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Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Podemos confiar na Ciência?

Atualizado: 26 de jun. de 2021


If You Say ‘Science Is Right,’ You’re Wrong

(Naomi Oreskes)





Desde o início de 2020 temos acompanhado na mídia e nas redes sociais muitas discussões sobre a importância da ciência para a sociedade e sobre a necessidade de usar as evidências científicas no combate à pandemia. Isso se tornou ainda mais importante agora na CPI do Senado. Os senadores governistas continuam insistindo na ideia de tratamento precoce e que o isolamento social não é capaz de controlar o avanço da pandemia, em uma tentativa desesperada de reverter o quadro óbvio que vai se desenhando no qual as atitudes genocidas do Presidente Bolsonaro são, desde o início da pandemia, a principal causa da situação calamitosa em que se encontra o Brasil hoje (alguém em sã consciência tinha alguma dúvida sobre isso?).


Na verdade, a importância de seguir a evidência científica no combate à pandemia pode parecer algo óbvio para a grande maioria dos leitores do “Ciência, Universidade e outras Ideias”, e a resposta curta e resumida à pergunta do título da postagem seria portanto obviamente SIM. Podemos confiar na ciência como forma de resolver muitos problemas da sociedade, como a pandemia. Mas, por outro lado, é impossível ignorar que há uma parcela considerável dessa sociedade que continua a insistir nas teses negacionistas e a apoiar o presidente, mesmo diante de toda a evidência científica sob seus olhos. Então, isso significa que talvez uma resposta mais longa (e bem mais tortuosa...) seja necessária para entendermos por que a resposta é SIM e, na realidade, o que significa "confiar". Talvez seja preciso admitir que parte do problema passa pela falta de compreensão, mesmo entre os cientistas, de como a ciência funciona.


Temos discutido bastante aqui no blog já há muito tempo diversas questões ligadas à pseudociência e negacionismo, especialmente no contexto de evolução biológica, mudanças climáticas, do movimento anti-vacina e da pandemia da COVID-19. Ouvindo alguns dos depoimentos e discussões na CPI esses dias, fiquei me questionando o seguinte: se uma parcela considerável da sociedade apoia visões pseudocientíficas ou negacionistas em relação a um tema tão próximo de nós quanto a pandemia, algo que está no nosso dia a dia e que é relativamente fácil e simples de entender, o que podemos esperar de temas bem mais complexos e cuja evidência está bem “distante” da nossa realidade?


Digo que a pandemia é um problema científico “simples” no sentido de que, por mais que a relação entre o SARS-COV2 e a população humana seja influenciada por diversos fatores biológicos e sociais interagindo de forma complexa, estamos falando de ecologia de populações. Podemos construir modelos matemáticos ou computacionais que nos permitem entender e predizer razoavelmente bem a progressão da pandemia e avaliar que fatores são mais ou menos importantes para sua progressão em determinados momentos. Podemos fazer experimentos e chegar a um consenso, por exemplo, de que cloroquina ou ivermectina não possuem efeito sobre a COVID (e chegamos a essa conclusão tanto porque os experimentos não mostram nenhum efeito empírico quanto porque não há mecanismos que sugiram por que esses efeitos poderiam existir; vejamos abaixo). Rapidamente se percebeu que usar máscaras (de qualidade) reduz a transmissão de um vírus respiratório, o que, pensando bem, é algo bem intuitivo, mas havia dúvidas quanto à possibilidade de maior transmissão por outros meios... O mesmo podemos dizer do distanciamento social, já que estamos falando de um vírus que se transmite pelo contato entre as pessoas; se as pessoas se isolam ou se distanciam, isso naturalmente diminui a probabilidade de contágio! Claro, há muitos detalhes técnicos na hora de construir um modelo para prever a trajetória da pandemia e estimar os parâmetros demográficos de forma acurada, pois vários fatores podem dificultar a compreensão das trajetórias de forma imediata (o atraso nas notificações, por exemplo). Mas depois de mais de um ano de pandemia, as respostas para todas essas dúvidas e incertezas vão ficando razoavelmente claras.


Então, se mesmo assim essas questões causam polêmica e justificam, por exemplo, uma CPI no Senado Federal, o que dizer de questões maiores, mais distantes do nosso dia a dia e que implicam na compreensão e abstração de eventos em escalas de espaço ou tempo muito díspares? Estamos falando de algo como a existência e os mecanismos envolvidos na evolução biológica durante milhões ou bilhões de anos, ou o efeito das mudanças climáticas que aconteceram há 20 mil, ou como estará a situação do planeta Terra daqui a 100 anos, no futuro. E o que dizer, por outro lado, de questões “menores” em termos de escala, como a natureza da matéria e as bases bioquímicas e moleculares da vida, o código genético e a regulação da expressão dos genes, bem como aplicações biotecnológicas envolvendo a manipulação de características de embriões ou o desenvolvimento de organismos transgênicos? Nada disso faz parte do nosso dia a dia e da nossa experiência sensorial corriqueira, da nossa percepção intuitiva, digamos assim, da natureza. Em muitos casos esse conhecimento científico chega a ser contraintuitivo! Será que conseguimos comunicar bem como essas ideias são avaliadas e desenvolvidas, ao ponto de convencer a sociedade sobre a sua validade?



Como as pessoas entendem a questão “O que é ciência”?


