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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

A Biologia e o Progresso da Ciência

Atualizado: 3 de set. de 2021

Minha dor é perceber

Que apesar de termos feito tudo,

Tudo, tudo o que fizemos

Nós ainda somos os mesmos...

E vivemos como os nossos pais

(Belchior, 1976)

Comemoramos hoje, dia 3 de setembro, o “Dia do Biólogo” no Brasil. Essa data foi definida a partir da data de publicação da lei que instituiu as profissões de Biólogo e de Biomédico, a Lei 6.684 de 03 de setembro de 1979. Isso significa que “biólogo” é uma profissão regulamentada sob a jurisdição do Ministério do Trabalho, estando suas atividades organizadas pelos conselhos profissionais ligados a esse ministério (no caso, o Conselho Federal de Biologia - CFBio - e os diferentes Conselhos Regionais, que juntos formam o sistema CFBio/CRBios).


As atividades profissionais que podem ser exercidas pelos biólogos estão definidas na Resolução no. 227 do CFBio, que estabelece 88 áreas de atuação organizadas em 3 grandes áreas (temáticas): Meio Ambiente e Biodiversidade, Saúde, Biotecnologia e Produção. Essa atuação envolve tanto atividades técnicas e mais “aplicadas” ou “rotineiras”, digamos assim, quanto atividades de pesquisa nessas grandes áreas. Além disso, claro, temos toda a atuação no ensino de Ciências e de Biologia. Há, certamente, uma grande sobreposição com outras profissões que podem atuar nessas áreas, nenhuma delas é efetivamente exclusiva em termos de atuação dos biólogos, o que eventualmente cria conflitos e disputas jurídicas sobre a reserva de trabalho entre os conselhos profissionais.


Créditos: Mariana P. C. Telles

Se pensarmos um pouco nessas grandes áreas de atuação veremos a diversidade e importância dos biólogos para a nosso sociedade hoje. O filósofo Peter Godfrey-Smith, que tem trabalhado com diversos aspectos importantes em história e filosofia da ciência e da biologia, coloca que a física foi o grande destaque da ciência no século XX. De fato, todos que têm algum contato com a Ciência são capazes de perceber (mesmo sem entender, necessariamente...) a importância da teoria da relatividade e da mecânica quântica, bem como suas grandes implicações, indo desde a descoberta de buracos negros no espaço-tempo distante até aplicações tecnológicas que mudaram e muito a nossa vida nos últimos 20-30 anos. Apesar de tudo isso, Godfrey-Smith coloca que é bem provável que a biologia seja o grande destaque da ciência no século XXI. De fato, já temos uma série de progressos importantes, especialmente nas áreas de genética e biologia molecular, com aplicações biotecnológicas revolucionárias em saúde e medicina, por exemplo. Mas temos também aplicações importantes em produção de alimentos e, por que não, em meio ambiente...Em geral, não é à toa, como já discutimos, que a população humana começou a crescer vertiginosamente a partir do desenvolvimento inicial da ciência. Mas ainda temos claro muitos problemas para resolver, incluindo as dificuldades qualitativas e quantitativas na produção de alimentos e a destruição do meio ambiente, temas nos quais novamente os biólogos atuam com grande competência. Esses temas são super atuais e dificilmente temos uma semana em que algum assunto relacionado a esses temas não seja notícia, de alguma forma, nos principais jornais e na mídia no Brasil e no mundo (mesmo sem consideramos a pandemia da COVID-19, que obviamente ainda se mantém em alta nesse contexto midiático, mesmo depois dos brasileiros já terem “naturalizado” as ~1000 mortes por dia durante 3 ou 4 meses...).


Para não perdermos o “timming”, já discutimos anteriormente como os biólogos, por sua formação ampla, têm sido capazes de interagir com outros profissionais para auxiliar nas políticas públicas e na tomada de decisão durante a pandemia da COVID-19. Na verdade, embora nem todos saibam, o presidente da OMS, Dr. Tedros A. Ghebreyesus, é biólogo e não médico (fato, aliás, ironizado pelo presidente Bolsonaro e usado para balizar o seu descrédito quanto à seriedade da organização, dizendo que ele “nem é médico”; apenas mais uma desculpa, como se isso fizesse alguma diferença diante do negacionismo vigente...). De qualquer modo, acho que a nossa formação diversificada como biólogos, que tantas vezes causa dúvida e incerteza aos estudantes, pode ser uma vantagem na hora de interagir e colaborar com outros profissionais de muitas áreas diferentes.


Uma homenagem ao Dr. Tedros A. Ghebreyesus, biólogo, presidente da OMS e uma grande liderança durante o combate à COVID-19 (creditos: Wiki Commons).

