No contexto das postagens sobre Universidade temos falado bastante em pesquisa desde o início das postagens...Falamos muito da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão nas Universidades. Mas realmente o que significa pesquisa? As pessoas às vezes falam de uma “pesquisa de opinião”, ou de “pesquisa eleitoral”; é disso que estamos falando? Em parte sim, mas essas formas de “pesquisa”, que são na verdade “enquetes”, são uma parte muito simples, muito inicial, do que queremos dizer quando falamos em “pesquisa”. Eu gosto da expressão que os meus colegas espanhóis usam, estamos falando de “investigação”. Mas usamos essa palavra mais para nos referirmos a uma investigação criminal, como vemos nos famosos romances policiais de Sherlock Homes. É isso? Ainda não, mas quase...Estamos nos aproximando um pouco mais do que queremos dizer quando falamos em “pesquisa”, e de fato um dos modelos filosóficos de como adquirimos conhecimento usa exatamente essa mesma ideia (a chamada “inferência explanatória”, ou em inglês “inference to the best explanation”). Temos então várias coisas para discutir agora, mas inicialmente temos que entender algumas coisas mais gerais sobre a própria Ciência.
Quando falamos em pesquisa estamos falando em geral de Ciência (ou seja, pesquisa avança o conhecimento científico sobre um determinado tema). Isso nos leva à ideia do que é Ciência...Quando se fala em ciência acho que a maior parte das pessoas tem alguma ideia intuitiva do que estamos falando. Muitas ideias sobre cosmologia, como o “Big Bang” e a origem do Universo, ou novos planetas sendo descobertos, com um pouco de sorte algo sobre a origem e evolução da vida, ou a descoberta de espécies ancestrais do Homem. Talvez a maior parte das pessoas identifique a ciência com cientistas de jaleco branco fazendo descobertas sobre questões mais práticas na medicina, como a cura de doenças ou o desenvolvimento de novas vacinas; ou talvez questões relacionadas à agricultura, como novas técnicas de plantio e aumento da produção de alimentos; talvez o desenvolvimento de tecnologias de comunicação ou internet. Hoje há muito esforço para que haja uma maior popularização da ciência, para mostrar realmente o que os cientistas fazem e como isso impacta a sociedade, criando essa percepção popular do que é ciência (mas infelizmente essa percepção está atualmente bastante comprometida e confundida com muitos temas “pseudocientíficos” – mas vamos discutir isso depois com mais calma...é um ponto importante!).
Então, sendo otimista, pode parecer que é simples responder a uma questão como “o que é ciência?”. Mas de fato não é bem assim, por várias razões. Primeiro, há realmente muita diferença sobre como a Ciência é entendida pelas diversas áreas do conhecimento humano hoje. Talvez mais importante, mesmo que as pessoas consigam identificar algo como “ciência”, em geral elas não sabem como esse conhecimento foi alcançado, o que abre espaço para muitas interpretações confusas e visões equivocadas sobre a pesquisa científica e seu papel na sociedade (incluindo o avanço da pseudociência...). Na verdade, é muito difícil responder a perguntas aparentemente simples como “o que é ciência?”, ou melhor, “o que nós entendemos por ciência?”, em um sentido filosófico ou histórico. Há muitos detalhes e concepções filosóficas e sociológicas complexas ai, mas acho que vale a pena tentarmos discutir algumas questões mais centrais nesse sentido.