Diante de tanto negacionismo e confusão, a ideia mais simples e intuitiva dos cientistas e divulgadores da ciência é atribuir a “culpa” da falta de compreensão à ignorância, falta de educação básica e cultural em um sentido amplo, ou uma visão “ultrapassada” e fundamentalista da religião que bloqueia certas concepções. Isso é em grande parte verdade, mas se fosse tão simples assim não esperaríamos problemas tão grandes com as questões mais intuitivas e mais empíricas e mais próximas do nosso dia a dia, com alto impacto social, como as questões relacionadas à COVID. Claro, não podemos ignorar as questões mais complexas do negacionismo e difusão de fake news, mas talvez haja ai também um problema maior de credibilidade...Além disso, precisamos olhar com mais calma para o que estamos divulgando em relação à própria ciência e nos perguntarmos por que estamos falando e as pessoas às vezes não estão ouvindo? Jogamos a culpa nos outros fatores, mas há uma questão mais ampla para responder antes de tudo: por que as pessoas devem realmente confiar na ciência? Existem várias discussões importantes que temos que ter coragem de fazer e acho que o livro recente de Naomi Oreskes, geóloga e professora de história da ciência em Harvard, é um excelente começo para aqueles interessados nessa questão, com muitas provocações! Vejam a epígrafe logo no início da postagem, do título de um ensaio recente publicado na Scientific American: If You Say ‘Science Is Right,’ You’re Wrong. Claro que Naomi Oreskes não vai defender aí uma visão anticientífica ou negacionista, muito pelo contrário! Mas o que ela quer dizer que essa provocação?





A resposta à questão “devemos confiar na ciência?” é óbvia para nós cientistas, pois vivemos em uma civilização totalmente dependente de tecnologia cuja base é, em última instância, o conhecimento científico. É uma questão quase trivial e, como eu mesmo já coloquei várias vezes aqui, acho que gera o que chamei de “paradoxo da divulgação científica”: ou seja, se vivemos em uma civilização tecnológica e imersos na ciência, por que temos que lidar com tanto negacionismo e pseudociência e convencer desesperadamente a sociedade da importância da ciência? Sendo assim, achamos que a pergunta é irrelevante e nem pensamos em formulá-la. Temos apenas que deixar que a sociedade, ao ser “educada” e informada, entenda o que estamos falando, e sempre achamos que dar mais “conhecimento” à sociedade vai resolver o problema. Mas já discutimos aqui que o problema é mais complexo e mais fundamental. E Naomi Oreskes procura, em seu livro, responder exatamente à essa questão “trivial”, e ai vemos que ela não é nada trivial...Como ela coloca, acho que temos vários pontos importantes para discutir em termos de como pensamos na ciência e como colocamos a questão para a sociedade para realmente entender por que podemos, ou devemos, confiar na ciência.


Em primeiro lugar, em relação ao "paradoxo da divulgação cientifica", há na realidade um desacoplamento entre ciência (em termos de questões fundamentais) e tecnologia, de modo que as pessoas não associam necessariamente as duas coisas (isso seria a origem do paradoxo). Eu mesmo sempre pensei dessa forma e inclusive sempre entendi que os “valores” da ciência e tecnologia são bem distintos, mesmo antagônico em alguns casos, e os valores por trás do desenvolvimento tecnológico nem sempre honram as nossas melhores tradições estóicas e iluministas. Entretanto, pensando bem, ciência básica, aplicada e suas aplicações industriais ou tecnológicas formam na verdade um “continuum”. Essa separação foi gradualmente estimulada pelos próprios cientistas e filósofos da ciência a partir dos anos 1950, em uma tentativa de se distanciar das atrocidades ligadas ao desenvolvimento tecnológico após as duas grandes guerras (falamos sempre dos nazistas, inclusive aqui, mas não podemos esquecer de que quem jogou as duas bombas nucleares em cidades intactas no Japão foram os aliados...não tem nenhum santo nessas histórias). A corrida espacial e as frigideiras de teflon, que já discutimos aqui também e que são o meu exemplo favorito de "miopia" da visão puramente tecnológica e utilitarista da ciência, só ocorreu porque tínhamos a Guerra Fria entre USA e USSR. A própria internet e toda a tecnologia de GIS, fundamentais à civilização humana no século XXI, se originaram também como projetos militares...Então, agora queremos que a sociedade entenda essa associação, sendo que nós mesmos forçamos esse distanciamento há uns poucos anos atrás para manter a nossa consciência tranquila? Agora queremos resgatar a associação para usar o avanço tecnológico como argumento contra a pseudociência e o negacionismo? Tudo bem, sem problemas, voltamos atrás, mas vamos ter que fazer alguns mea-culpa no meio do caminho. Nesse sentido, também não faltaram teorias que foram “comprovadas cientificamente” no passado e que justificaram o racismo, o sexismo e a eugenia. Alguns vão dizer que não eram bem “teorias científicas”, pelo menos não na visão moderna mas, de todo modo, eram sim a visão cientifica da época. E esse é o ponto-chave do problema...Se isso aconteceu no passado, então até que ponto podemos dizer que a ciência está (sempre, ou quase sempre) certa? Existem vários pontos importantes e vários níveis nessa discussão, mas entender isso pode estar na base da nossa capacidade de convencer a sociedade da credibilidade da ciência em um dado momento.