Essa ampla visibilidade na atuação dos biólogos na sociedade do início do século XXI, dada a importância de todas essas áreas, também se reflete e está associada ao enorme avanço da Ciência e da Biologia no Brasil nos últimos 20-30 anos. É impressionante parar um pouco e refletir a enorme quantidade de novas ideias que surgiram desde que eu comecei a minha graduação em Ciências Biológicas na Universidade Federal de Sergipe (UFS), em 1984 (sim, isso mesmo, anos 1980...Logo depois de John Travolta em “Grease” e em os “Embalos de Sábado à Noite”, filme que popularizou o estilo Disco e levou milhões de jovens em todo o mundo às discotecas; só depois disso descobri o Rock...nada disso deve fazer sentido para muitos leitores do blog, desculpem a longa digressão, mas fica a dica...).


Apenas para ficar um pouco mais restrito em algumas áreas com as quais tenho mais familiaridade, em termos de Ecologia, Genética e Biologia Evolutiva, temos muitos e muitos avanços tanto conceituais quanto metodológicos. Novas áreas ou campos inteiros de conhecimento foram criados, como por exemplo “Macroecologia”, “Genômica” ou “EvoDevo”. Quando fiz graduação não havia praticamente menção a questões ambientais nas disciplinas de Ecologia, todo o campo da Biologia da Conservação e suas múltiplas derivações ainda estavam, para mim, no futuro distante. Lembro de ver um adesivo ou cartaz com o sloganExtinção é para Sempre”, e eu simplesmente não entendi (claro que é para sempre, que frase autoevidente e sem sentido, e o que um macaco está fazendo nesse cartaz, pensei eu...). Essa reação fazia sentido já que eu sempre ouvi falar de extinções em um contexto paleontológico...E, aproveitando a deixa, o que dizer da Paleontologia, que é a disciplina que ensino atualmente para os estudantes de ciências biológicas da UFG? Eu estava encantado à época da minha graduação com as ideias heterodoxas de Stephen Jay Gould (vamos falar mais sobre ele daqui a pouco) sobre equilíbrio pontuado e tendência evolutivas, mas não imaginaria os enormes avanços teóricos e discussões sobre a própria teoria evolutiva que iriam aparecer ou se tornar conhecidos depois, em termos de novos modelos em macroevolução, análises filogenéticas, ecologia molecular, genética do desenvolvimento e tantas outras ideias. Em relação aos organismos, pensando só nos dois exemplos mais famosos: achava-se à época que os dinossauros faziam realmente jus ao nome “lagartos terríveis” (sabemos hoje que as aves são um pequeno subgrupo de dinossauros que se diversificou a partir da grande extinção do final do Cretáceo; aliás, na época a teoria do meteoro dos Alvarez, recém-publicada em 1980, ainda era bastante polêmica e pouca aceita...). E quantas novas espécies e gêneros espetaculares de hominídeos foram descobertas em diferentes locais do mundo nos últimos 30 anos? Elas têm mudado muito a nossa percepção dos padrões e dos processos em evolução humana, em termos de evolução morfológica, fisiológica e comportamental. Fechando o círculo, quem imaginaria que iríamos entender muito da biologia dos Neanderthais a partir do sequenciamento do seu genoma, em 2010!!! Poderíamos ficar aqui colocando exemplos por muito tempo...E notem que muitos desses avanços já estão suficientemente consolidados para aparecerem nos livros-texto de graduação, e mesmo nos livros de ensino médio.


Obviamente estamos falando do expressivo progresso do conhecimento em Biologia, o que nos leva ao início de uma discussão importante e mais ampla sobre o que é o progresso científico. Como a ciência avança? Temos discutido muito sobre ciência aqui no blog e já falei um pouco sobre a questão de como as teorias científicas mudam, podemos pensar de forma quase caricata nas ideias de Karl Popper de uma mudança mais contínua ou gradual e nas revoluções científicas e “substituição de paradigmas” de Thomas Kuhn, apenas para ficar nos “extremos”. Não quero ir à fundo nas discussões sobre o significado da substituição das teorias científicas em relação à “realidade”. É um assunto fascinante e filosoficamente complexo que quero abordar com bem mais calma em outro momento. No momento entendo que basta assumirmos que as teorias que se sucedem, seja de forma lenta ou de forma gradual, explicando de forma mais adequada e cada vez mais abrangente um dado fenômeno natural. As novas teorias são sempre melhores do que as teorias anteriores, em termos de conseguir explicar uma maior diversidade de fatos empíricos sobre a natureza. É uma ideia simples sobre o progresso da ciência, de certo modo ingênua, mas acho que é adequada para uma descrição geral e vai servir para fins de raciocínio.


