressionou muito o depoimento recente de Zélia Duncan e o seu poema “Vida em Branco”, transcrito acima. Nesse depoimento a Zélia começa colocando que, dentre todos os ataques, ofensas e xingamentos recebidos por ela e por tantos outros artistas nos últimos anos, uma frase dita por um dos críticos foi particularmente marcante. Essa frase, que dizia algo como “...A gente não precisa de vocês, a gente precisa de médicos, advogados, arquitetos, engenheiros, mas a gente não precisa de artistas pra nada”, foi a que realmente tocou fundo e a levou a uma reflexão maior, expressa na forma do poema acima.


O poema e a reflexão de Zélia me chamaram atenção por várias razões. Em primeiro lugar, porque me solidarizo fortemente com a classe artística, sou ligeiramente frustrado por não ter seguido carreira como músico em algum momento no passado distante (vejam aqui uma estrevista sobre isso; mas fico super feliz que meu filho mais novo, o João Pedro, esteja seguindo essa carreira e estudando atualmente na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG!). Portanto, abomino os ataques que têm sido perpetrados pelo Governo à cultura e às artes em geral, especialmente em 2019. Aliás, em tempo, vi o depoimento da Zélia antes do pronunciamento recente de Roberto Alvim, agora ex-Secretário da Cultura do Governo Bolsonaro, parafraseando Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler (isso mais uma vez para quem não acredita que estamos realmente diante de um Governo nazi-fascista; já havia chamado atenção para o problema considerando a postura da ministra Damares Alves na "Cupula da Demografia"). Mas, no contexto do nosso blog “Ciência, Universidade e Outras Ideias”, o que me chamou atenção na reação à crítica e no poema da Zélia foi a frase “...Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma”. Mundo perverso e sem graça...É isso!!!


Tenho insistido em várias postagens anteriores em uma certa “crítica” ao caráter “utilitarista” da Ciência, ou pelo menos à ênfase dada a ele em muitos casos, especialmente no contexto dos problemas que temos enfrentado no atual Governo Bolsonaro. Claro que esse componente de aplicação e de inovação tecnológica é importante e, para o bem ou para o mal (e quero sempre crer que é para o bem, pensando como um trekker), foi ele que nos trouxe à civilização tecnológica do século XXI. Temos ainda uma série de problemas para resolver, como sociedade global, mas continuo acreditando no valor positivo da constante de Condorcet, como discuti na postagem anterior. Por causa do componente utilitarista da ciência, acho que é menos provável que alguém, em sã consciência, repita uma frase como “Quem precisa de cientistas?”. Mas é cada vez mais comum ouvirmos críticas a algumas áreas mais teóricas das ciências sociais e humanidades, bem como discussões sobre “para que serve a ciência básica" (já discutimos isso anteriormente, inclusive uma das saídas mais comuns, que chamei de “argumento do bebê"). Há também um certo movimento “anti-intelectual” e “anti-científico”, mas principalmente com motivações religiosas. Será que nesses casos a ciência (básica) poderia ser vista como “ciência degenerada”, análoga à arte degenerada de Goebbels? Evolução e Ecologia, minhas áreas de trabalho, poderiam ser vistas como perigosas e contra os interesses da Nação, conforme a visão do Governo atual? Já discuti isso com mais detalhes na minha retrospectiva 2019...De qualquer modo, o ponto portanto é que essas críticas à ciência não são tão diferentes assim das críticas à arte, afinal...