Em muitos sentidos, a visão que a sociedade tem sobre como a ciência funciona (e isso inclui a maior parte dos próprios cientistas) foi desenhada a partir das concepções dos positivistas e empiricistas lógicos do início do século XX. Nessa visão, a ciência - e aí estamos falando principalmente das ciências naturais - tem por objetivo encontrar a “verdade” e que isso ocorre independente de quaisquer outros fatores sociais, econômicos, políticos, culturais etc. Falamos da ciência como conhecimento “objetivo”, conhecimento “positivo” (daí vem o nome “positivismo”, criado por Auguste Comte no século XIX). Esse conhecimento está puramente baseado na evidência, que por sua vez é inquestionável quando estabelecida de forma lógica e racional, independente de opiniões. Mesmo quando os cientistas reconhecem que uma teoria científica é provisória e que o conhecimento é dinâmico, isso na verdade é mais retórico, algo como uma “falsa modéstia”; a percepção dos cientistas em geral é que quanto mais conhecimento acumularmos sobre um fenômeno mais próximos estaremos da “verdade” subjacente a ele. Mas isso não é tão simples assim e essa visão, na melhor das hipóteses, representa apenas uma parte do que podemos chamar de “conhecimento científico” hoje, estando restrita a questões específicas e particulares. Os filósofos da ciência têm discutido fortemente várias questões associadas a isso nos últimos 50 anos ou mais...


Podemos voltar à questão da pandemia, como exemplo, e mostrar que existem, entretanto, certos "gradientes" e bem mais de 50 tons de cinza nessa concepção de ciência. Por exemplo, podemos fazer um experimento para determinar que a cloroquina não funciona para tratar a COVID-19, a partir de protocolos bem estabelecidos que me permitem objetivamente chegar à essa conclusão empírica, ou seja, é o que os “dados mostram”. Grupos de pacientes tratados com cloroquina não se recuperam melhor ou não morrem em menor proporção do que grupos que não receberam esse tratamento, isso na melhor das hipóteses (de fato, temos efeitos colaterais complicados...). Mas vejam que, mesmo neste caso simples, temos algumas questões para pensar. Quem definiu esse protocolo? Será que ele é realmente confiável? Será que pensamos em todos os vieses que podem atrapalhar nosso experimento e levar a conclusões espúrias? Os grupos controles foram estabelecidos de forma coerente e será que definimos a amostragem de forma correta e balanceamos os erros (Tipo I e tipo II) de nossos testes estatísticos? Qual a variável resposta que queremos avaliar (redução de mortalidade, sintomas mais leves?). Claro, na área experimental essas questões “em si” são estudadas e testadas há muito tempo e é possível chegar sim a um consenso claro em relação a “desenhos experimentais” e protocolos para pesquisa altamente “confiáveis” ou “adequados”. Ótimo, tudo certo, mas só quero chamar atenção que esses protocolos não são “reais”, eles são um consenso entre os pesquisadores, que definiram que isso é, honestamente, o melhor que podemos fazer e que, quando aplicados adequadamente, esses protocolos e desenhos têm dado respostas que funcionam na prática.


Mas o fato de termos estabelecido esse conhecimento sobre experimentação não garante, na prática, que todos os cientistas e pesquisadores SIGAM totalmente esses protocolos e que entendam todas as nuances envolvidas no seu desenvolvimento. Na realidade, ironicamente em muitas dessas áreas mais experimentais existe uma enorme deficiência em conhecimento de estatística por parte dos pesquisadores, o que pode gerar grandes problemas. Qualquer um que tenha ministrado disciplinas de bioestatística nas áreas biológicas e da saúde pode atestar o enorme desinteresse geral pelo assunto, e não é de surpreender que tantos médicos continuem receitando cloroquina e outros medicamentos por pura ignorância de questões básicas de experimentação (outros por má-fé, claro...). Não estamos falando de questões matemáticas ou estatísticas profundas, na verdade são coisas básicas em termos conceituais mesmo. De qualquer modo, por isso mesmo devemos, quando possível, combinar vários estudos sobre um tema usando o que chamamos de técnicas de meta-análise que permitem generalizar as conclusões e dar inclusive mais peso, direta ou indiretamente, para aqueles estudos que usaram protocolos mais adequados (e, no caso, mostrando que a cloroquina, por exemplo, NÃO funciona...). Temos inclusive o que se chama de “pirâmide de evidência”, como apresentada na figura (simplificada) abaixo, na qual a meta-análise encontra-se no topo, com uma evidência mais forte, enquanto a opinião ou relatos de casos especialistas e individuais é uma evidência fraca. A ideia, portanto, é que, com todos os protocolos, deveríamos gradualmente ampliar nosso conhecimento sobre aquele problema “subindo” a pirâmide de evidência. Vejam que a ideia da pirâmide também serve para mostrar que, embora uma revisão sistemática ou meta-análise forneça uma evidência mais consistente e robusta, ela é bem mais difícil de obter (estudos assim seriam mais raros). No extremo oposto, temos muitos especialistas que poderiam dar suas opiniões, mas aí temos que ser mais cautelosos sobre a validade dessas opiniões, como vamos discutir a seguir.





Em resumo, o queremos com tudo isso é estabelecer da forma mais inequívoca relações de causa e efeito que possam ser generalizadas. Em outras palavras, quando esse tratamento é aplicado (causa) temos uma redução de mortalidade (efeito). Com um delineamento experimental adequados conseguimos mostrar que essa relação causal não é um artefato de outros fatores que não estamos levando em consideração e que não percebemos. Descartando esses fatores, teremos menos problema para generalizar as conclusões e aplicar esse tratamento de forma mais geral na população. Tudo certo, não há nenhum problema em relação ao que está colocado acima, isso está claro e “funciona” (mesmo assim isso é, em grande parte, o que está sendo discutido na CPI em termos de ciência). Mas vejam que estamos lidando com um “padrão”, algo empírico (um tratamento que funciona ou não) e uma relação direta de causa e efeito, algo relativamente simples e observável.