Podemos pensar inicialmente, por exemplo, que o que diferencia a ciência de outras formas de compreensão do mundo (a filosofia e a religião, por exemplo) é a questão do “método”. Ouvimos falar muito do “método científico”, certo? Pode ser, vamos chegar lá, mas antes do método, um ponto inicial e talvez bem geral seja entender a ciência como uma forma de compreender o mundo e a realidade (só essa palavra “realidade” já poderia nos levar para uma discussão ainda mais profunda, que remonta a Platão - todo mundo provavelmente já ouviu falar do “mito da caverna” ?). Então, a ciência é uma forma de compreender o mundo, uma tradição intelectual que começa no que chamamos de “revolução científica” no século XVII principalmente associada à Física, com Galileu, Kepler e, principalmente, Isaac Newton (embora alguns, como E. O. Wilson, recuem essa história até a Grécia antiga, com o chamado “Encantamento Jônico” - a ideia de contemplar a natureza e tentar entendê-la de forma racional). A ciência moderna surge também no contexto do iluminismo de Descartes, Hume, Kant, Condorcet e tantos outros filósofos que costumamos estudar na escola, como uma forma de pensamento racional, secular, politicamente liberal e democrática, cujo objetivo maior é melhorar a qualidade de vida da pessoas (lembrem do mote da revolução francesa, “liberdade, igualdade e fraternidade”; mas esqueçam só por um minuto o “período do terror” subsequente...). A compreensão do mundo passa a ser pensado como algo expresso de uma forma sistemática e organizada, muitas vezes a partir de modelos ou equações matemáticas que podem ser testadas por meio de experimentos ou observações. Depois de uma fase inicial muito associada à Física e à Astronomia, esse modo de pensar se expandiu para várias outras áreas do conhecimento, como a Química, a Geologia, a Biologia e, posteriormente, as chamadas “Humanidades”, ao mesmo tempo em que gerou grandes avanços tecnológicos. Vejam que definir a ciência moderna como derivada da tradição intelectual do iluminismo e da “revolução científica” na Europa no século XVII não significa que não existam outras formas de conhecimento em outros locais do mundo que sejam importantes e muito interessantes (vamos discutir essa questão um pouco melhor quando falarmos das áreas do conhecimento científico e da ideia de consiliência do conhecimento).
Nesse contexto da observação e dos experimentos, ouvimos falar muito do “método científico”, algo que, aliás, não é uma coisa tão consensual assim. Na verdade, como disse Lee McIntyre em seu livro recente (The Scientific Attitude, MIT Press, 2019), se há algo com o qual a maior parte das pessoas concorda é que o método é o que define a ciência, e se há algo que os filósofos da ciência concordam (hoje) é que não existe um “método científico”. Existe muita variação de métodos entre diferentes áreas, e talvez seja mais correto dizer que não existe um único método científico (existem vários). Em algumas áreas, por exemplo, é possível realizar experimentos para testar qualquer ideia, uma abordagem que é muito eficiente para estabelecer relações causais, o que nos leva à ideia de que um dos objetivos da ciência é estabelecer relações de causa e efeito entre fenômenos, permitindo assim entender ou “explicar” esses fenômenos. Entretanto, em muitas áreas não é possível realizar experimentos, por exemplo em ciências com um forte componente histórico ou cujas perguntas cobrem grandes extensões de tempo ou espaço (cosmologia e astrofísica, climatologia, ou biologia evolutiva, só para citar alguns exemplos). Nesses casos, às vezes existem modelos matemáticos que descrevem os fenômenos e os cientistas tentam comparar as previsões dessas equações ao que se observa no mundo real. Ou então podemos comparar várias explicações (ou várias equações) que tentam descrever um fenômeno e tentar achar a explicação que seja mais convincente, ou mais plausível, ou mais simples (o que se chama de “princípio da parcimônia”, ou “princípio da economia da explicação”; vejam aqui um artigo nosso publicado recentemente e discutindo esse princípio na área de Ecologia e Biodiversidade).
Mas talvez um ponto que unifique melhor a ciência é pensar em teorias. As teorias são arcabouços conceituais que nos ajudam a entender, explicar ou predizer um fenômeno e que podem, por meio da construção de modelos ou hipóteses derivadas delas, ser contrastadas com o que observamos no mundo real. Se as evidências estão de acordo com as previsões da teoria, podemos continuar a aceita-la, e em geral entende-se que quanto mais testes forem feitos, mais consistente será uma teoria, e podemos “confiar” mais nela (embora essa maior confiança à medida que testamos uma teoria possa parecer óbvia, essa é de fato mais uma questão polêmica...). Mas o ponto importante é que, desse modo, as teorias vão gradualmente mudando e sendo aperfeiçoadas à medida que novas evidências sobre um fenômeno vão aparecendo. Isso garante que a ciência está em constante mudança. Mas há vários “detalhes” em todo esse processo.