Então, quero insistir que a ciência é muito mais do que o seu componente "utilitarista" e tecnológico. Isso porque fazer ciência requer encantamento, curiosidade, criatividade e visão crítica! Essas são as palavras-chave para o sucesso em ciência e são elas que devem motivar o trabalho dos cientistas, qualquer que seja sua área. Em síntese, precisamos primeiro nos encantar, nos impressionar, com um assunto ou com uma questão, e ficar curiosos sobre o que essa questão significa e como podemos resolvê-la. Depois, precisamos de criatividade para pensar e imaginar soluções ou explicações, desenvolvendo teorias e metodologias que nos permitam trabalhar com essa questão. Claro, durante todo esse processo precisamos de uma visão crítica, para não cairmos em falsas explicações e não apoiarmos explicações que são simplesmente convenientes naquele momento, sob pena de começarmos a fazer pseudociência. Então, sem essas palavras, o mundo do cientista fica, realmente, totalmente sem graça...O trabalho torna-se mecânico, repetitivo e enfadonho, abrindo espaço para tédio, frustração e infelicidade? Inveja de quem faz? Como a Zélia diz no depoimento “...os buracos (na mente), onde deveria ter arte, abstração, beleza, devaneio... você preenche com inveja, você preenche com despeito, com inveja de quem consegue fazer, de quem consegue ser feliz ouvindo uma música...”. E, no poema, “Vai dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada”.


Os cientistas precisam de liberdade para pensar, criticar e para se expressar, por isso se discute tanto a questão da autonomia da Universidade, que tem sido duramente atacada. Por isso governos fascistas, teocráticos e de extrema-direita perseguem cientistas e professores das Universidades. E perseguem também os artistas, pois as palavras-chave são as mesmas e ambos precisam de liberdade para pensar e criar. Por isso, então, me identifico totalmente com o poema quando Zélia diz “...Então nos perca de vista. Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma”.


Claro que a ciência tem um “compromisso com o real”, como dizia Popper, e estudamos questões empíricas na natureza ou na sociedade, mesmo em ciência básica. Estamos lidando com a “realidade” (ok, a relação entre teoria científica e realidade não é trivial, mas vamos assumir, por um momento, que a maior parte dos cientistas – pelo menos os cientistas naturais – são filosoficamente realistas). Isso pode ser, a princípio, um pouco diferente da arte. Mas será que, ao desencadear emoções e sensações, não temos alguma relação com a realidade? Com certeza há uma discussão profunda aí e honestamente não estou qualificado para falar das concepções teóricas e abstratas relacionadas à filosofia da arte e sua interação com o que podemos chamar de realidade. De qualquer modo, os cientistas precisam sim dar respostas e resolver problemas para compreender o mundo real, e muitas dessas ações possuem implicações práticas e aplicações tecnológicas, tudo bem...Mas toda a ciência deveria ser desenvolvida a partir das 4 palavras-chave, essa tem que ser a motivação verdadeira subjacente a ela!


O mundo da ciência não é um mundo de mil maravilhas, não quero dar a impressão de que os cientistas e os artistas vivem sempre “no mundo de Alice” sonhando o tempo todo. Apesar do encantamento e do prazer da descoberta, claro que há frustrações, falhas, erros, ansiedade, cobranças, prazos... enfim, muitas dificuldades, tanto práticas quando pessoais e psicológicas, incluindo preconceito e assédio. Não estamos isolados da sociedade, mesmo que eu queira pensar (ingenuamente, assumo...) nos cientistas de uma forma estóica...Estamos discutindo mulheres na ciência, negros na ciência, não? Mais ainda, claro que a ciência não é algo simples e exige, também, muita dedicação, muito trabalho árduo. Essa é uma crítica, inclusive, a alguns programas de divulgação científica que mostram a ciência apenas como “divertida” e “lúdica”. Há sempre muito trabalho envolvido, muitas noites mal dormidas...Muita dificuldade para se alcançar o sucesso, do mesmo modo que ocorre para quem se dedica à arte, apesar de tantos estereótipos de cientistas descabelados e artistas loucos (tente ser um virtuose no piano ou violão e vai entender o que eu digo, tanto sobre dificuldade quanto sobre frustrações...). Mas, para mim, o prazer das 4 palavras-chave sempre compensou tudo isso...Seguimos em frente!