Teorias Científicas: Realismos e Antirealismos


Continuando o raciocínio, vamos supor que encontramos um tratamento que “funciona” para uma dada doença. Fazemos experimentos e analisamos os dados utilizando os protocolos adequados e somos efetivamente capazes de demonstrar que pacientes que receberam esse tratamento tiveram, por exemplo, sintomas mais leves ou menor mortalidade para a COVID do que o grupo controle que não recebeu o tratamento (aliás, esse é o caso de TODAS as vacinas para a COVID que estão sendo usadas no Brasil, com maior ou menor grau de eficiência). Sabemos que esse tratamento então “funciona”, mas aí aparece outra questão: POR QUE esse tratamento funciona? Essa é uma questão totalmente diferente da anterior, por estamos falando agora de mecanismos de ação do medicamento ou da vacina e, de modo geral, não podemos OBSERVAR esses mecanismos em ação, podemos apenas inferir ou hipotetizar sua existência. Podemos fazer outros experimentos e medir outras variáveis que nos ajudem a entender se a explicação está correta, criando hipóteses auxiliares, mas ainda assim não estamos realmente observando esses mecanismos. O que temos é, portanto, uma TEORIA de como o medicamento age no organismo, com base no nosso conhecimento científico pré-existente em fisiologia humana, bioquímica, farmacologia etc.


Então, uma teoria científica tem elementos em si que são “não-observáveis”, mas trabalhamos com eles para que tudo faça sentido...Mais interessante ainda, em algumas situações o próprio desenvolvimento do medicamento ou da vacina, em geral, partiu de um conhecimento teórico e abstrato. Em outros casos, a eficácia de um tratamento, um medicamento, pode ser “sugerida” a partir de pistas de aplicações empíricas que tinham sido feitas de forma não muito “organizada” ou sistematizada (conhecimento tradicional, por exemplo). De todo modo, quando aplicamos o tratamento e ele funciona no mundo real, isso significa que a teoria subjacente é VERDADEIRA? Isso significaria que aqueles fatores ou mecanismos não-observáveis são REAIS? Podemos pensar da mesma forma em relação aos nossos modelos matemáticos para prever a progressão da pandemia. Se eles acertam as previsões sob cenários alternativos, podemos dizer que nós realmente colocamos no modelo todos os elementos importantes e que os parâmetros desse modelo são reais e existem, no sentido de que poderiam ser medidos de forma independente e fazer sentido biológico? Se entendemos que sim (e a maior parte dos cientistas naturais concordaria com essa resposta mais afirmativa) estamos adotando então uma posição REALISTA para o conhecimento científico. Ou seja, pensando no lema de “Arquivo X”, podemos dizer que “A verdade está lá fora...”. O que temos que fazer é seguir os procedimentos científicos e nós vamos encontrar essa verdade! As teorias científicas permitem encontrar a verdade.


Essa visão REALISTA da ciência, entretanto, é questionável por várias razões e há uma enorme discussão filosófica sobre isso. É um tema complexo e que muitos cientistas (e mesmo alguns filósofos) consideram inútil, ou porque intuitivamente eles já resolveram isso em suas cabeças, ou simplesmente porque não se importam (o que não deixa de ser uma solução também, como veremos...). Essa discussão sobre o realismo pode ser resumida em termos de uma posição mais otimista ou mais pessimista em relação à capacidade das teorias científicas permitirem a descoberta de fatores ou mecanismos subjacentes à realidade e que não podemos observar. Não há uma solução definitiva para essa questão, até porque ela é, em grande parte, uma discussão metafísica e, como sempre, sugiro aos interessados os excelentes textos de Godfrey-Smith e de Okasha. Mas há vários questionamentos em relação ao realismo científico, especialmente ao que às vezes chamamos de “realismo objetivo”. Um ponto inicial é pensarmos na seguinte questão: uma dada teoria (com seus componentes não-observáveis e todos os seus elementos internos organizados de dado modo) explica um determinado padrão, mas será que não há outras teorias diferentes com mecanismos cuja ação poderia gerar o mesmo padrão, levar ao mesmo efeito? Será que não existiriam outros mecanismos envolvidos? Como eu posso garantir que esgotei todas as possibilidades? Isso é o que se chama de problema da "sub-determinação" da teoria pelo dado empíricos.


Assim, talvez uma visão realista extrema seja, na melhor das hipóteses, uma visão ingênua (e talvez até arrogante) da ciência, mas me parece que essa é a visão mais popularizada do funcionamento dela e que tendemos a propagar nos nossos programas de divulgação cientifica. Quando fazemos um experimento e dizemos que uma teoria foi “comprovada” ou “confirmada” (ou quando um comercial de shampoo quer aumentar as vendas dizendo que o seu efeito espetacular foi “testado cientificamente”) o que estamos querendo dizer realmente é que essa teoria é “verdadeira”! No máximo, os mais cautelosos vão dizer que é uma “boa aproximação” da verdade e que as teorias são provisórias, como sempre insistiu o grande filósofo da ciência Karl Popper!