Esse é um ponto realmente interessante. A grande maioria dos cientistas e filósofos da ciência entende que as teorias são “provisórias”, que elas não representam necessariamente a “realidade” (e também existe muita discussão filosófica sobre qual o significado da confirmação de uma teoria com dados do mundo real). Às vezes ouvimos algo como “mas os cientistas não sabem realmente, isso é só uma teoria”. Essa frase é normalmente usada em um contexto pejorativo, no sentido de não acreditar ou não aceitar a teoria porque ela não é, necessariamente, “verdade” ou não foi “confirmada”. De fato, ela não é realmente “verdade”, e na melhor das hipóteses, filosoficamente pensando, os cientistas mais otimistas acreditam que ela é uma boa “aproximação da verdade”. Mas, vejam, realmente isso é tudo que temos na ciência! É a explicação mais honesta que temos para a realidade, no sentido de ser coerente com as evidências empíricas, vindas da observação dos fenômenos que queremos estudar, e no sentido de não ser simplesmente a explicação que nós “desejamos”. Assim, embora a frase “é apenas uma teoria” esteja correta, o problema está em usá-la de modo pejorativo ou crítico, inclusive porque isso releva que a pessoa não entende como a ciência funciona. Os cientistas continuam trabalhando com uma teoria, utilizando essa teoria para fazer predições sobre novos fenômenos, ou fazendo aplicações práticas (que reforçam que a teoria “funciona” no mundo real) até que uma teoria melhor apareça. Essa é a beleza da ciência, e por isso ela não tem um caráter dogmático!
E há ainda uma questão interessante aqui: como surgem as teorias? Elas podem vir das observações, ou seja, vamos acumulando informação a partir das observações do mundo natural ou dos experimentos que fazemos e, a partir de um certo ponto, conseguimos generalizar e passamos a usar essa teoria para prever novos fenômenos relacionados. Chamamos essa maneira pela qual as teorias surgem de “indução”. Ou então essas teorias podem vir de pressupostos e de um raciocínio matemático, que produzem então uma ideia sobre como o mundo funciona e que podemos colocar à prova. Esse é o método dedutivo. Existe uma boa discussão sobre qual desses modos de origem das teorias é mais apropriado ou foi usado pelos cientistas ao longo da história. Mas se pensarmos apenas nos modos como surgem as teorias, não podemos dizer que a teoria é exclusiva da ciência ou que o fato de chegarmos a uma teoria garanta que estamos realmente fazendo ciência (afinal, podemos ter teorias pseudocientíficas...). É preciso dar mais um passo e pensar em como colocar as teorias à prova! Como já disse acima, essa também é uma longa discussão que temos que fazer posteriormente...
Isso nos leva ao trabalho de um dos maiores filósofos da ciência do século XX, o austríaco Karl Popper (1902-1994). Popper era um forte defensor da ideia da dedução e insistiu que a indução não é um modo válido de desenvolver teorias (lembrando do chamado “problema da indução” de David Hume). Mais importante, ao definir como a ciência deveria funcionar, estabeleceu um “critério da demarcação”, com o qual poderíamos dizer o que é ou não ciência. Para Popper nunca é possível confirmar uma teoria, já que não podemos ter certeza de que, em algum momento no futuro, uma nova observação seja contra ela (e por isso a indução não seria válida). Por outro lado, podemos buscar no mundo real fatos que sejam contra a teoria, e assim podemos “refutá-la”. Ou seja, nunca conseguimos realmente dizer que uma teoria é verdadeira, mas podemos com certeza dizer que ela é falsa (se fazemos uma experimento, por exemplo, que não a confirma). O critério de demarcação, portanto, vai dizer que uma teoria é científica se ela é capaz de ser falseada, ou seja, se ela diz precisamente em que condições de teste empírico nós vamos concluir que a teoria está errada. Esse é o princípio da falseabilidade que é, se pensarmos bem, contra-intuitivo para a maioria das pessoas. As pessoas sempre pensam que uma “boa” teoria é uma que é muito confirmada e, de fato, isso pode fazer sentido em um primeiro momento. Mas se as teorias são tão confirmadas até um ponto em que elas se tornam “verdade”, qual a diferença da teoria para um “dogma” (religioso, por exemplo)? Então, para Popper uma boa teoria é aquela que pode ser (potencialmente falseada)...Se uma teoria é capaz de explicar tudo, qualquer fenômeno naquela área, muito provavelmente ela não é científica, pois ela chega a um conhecimento absoluto, que de fato não existe na concepção da ciência.