Trabalho com ciência há muitos anos e convivo diariamente com muitos cientistas e muitos jovens que aspiram essa carreira. No meu caso, sou docente em uma Universidade Federal e, portanto, sou servidor público federal. Sendo absolutamente honesto, ganhamos um salário digno, mais ou menos equivalente ao de colegas professores e pesquisadores em instituições em todo o mundo (mas no Brasil distorcido em relação aos ganhos em outros cargos do serviço público, mas talvez o problema sejam eles e não nós; e, de qualquer modo, comparando-se com a distribuição de renda no país...). Acho que o principal problema da nossa profissão hoje não é de fato o salário, e sim as condições de trabalho e, atualmente, as perseguições ideológicas, falta de reconhecimento e o descrédito por parte do Governo e de muitos setores da sociedade. Mas digo tudo isso para ressaltar que, na verdade, fazemos ciência e ensinamos ciência nas Universidades não (só) pelo salário, mas principalmente pelo prazer de fazer isso. Como disse um colega há muitos anos, “faço o que mais gosto na vida e alguém ainda me paga por isso???”. Temos muitos colegas que são professores nas Universidades, ministram suas aulas honestamente e exercem cargos administrativos, mas não fazem pesquisa e não trabalham com ciência, de fato. Pior, alguns dizem ainda que não somos obrigados a fazer pesquisa nas Universidades, que não somos pagos para isso e que não somos cobrados nesse sentido (o que não é bem verdade, como já discutimos há muito tempo em relação à indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão na Universidade...). Também temos colegas que até fazem pesquisa, tudo bem, mas simplesmente repetem os mesmos experimentos e “resolvem” as mesmas questões, usando as mesmas metodologias e escrevendo basicamente os mesmos trabalhos que aprenderam a fazer nos seus doutorados, durante 25-30 anos de carreira! Às vezes pode até ser importante repetir e confirmar, mas de qualquer modo pode estar faltando algo...Virou uma pesquisa "burocrática", para cumprir tabela. Tudo bem, ninguém é obrigado a se encantar pela ciência ou ter prazer na descoberta, na novidade, ter curiosidade e querer inovar...To boldly go where no one has gone before?


Então, reforçando, embora nosso trabalho nas Universidades ou institutos como pesquisadores seja, principalmente a partir de meados do século XX, uma atividade efetivamente profissional, nós trabalhamos com ciência pelo também pelo encantamento e pela curiosidade. No meu caso como ecólogo e biólogo, pelo prazer de conhecer e de descobrir tantas questões importantes sobre a natureza e sobre nós mesmos. Pelo simples prazer de pensar e entender o mundo e a vida? Carl Sagan sempre insistiu nisso, no poder do encantamento da ciência. Eu acredito que isso, realmente, dá beleza à ciência e a aproxima da arte! Em algumas universidades, inclusive em Harvard, temos escolas ou faculdades de "Arts and Sciences", separadas de escolas de direito, medicina ou engenharia...Interessante!





Então, finalizando, se vocês (e aí me dirijo especialmente aos jovens docentes e pesquisadores e alunos de pós-graduação) querem ser cientistas e seguir uma carreira acadêmica, mas pensam na ciência apenas de forma utilitarista e “mecânica”, e simplesmente não entenderam a lógica dessa postagem, da relação entre arte e ciência, ou mesmo a importância das 4 palavras-chave nas suas vidas, acho que, infelizmente, vocês podem estar ingressando na profissão errada...Não deixem, como cientistas, suas vidas passarem em branco!





Arte Fractal...Imagem de Shabinh Barbara A. Lane (pixabay)

Capa: Arte Fractal...Imagem de Shabinh (pixabay)


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1 Comment


ethambarbosa
Jan 22, 2020

O texto é muito feliz em enlaçar o encantamento da arte com o da ciência, essa última nem sempre concebida como tal, mas sim como apenas racional, lógica e utilitarista. Me encantam essas aproximações que suscitam o que podemos ser como cientistas/pesquisadores é que a sociedade não percebe; somos cartesianos, mais tb lúdicos, atores sociais sensíveis a beleza que só o ser encantado perceberá com profundidade. Parabéns!


Obs. Deixo a sugestão para postagens futuras sobre uma postagem que vi ano passado no seu face que fala sobre uma palestra sobre "O que não é ecologia", acho que em parceria com algum outro ecólogo. Fiquei deveras intrigado de como definir nossa ferramenta de trabalho/encantamento com uma negação. Fica a dica.

Abraço.

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