Mas mesmo uma visão Popperiana que diz que podemos apenas falsear as teorias científicas, ou seja, o melhor que podemos fazer é descartar teorias que são obviamente erradas, resolve apenas em parte o problema, por várias razões. De saída, muitos filósofos da ciência não aceitam a filosofia Popperiana hoje, e inclusive o aspecto mais criticado dela nesse contexto é justamente a ideia de “corroboração”, ou seja, a ideia dele de que quando fazemos um experimento e não somos capazes de falsear a teoria, nós simplesmente a “corroboramos”. Ela não se torna mais consistente, mais robusta, mais confiável ou mais verdadeira. Para Popper, corroborar significa apenas que podemos continuar a trabalhar com essa teoria, que ela é a melhor explicação que temos para aquele fenômeno que estamos estudando no momento, mas que não podemos garantir que ela esteja “correta” ou muito menos que seja verdadeira. Então, quando se fala nos textos de divulgação ou mesmo nos textos introdutórios de ensino médio e superior sobre o “método científico” e se fala de boca cheia do “método hipotético-dedutivo”, em geral o que temos é uma mistura confusa de visão Popperiana (que é muito famosa e elegante) e teoria da confirmação vinda do empiricismo lógico do início do século XX. Tudo isso de forma extremamente positiva e fortemente associada a uma visão realista da ciência e, no final, dizemos que isso é que daria credibilidade à ciência. Ou seja, ela é capaz de revelar a realidade.


Mas aí voltamos à provocação da epigrafe de Naomi Oreskes e ao problema que mencionei rapidamente antes: o que fazer com as teorias que foram confirmadas no passado, que eram tidas como corretas ou verdadeiras e que, depois, se mostraram erradas? Dependendo de como se pense, a mecânica Newtoniana que aprendemos na escola não se mostrou correta e foi substituída por outras ideias, incluindo a Relatividade por um lado e pela Mecânica Quântica por outro, e está, portanto, errada como explicação e mecanismo subjacente à realidade, apesar de ser “confirmada” todos os dias. Há muitos exemplos desse tipo, sendo a base para aquilo que o filósofo norte-americano Larry Laudan chamou de "argumento meta-indutivo pessista da história", ao questionar o realismo científico. Por outro lado, os realistas argumentam que o principal argumento a seu favor é uma inferência explanatória (inference to the best explanation, ou explanatory inference), no sentido de que a melhor explicação para o sucesso da ciência é o próprio realismo. Os argumentos não param por aí, são longos e tortuosos...Mas, chamo atenção novamente que estamos falando de questões complexas, teóricas e envolvendo componentes subjacentes à realidade observável.


De qualquer modo, se o realismo não se sustenta tão claramente, pelo menos em sua visão extrema, uma das visões opostas é o que se pode chamar de INSTRUMENTALISMO, a ideia de que as teorias científicas são apenas instrumentos de predição. O critério para definir se uma teoria está “correta” é se ela funciona naquele momento é apenas a sua adequação empírica, ou seja, se ela “acerta” nas predições e nos permite, eventualmente, avançar na compreensão de novos fenômenos que não tínhamos percebido. Na verdade, a ideia é não enfatizar muito o “por quê” a teoria acerta em termos de não-observáveis, mas assumir que é o melhor que temos no momento e que podemos trabalhar com isso. Assim, não podemos, nessa visão instrumentalista, ser otimistas em relação aos mecanismos e fatores não–observáveis, não podemos afirmar nada quanto a eles. Claro, existem várias concepções diferentes de anti-realismo e muitas posições mais brandas e “intermediárias”, digamos assim, entre os extremos do realismo objetivo e de um instrumentalismo estrito. Dentre estas, gosto muito de uma posição chamada de “perspectivismo” proposta por Ronald Giere ainda nos anos de 1980, que sugere que a natureza é tão complexa que, na melhor das hipóteses, temos capacidade apenas de entender partes dessa realidade e isso depende fortemente da perspectiva que adotamos ao investigá-la. Na prática, deixa de ser uma questão inclusive de uma teoria estar “certa” ou “errada”, mesmo porque a comparação com a realidade é feita por modelos de representação da realidade que, por definição, são apenas aproximações. A ideia é tentar achar uma teoria que nos ajude a entender alguma coisa sobre a realidade, mas sem grandes pretensões. Existem muitas implicações dessa visão de perspectivas, inclusive na maneira como testamos e encaramos as teorias científicas, mas vamos discutir isso com mais calma em outro momento. De qualquer modo, ainda há outros desdobramentos importantes desse debate realismo – instrumentalismo e que abrem muitos questionamentos.


Podemos dizer que, à medida que começamos a lidar com questões mais complexas e mais “fundamentais”, digamos assim, a visão realista objetiva se torna cada vez menos sustentável, porque o problema da sub-determinação que coloquei anteriormente (um mesmo padrão empírico pode ser explicado por diversas teorias alternativas) se torna mais óbvio. Há um ponto bem importante em relação aos “não-observáveis”, inclusive em relação às ciências que lidam com fenômenos históricos (e aí incluímos, de fato, toda a discussão sobre teoria da evolução; vejam o excelente livro de Derek Turner especificamente sobre esse tema). De fato, não podemos fazer experimentos e realmente testar o que aconteceu no passado, ou não podemos dizer “objetivamente” que nossos cenários e modelos sobre mudanças climáticas antrópicas irão “acertar” no futuro (temos aí para o futuro outras questões curiosas...). A natureza da evidência é diferente e, em geral, o que fazemos é trabalhar no sentido da “melhor explicação possível” (explanatory inference). Embora às vezes até falamos isso e usamos esse tipo de expressão, isso muitas vezes a respostas do tipo “isso são apenas teorias”, que não podemos “comprovar” a existência desse fenômeno ou explicação, como discutimos anteriormente no sentido de escolher entre a hipótese do "Design Inteligente" e da Seleção Natural para explicar a complexidade dos organismos.