Se a teoria passa em um teste desse tipo, Popper dizia não que ela foi confirmada, e sim que ela foi “corroborada”. Ou seja, não sabemos que se ela está realmente correta, mas é o melhor que temos para o momento e que podemos, para fins práticos, continuar a trabalhar com ela. Ou seja, podemos acreditar (provisoriamente) nela e avançar o conhecimento. Por isso dizemos que nunca chegamos, com a ciência, na verdade, dizemos que no máximo temos uma “boa aproximação dessa verdade”, e que as teorias são sempre provisórias. Essa diferença entre verificar uma teoria por sua negação (em potencial) e não por sua confirmação é um ponto sutil, mas importante para entendermos como a ciência pode funcionar, como expliquei acima. Embora talvez esse seja o ponto mais controverso da filosofia Popperiana (ou seja, a ideia de que quando uma teoria não é falseada ela não ganha credibilidade...), temos que reforçar que essa visão das teorias como “provisórias” é a força da ciência, e não sua fraqueza.
Claro, a ideia do critério de demarcação não é tão simples e a visão Popperiana é, de certo modo, considerada ingênua e pouco operacional atualmente. Na verdade, muitos dos elementos da distinção entre ciência e não-ciência, e atualmente entre ciência e pseudo-ciência, é bastante complexa. Quando Popper dizia, no contexto dos testes de falseabilidade, que um determinado campo não era “científico”, isso não significava algo pejorativo. Por exemplo, em um dado momento, Popper disse que o Darwinismo, tal qual pensado e desenvolvido nos anos de 1950, não era de fato ciência, mas um grande “programa metafísico de pesquisa” (no seu livro Conhecimento Objetivo). Embora ele tenha depois voltado atrás nessa distinção, de fato houve algumas críticas conceituais importantes que mostraram que, em muitos casos, os biólogos não estavam de fato testando seleção natural e adaptação, mas simplesmente “interpretando” a evidência empírica à luz da teoria darwiniana (vejam o artigo hoje clássico e ainda polêmico de S. J. Gould e Richard Lewontin, The spandrels of San Marco and the Panglossian paradigm: a critique of the adaptationist programme, publicado nos Proceedings da Royal Society em 1979).
Hoje a situação se torna mais complexa porque, de fato, existem problemas sérios causados por pseudociência e negacionismo científico, de modo que o problema da demarcação tão explorado por Popper passa a ser novamente importante! A ideia recente de Lee McIntyre em The Scientific Attitude é que todos os critérios “objetivos” ou “metodológicos” que temos terminam falhando em algum momento, mas que de fato o que importa nesse sentido para definir ciência é, em última instância, a atitude diante da evidência! Essa ideia é muito interessante porque inclusive nos remete de volta a toda a visão iluminista e mesmo às visões clássicas da Grécia antiga. Também está um pouco ligada à visão Popperiana de que uma teoria deve fazer predições "ousadas" e mais "arriscadas", no sentido de que elas teriam assim mais chances de serem refutadas (mas se não o forem, o ganho para o conhecimento seria muito grande!).
Mas mesmo nesse sentido da atitude, não podemos esquecer que os cientistas são seres humanos e que trabalham em um contexto social, possuem uma trajetória pessoal, com variações psicológicas, educacionais, e em termos de bagagem ideológica e religiosa. A visão de Popper é, em vários sentidos, muito idealizada e não leva em consideração o contexto social no qual a ciência acontece. A partir dos anos de 1960-1970 os filósofos da ciência começaram cada vez mais a pensar nesses aspectos sociais e comportamentais que permeiam a atividade dos cientistas. Nesse contexto, o autor mais conhecido é certamente Thomas Kuhn (1922-1996). O livro de Kuhn, “A Estrutura das Revoluções Cientificas” publicado em 1972 sugere que, na verdade, a ciência avança em um processo de duas etapas. Na maior do tempo, os cientistas estão trabalhando no que ele chamou de “ciência normal”, na qual não há grandes mudanças de concepção e o que acontece é a resolução de problemas práticas, testes de algumas ideias, e todos os cientistas concordam com os princípios fundamentais e com as teorias que existem em uma certa área do conhecimento. Kuhn colocou que os cientistas estão trabalhando imersos em um paradigma. Mas, à medida que o conhecimento vai se acumulando dentro desse paradigma, algumas coisas estranhas podem começar a acontecer, as teorias começam a falhar. Há um período de crise, e nesse momento algum cientista propõe um novo paradigma, havendo então uma revolução científica.