Essa questão da dificuldade de experimentação abre espaço para alguém dizer que, como não podemos “comprovar” essas teorias, estamos livres para considerar quaisquer explicações alternativas. Como não podemos “provar” que o Big Bang aconteceu ou que o Homem evoluiu de um ancestral comum com o chimpanzé há 6-7 milhões de anos, então podemos igualmente acreditar nas “explicações” do criacionismo. Já discutimos que não é assim, claro, pois essa abordagem de inferência à melhor explicação, que usualmente é o que podemos fazer de melhor com dados observacionais em grandes escalas, permite sim que se chegue a ideia de que são mais ou menos plausíveis sob um ponto de vista científico, Não podemos “comprová-las” objetivamente e experimentalmente no sentido que as pessoas estão acostumadas a pensar, mas de qualquer modo isso é, em termos teóricos, uma visão equivocada de qualquer modo, como vimos acima. Entretanto, o ponto a que queria chegar é exatamente que pensando no modo como usualmente ensinamos e divulgamos como a ciência funciona para a sociedade, em um contexto positivista e realista como tentei explicar acima, nós mesmos abrimos espaço para esse tipo de crítica. Sendo honestos, é difícil convencer alguém leigo que estudar evolução ou construir modelos de mudança climática se enquadra também como “boa ciência” nesse contexto. Acho que esse tipo de duvida e incerteza cria certamente uma desconfiança sobre o que esses cientistas estão realmente fazendo...



A Questão do Construtivismo


A outra crítica ao realismo extremo e cuja oposição vem de uma direção bem diferente (da sociologia e historia da ciência) são as ideias ligadas ao “construtivismo científico”. Voltando às questões que coloquei acima quanto ao experimento e à definição de protocolos, até que ponto podemos dizer que a conclusão e a evidência NÃO DEPENDEM do protocolo que foi estabelecido? Claro, a ideia é que esse protocolo foi testado e que há um bom consenso entre ele e pensamos que ele é o mais independe possível dessa “subjetividade”. Mas podemos garantir isso, realmente? Gostamos de pensar que sim mas, no mínimo, temos que reconhecer que, mais uma vez, à medida que vamos lidando com problemas mais complexos, maior é o risco que tenhamos mais dependência entre as conclusões às quais chegamos e o modo como escolhemos investigar essas questões. Em um extremo, chegamos à uma ideia totalmente relativista do conhecimento científico (ou do próprio conhecimento humano, e mesmo da própria realidade...), que foi adotada por alguns filósofos pós-modernistas nos anos de 1970-1980 e que levaram, inclusive, às chamadas “Science Wars” e ampliaram o abismo entre as ciências naturais e humanidades. Muitos equívocos, distorções e radicalizações, mas claro que os cientistas naturais e os filósofos da ciência (no geral) tendem a ser contrários à essa visão relativista mais radical. Mas hoje há que se admitir que há algo a ser considerado nessa discussão e que, na melhor das hipóteses, precisamos ficar alertas em relação a isso...


Essa ideia do construtivismo, de forma mais branda, leva a questões muito interessantes e, em um certo sentido, estão na base das visões do que às vezes se chama de “nova filosofia da ciência”, que se afasta das visões mais clássicas do positivismo e empiricismo lógico do início do século XX, e mesmo da visão Popperiana. Tudo isso começa, ou pelo menos se populariza, a partir da publicação da “Estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn em 1962. Muita coisa aconteceu na filosofia da ciência desde então, claro, mas a ideia geral aqui, de forma super simplificada, é que precisamos considerar a história da ciência e que, de fato, os cientistas não trabalham de forma isolada e independente do seu contexto social; em maior ou menor grau as agendas de pesquisa, os temas relevantes, e mesmo a maneira como a evidência é obtida e verificada, dependem de outros fatores sociais e políticos. O teste das teorias cientificas, e mesmo a sua aceitação ou rejeição, podem depender em maior ou menor grau de consensos entre os cientistas envolvidos que, por sua vez, individual ou coletivamente, podem não ser tão “objetivos” assim. Temos questões ligadas com interesses políticos ou econômicos maiores, que podem direcionar agendas de pesquisa ou definir prioridades de temas, ou mesmo desestimular o teste, ou mesmo a rejeição, de certas teorias. Mas coisas aparentemente triviais, como por exemplo não querer descartar ou criticar de forma mais dura um teoria porque o seu proponente é alguém que foi importante no início da carreira do pesquisador, ou por outro lado não criticar expressamente alguém que seja muito influente e que detém muito poder (em termos de decidir sobre financiamento ou sobre as carreiras), não são eventos desconhecidos na ciência. Vimos isso no caso de muitas das teorias dos cientistas nazistas e foi preciso esperar duas ou três “gerações” científicas para que se começasse a criticar essas teorias e a posição política desses pesquisadores sem maiores constrangimentos. Muitos colegas simplesmente descartam esses aspectos dizendo “mas a ciência não é assim de verdade”, mas a história nos mostra que esses fatores podem ter um papel mais importante do que se achava em uma visão mais ingênuo, romântica e “positiva” da ciência. Não podemos esquecer que a ciência é feita por pessoas, que possuem emoções, conflitos, interesses e ambições.


Claro, isso pode acontecer em maior ou menor grau em diferentes áreas da ciência, em diferentes escalas e em diferentes temas de pesquisa, em comunidades científicas mais ou menos estruturadas e amadurecidas talvez, e que sejam mais ou menos competitivas, mas não podemos dizer “a priori” que tudo isso é desprezível. De novo, na melhor das hipóteses, seria preciso ficar vigilantes e desenvolver estratégias que minimizassem esses fatores mais negativos. Podemos apenas esperar que os balanços delicados entre competição e cooperação entre grupos de cientistas e os interesses por teorias e aplicações que realmente sejam claras em termos de relevância social (como é o caso da pandemia) ou importantes sob o ponto de vista aplicado e tecnológico sejam suficientes para impedir que teorias absurdas ou inúteis se mantenham como parte do conhecimento científico. Nós esperamos que a médio-longo prazo essas questões se resolvam e que os consensos estejam mais alinhados e que tendam a ser (pelo menos nas ciências naturais) menos sujeitos a esses efeitos. Vejam também que essa entender o alcance do construtivismo e pensar em como lidar com ele tem implicações importantes inclusive para o que chamamos de critérios de demarcação, ou seja, o que conta como ciência, ou quanto podemos dizer que uma teoria é realmente científica (ou é apenas pseudociência)? Esse é um tema que vai e vem na filosofia da ciência, mas que atualmente é importante e que vamos ter que explorar melhor em outra postagem.


Esse componente sociológico na construção do conhecimento científico abre espaço para outra questão interessante, um tema muito atual que é a DIVERSIDADE na ciência. Se esses componentes sociais existem, então uma das estratégias para minimizar esses vieses e problemas seria justamente AUMENTAR a diversidade na ciência! Se tivermos pessoas com “backgrounds” culturais diferentes e percepções diferentes do mundo, experiências de vida diferentes e visões alternativas de como seria a melhor maneira, por exemplo, de conduzir mesmo um experimento relativamente simples, talvez o consenso alcançado seja mais “interessante”. Não estou falando de uma visão relativista extrema (como já disse, em geral combatida pelos cientistas e filósofos da ciência) de que todo o conhecimento tem o mesmo valor como “científico”, ou de questões de pertencimento e justiça social (que claro que são importantes de qualquer modo), mas sim de que podemos ganhar ao olhar a complexidade da natureza ou da sociedade com diferentes pontos de vista....Como biólogo evolutivo, essa visão é realmente bem intuitiva para mim, pois a base da evolução é a diversidade. Vejam que mesmo em uma visão realista mais branda (por exemplo, no perspectivismo de Giere), essa maior diversidade, ao ampliar a variedade de visões alternativas iniciais, pode fazer com que o conhecimento vá gradualmente convergindo para uma visão mais próxima da “realidade”.



De volta à questão dos valores


As críticas ao realismo objetivo, ligadas ao construtivismo, têm um outro aspecto importante. Voltando às questões de teorias elaboradas com fins de desenvolver tecnologias militares ou que apoiaram teses contrárias à nossa visão atual em termos de direitos humanos, alguns vão dizer que isso foi no passado, que a ciência hoje é mais amadurecida e está inserida em outros valores sociais e éticos. Talvez sim, mas esse argumento mostra exatamente que a ciência não está livre desse componente social e desses valores sociais em um contexto maior. E se os valores mudarem? Melhor, será que os nossos valores como seres humanos do início do século XXI são tão “positivos” assim como queriam Auguste Comte e os iluministas? Como diz um amigo querido, “Santa ingenuidade!”. Quem disse que temos realmente esses valores de igualdade, fraternidade, inclusão e justiça social consolidados em nossa sociedade? Na verdade, o que vemos no Brasil de 2021 nos mostra que temos ainda um longo caminho a percorrer...


Aliás, falando de valores, Oreskes coloca que um dos pontos importantes para a rejeição da ciência por muitas pessoas é que a insistência em uma objetividade extrema do cientista parece levar à crença de que ele ou ela não têm valores! Isso não é verdade, claro, mas realmente os cientistas tendem a esconder esses valores muitas situações, talvez achando que eles podem confundir as pessoas em relação às suas conclusões. Realmente vemos muitos cientistas dizendo, por exemplo, que “não possuem ideologia”, ou que são “apartidários” (o que não significam que eles não tenham posição nesse espectro ideológico-político...). O que eles estão querendo dizer é que eles ou elas entendem que suas posições políticas e ideológicas, quaisquer que sejam, não influenciam nas suas descobertas e pesquisas. Não sei até que ponto isso é realmente verdade, pelo que estamos discutindo até aqui, talvez dependa em maior ou menor grau da área de pesquisa, mas de qualquer modo aparentemente isso afasta as pessoas, segundo Oreskes.