O livro de Kuhn e suas ideias se tornaram tão difundidas que a expressão “mudança de paradigma” se tornou algo bastante comum na nossa sociedade e na cultura popular, mesmo fora da ciência e da academia. Na realidade, apesar da influência, houve muitas reações ao livro de Kuhn e à ideia de que os cientistas não estão, de fato, muito conscientes das suas atividades e que trabalham simplesmente seguindo as tradições em uma época. A própria ideia de paradigma, em um contexto científico, em termos de grandes teorias unificadoras com as quais todos os cientistas concordem, é algo bastante controverso...Sempre há grupos de cientistas que pensam de forma diferente e forma grupos que disputam a primazia de certas teorias. Outros filósofos, como Irme Lakatos e Harry Laudan, por exemplo, desenvolveram versões talvez mais interessantes de teorias da ciência “de dois estágios”, mas nas quais os paradigmas são substituídos pelas ideias de “programas de pesquisa” (no caso de Lakatos) ou “tradições de pesquisa” (no caso de Laudan). Mas, de qualquer modo, é muito comum ouvirmos, no nosso dia-a-dia como cientistas, as pessoas falando em paradigmas no sentido de ideias gerais mais aceitas, sem saber exatamente o que Kuhn queria dizer (o que novamente reforça a influência difusa do seu livro).
Assim, houve muitos avanços na filosofia e na sociologia da ciência desde Popper e Kuhn, e muitas de suas ideias foram reformuladas ou ampliadas. Por exemplo, depois de Kuhn a sociologia da ciência e a questão de como a história da ciência determina os interesses de pesquisa ganhou muito destaque. Realmente, hoje é difícil deixar de pensar que existe um forte componente social e ideológico na atitude dos cientistas, claro! De fato, não podemos ignorar as implicações sociais da ciência (e principalmente da tecnologia derivada dela), já que a agenda de pesquisa e suas prioridades têm que ser definidas em um contexto político, ético-filosófico ou ideológico. Quais são as perguntas científicas que devem ser respondidas? Quais são as mais importantes? O que podemos fazer (com a tecnologia) mas, de fato, não devemos fazer? A ciência consegue resolver problemas, mas ela em si não é capaz de definir quais problemas são prioritários. Entretanto, a pergunta importante é: será que esse contexto social afeta o próprio conhecimento científico?
Um dos problemas principais dessa discussão sobre o contexto social da ciência é que, em alguns casos, passou-se a questionar se o próprio conhecimento científico seria dependente do contexto social. Ou seja, será que a existência de um fenômeno testado ou verificado por uma teoria científica é “real” ou ele é simplesmente consequência da estrutura social daquela área do conhecimento? Se for isso, as afirmações e testes da ciência não são diferentes de qualquer outra forma de conhecimento ideológico ou religioso, o que abre espaço para um “relativismo” científico (que derivou do chamado relativismo cultural, que me parece certamente válido). Embora essa discussão seja importante e antiga (de fato, que remonta aos tempos de Platão e Aristóteles na Grécia Antiga) e realmente pertinente em algumas áreas do conhecimento, especialmente nas chamadas “ciências humanas”, ela abre espaço para uma visão “relativista” da ciência que pode ser danosa (vamos discutir em uma próxima postagem a questão das “áreas” da ciência). Pior, vemos que, em alguns casos, esse relativismo abriu espaço para a difusão de ideias pseudocientíficas que servem a interesses políticos, ideológicos e religiosos, um assunto também importante ao qual devemos retornar quando falarmos de divulgação e comunicação científica. Mas eu entendo que os cientistas (naturais) tendem a separar o que às vezes se chama de “contexto da descoberta” e “contexto da justificativa” dessa descoberta, expressões que foram desenvolvidas por filósofos da ciência do início do século XX (uma distinção não muito clara, mas que pode ajudar especificamente nesse caso). Isso quer dizer que, mesmo que um cientista faça uma descoberta em um contexto social específico que seja social ou politicamente intolerável, isso não afeta o conhecimento “por si”. Por exemplo, o fato da ciência moderna ser, na realidade, uma construção intelectual de homens brancos europeus do século XVII e XVIII, fortemente associada ao colonialismo europeu e à expansão do capitalismo invalida ou coloca “em cheque” a mecânica Newtoniana? (aliás, leiam uma discussão excelente sobre isso no Sapiens, do historiador israelense Yuval Harari).
Ainda no contexto mais sociológico, outro aspecto importante sobre a ciência e que precisamos manter em mente é a questão dos valores dos seus “valores”, que também começaram a ser discutidos por cientistas, filósofos e sociólogos a partir de meados do século XX (ou mesmo antes, se pensarmos no próprio iluminismo). O sociólogo da ciência norte-americano Robert Merton, ainda nos anos de 1940, sugeriu que a ciência possui quatro valores, ou princípios, mais importantes, que são: o “universalismo”, o “comunismo”, o “desinteresse” e o “ceticismo” organizado. Pelo universalismo, o conhecimento científico não está ligado a questões sociais ou ideológicas e independeria do contexto social do pesquisador (não existiria uma ciência brasileira diferente da inglesa, por exemplo). O comunismo sugere que não deve existir propriedade do conhecimento científico, que ele seria um bem comum da Humanidade, ao mesmo tempo em que o cientista trabalharia sob um princípio de desinteresse, para ampliar esse bem comum (embora posteriormente Merton tenha acrescentado que o cientista trabalha motivado por reconhecimento e de forma não tão desinteressada assim...afinal, temos que ganhar algo individualmente, sob um ponto de vista Darwiniano). Finalmente, o ceticismo organizado em diferentes níveis é que permite, como discutimos anteriormente, que as teorias possam ser criadas, testadas, discutidas e, eventualmente, substituídas. Houve, certamente, muitos avanços em termos de sociologia da ciência e a visão de Merton possa ser de fato considerada ingênua, claro! Sabemos que embora as teorias em si não sejam dependentes do contexto social (na Biologia, por exemplo), não é estranho pensarmos que as prioridades de pesquisa, ou mesmo a importância dada a uma teoria ou outra, dependem do contexto social. Sabemos também que a ideia do comunismo está bastante comprometida por interesses comerciais e governamentais na tecnologia, e que há toda uma legislação e práticas ligadas à defesa da propriedade intelectual (patentes, por exemplo). Nem sempre os cientistas são tão céticos, e muitos tendem a ignorar evidências que vão contra suas teorias favoritas, comprometendo a questão da atitude científica. Mas, aceitando essa ingenuidade e reconhecendo que a ciência é uma atividade humana, eu acho que pode ser interessante resgatar esses “valores mertonianos”, pelo menos no sentido de mostrar que, idealmente, a ciência tem valores podem fazer com que ela seja um instrumento importante para melhorar a Humanidade (caso estes fossem efetivamente respeitados). Será que podemos pensar na ciência como uma “entidade” independente (ou pelo menos parcialmente) dos cientistas e existindo de forma idealizada? Vejam que existe a mesma discussão às vezes em um contexto de religião, quando dizemos que o fato de um padre ser condenado por abuso sexual não afeta a concepção religiosa do Cristianismo “per se”.
Finalizando, acho que o que apresentei rapidamente acima pode nos dar uma visão geral sobre o que é ciência. Não é uma questão simples, como coloquei no início...É curioso que, embora existam muitas coisas importantes e interessantes em termos de história e filosofia da ciência e sobre a metodologia da pesquisa científica, a maior parte dos textos introdutórios para a graduação ou mesmo pós-graduação, se resumem, em grande parte, a uma discussão contrastando Popper e Kuhn e sobre o “formalismo” da ciência (o que são teorias, o que são hipóteses e como contrastá-las com a evidência empírica). Sem problemas, temos mesmo que começar em algum lugar... Mas preciso chamar atenção para o fato de que, infelizmente, a maior parte dos cursos de graduação (e mesmo pós-graduação) em muitas áreas científicas e tecnológicas não possuem em suas matrizes curriculares disciplinas de filosofia e história da ciência. Há um senso muito forte de que a ciência deve ser “operacional”, e muitas vezes valorizada apenas ou principalmente se for aplicada e tecnológica, o que torna muita da discussão acima simplesmente irrelevante (para não dizer entediante...). Disciplinas de “metodologia da pesquisa” são talvez um pouco mais comuns, mas ai a discussão conceitual é em geral ainda mais pobre (se reduzindo a ensinar os alunos a escrever relatórios técnicos, monografias ou trabalhos “científicos” e a formatar referências bibliográficas seguindo normas técnicas...). Mas a ideia de ampliarmos os cursos de filosofia, história e metodologia da pesquisa científica é que os cientistas estejam realmente conscientes do seu papel e compreendam o contexto em que trabalham, e não sejam apenas de técnicos repetindo experimentos ou testando modelos que aprenderam com seus professores.
Comentarios