Há mais uma questão que me parece importante: como lidamos e o que pensamos de um pesquisador que possui valores muito diferentes dos nossos? Por exemplo, o que pensamos, em termos pessoais e profissionais, de um cientista ou pesquisador que apoia ou apoiou um governo de extrema direita? Nas ciências naturais é comum dizermos que são coisas distintas, que política e religião são independentes da ciência, mas será? Mesmo em um contexto mais tradicional de sociologia da Ciência, pensando em “valores Mertonianos” (universalismo, comunismo, desinteresse e ceticismo), as coisas parecem se complicar. Na verdade, como já discutimos anteriormente também, esse é um ponto muito importante hoje em termos de critérios de demarcação, como coloca Lee McIntyre em seu “The Scientific Attitude”, de 2019. Muito do valor da ciência depende da atitude de um cientista diante da evidência. Será que essa pessoa com valores tão distintos em termos de justiça social e direitos humanos teria capacidade de avaliar a evidência de forma honesta e desinteressada, mesmo em suas áreas “duras” de pesquisa? Será que é possível fazer ciência sem esses valores fundamentais? São coisas para se pensar, mas tenho lá minhas dúvidas...



Em conclusão...


Em resumo, acho que temos agora mais elementos para responder à questão inicial, do título da postagem. Podemos confiar no conhecimento científico? Sendo otimista e sem negar as minhas origens estóicas e iluministas, acho que a resposta é SIM. Tenho esperança - e essa é a palavra mesmo, é um sentimento e não uma análise - de que a ciência vai avançando, mesmo que aos “trancos e barrancos”...Quero pensar que vamos mais na direção de Star Trek do que de Blade Runner! A história parece sugerir isso, como mostra Steve Pinker em vários dos seus livros. Mas isso em um contexto amplo e não pensando individualmente em cada cientista ou pesquisador, e mesmo não ficando restrito a um momento específico da história (não vamos falar nas aberrações que acontecem no Brasil desde 2019...). De qualquer modo, há outra questão que poderíamos fazer e que pode deixar mais claro o que quero dizer: podemos confiar CEGAMENTE no conhecimento científico, em um sentido prático, naquilo que aparece no dia a dia como “ciência”? A resposta agora é NÃO NECESSARIAMENTE. A ciência é feita por pessoas e, embora esperemos que ela tenha um maior nível de “correção de rumo” em médio/longo prazo, em um dado momento do tempo não podemos esquecer que quem faz a ciência são cientistas que não estão isentos de seu contexto social e de seu “background” cultural. Pior, infelizmente, alguns são desonestos e, como coloquei acima, não sei se a ciência (a boa ciência) realmente admite que seus praticantes tenham quaisquer valores sociais e morais ou éticos. Temos que manter a atitude crítica, o balanço delicado entre cooperação e competição, entre aceitação e rejeição.


Ao colocar minhas respostas finais dessa forma não quero dar a impressão de que existe algo abstrato e idealizado como “A" ciência, que seria diferente da rotina dos próprios cientistas, isso nos levaria de volta à uma visão positivista. Entendo que atualmente a ideia é adotar uma posição naturalística dentro da filosofia da ciência, pensando que o funcionamento da ciência não pode (nem deve, em geral) ser definido por concepções idealizadas e abstratas, mas sim pela própria prática dos cientistas. Podemos discutir e melhorar essas práticas, sem dúvida, e devemos sempre buscar isso, e confiamos na ciência porque conseguimos nos basear em atitudes honestas e bem-intencionadas diante de fatos e teorias. Mas não precisamos forçar a barra e insistir que ela é capaz de chegar (sempre) à verdade.


Mas, de qualquer modo, na prática, quando pensamos melhor nisso tudo e organizamos melhor essas ideias em nossas mentes, algumas coisas ficam mais claras e entendemos por que vemos atitudes pseudocientíficas e mesmo negacionismo em cientistas renomados, ou porque certos artigos científicos com ideias absurdas são publicados mesmo em bons periódicos (um outro tema que precisamos discutir melhor aqui...). Na prática, o sistema pode falhar, mas acreditamos que isso ocorre com uma frequência menor. Nesse sentido, claro que não temos que aceitar os problemas de forma passiva, mas podemos entendê-los melhor e, quem sabe, achar soluções para eles.


Sei que alguns dos temas colocados aqui são delicados e que alguns colegas podem até me questionar se esse tipo de discussão é apropriado nesse momento, no Brasil de 2021. Realmente, eu mesmo fico receoso e tomo cuidado quando abordo esses temas em público, pois sabemos que muitas dessas discussões e incertezas sobre o funcionamento da ciência e sua natureza abrem espaço para os negacionistas e pseudocientistas questionarem sua credibilidade e validade...Alguns vão dizer que não devemos abrir essa discussão para a sociedade e não podemos abrir esse flanco, pois ela (a sociedade) não tem discernimento, capacidade crítica ou maturidade para entender tudo isso (a questão do perspectivismo, ou pior ainda, do construtivismo). Então, o melhor é manter realmente a ideia do “conhecimento positivo”, para o bem de todos! Talvez seja verdade...Mas, ironicamente, ao fazermos isso, reforçamos uma visão construtivista complicada e nos aproximamos dos negacionistas e pseudocientistas em termos de conduta, adotando uma visão absoluta do conhecimento! Temos que acreditar na ciência porque ela é sempre certa e nos conduz no caminho da verdade, ela está certa, simples assim... Em que isso difere de uma religião ou ideologia qualquer? Ou de uma visão pseudocientífica? Elas, na verdade, têm até mais vantagem porque nos dizem as coisas que queremos ouvir e são levadas pelos grandes interesses políticos, econômicos e religiosos. Complicado...mais um dilema com o qual temos que lidar!






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