Podemos ilustrar essa ideia do progresso da Ciência na figura abaixo, no qual os diferentes círculos vermelhos seriam ideias ou teorias sobre um assunto que estão conectadas e vão se sucedendo no tempo, respondendo cada vez mais questões ou permitindo uma melhor compreensão da natureza. Consequentemente, podemos dizer que há um aumento no nosso conhecimento, linearmente ao longo do tempo (mas pode ser exponencial ou qualquer outra função crescente, só reforça o argumento abaixo).



Poderíamos imaginar inicialmente que, sob esse modelo, o conhecimento irá crescer indefinidamente, apesar da posição de alguns céticos (o livro de Paul Hogan, “O Fim da Ciência”, foi muito discutido nos anos 1990...). Mas esse é também outro tema para o futuro e quero levantar aqui é que há outro aspecto importante para considerarmos sobre a figura acima. Vamos assumir que o conhecimento científico (em Biologia, no caso) tem avançado dessa forma ao longo do tempo. Mas até que ponto esse conhecimento realmente se difunde na sociedade e se torna “conhecimento” nesse sentido mais amplo de visão de mundo. Ou seja, dado o aumento do conhecimento científico, será que as pessoas na sociedade entendem a substituição de teorias e percebem em que ponto estamos desse conhecimento? Será que, de modo geral, as pessoas da sociedade hoje sabem mais sobre o universo que as cerca e sobre a natureza do que há 200 ou 300 anos atrás? Receio que não...Como escrevi anteriormente, realmente é inacreditável que tenhamos, em pleno século XXI, tantas discussões aparentemente sérias sobre criacionismo, Terra Plana, OVNIs e tantas outras formas de misticismo, pseudociência, negacionismo e teorias da conspiração, mesmo entre pessoas esclarecidas e com alto grau de instrução...Vivemos em uma sociedade com baixa autoestima, intelectualmente imatura e dominada por crendices e superstições, envolta no misticismo. Essas mesmas pessoas, entretanto, utilizam “smartphones” conectados via satélite à internet e se deslocando pelas cidades inteligentes em carros sofisticados ou aviões guiados por GPS.


Então, pensando nessa questão mais ampla da difusão do conhecimento para a sociedade e nas explicações que as pessoas têm para a sua compreensão do Universo e da Natureza, acho que a figura que apareceria seria algo como apresentado abaixo.



Nessa figura, certas teorias, visões de mundo ou ideias ultrapassadas, na realidade, não são substituídas por outras mais corretas ou adequadas. Muitas dessas ideias, de fato, continuariam a existir (os círculos cinza), às vezes de forma modificada ou distorcida, e a serem defendidas em alguns segmentos da sociedade mesmo quando elas já foram abandonadas pelos cientistas e pelas pessoas racionais há muito tempo. Assim, uma descrição melhor da persistência no tempo das ideias formaria um “espaço triangular” no qual a variação de visões de mundo ou teorias aumentaria com o tempo, sem que necessariamente essas visões ou teorias estejam “corretas” ou realmente expliquem o Universo e a natureza. Só reforçando, estamos falando de teorias que eram tidas como corretas e apropriadas, desenvolvidas de forma honesta a seu tempo, mas que foram efetivamente rejeitadas ou refutadas pelos cientistas em um tempo posterior. Entretanto, essas ideias ou derivações continuariam a ser defendidas mesmo nessa após a refutação ou rejeição porque haveria outros interesses políticos, sociais ou econômicos: ou seja, seriam pseudociência ou aparecem como apoio a visões negacionistas.


Para a sociedade em geral, que não consegue separar os círculos vermelhos dos círculos cinza, cria-se uma grande confusão. Muitos negacionistas usam inclusive a suposta variação de ideias “corretas” em um dado tempo (por exemplo, pense na linha vertical mais à direita na figura, no tempo presente) e dizem que realmente a ciência funciona pelo debate e que há visões alternativas sobre um dado problema, quando na verdade o que existe é uma visão científica concorrendo, em termos de “guerra de narrativas”, com visões pseudocientíficas ou negacionistas. Para uma pessoa leiga na área ou que não entende realmente como a ciência funciona, pode ser realmente difícil distinguir...Existe o debate científico, mas se entendermos que o eixo Y na figura representa conhecimento, esse debate apareceria como outra “dimensão” (Z, digamos) nessa figura, e não como uma variação no nível de conhecimento (vamos explorar melhor essa questão em outra postagem).


Para mantermos a ligação com a Biologia neste dia 3 de setembro, essas figuras me lembraram de uma discussão importante que temos sobre a questão do “progresso” em macroevolução. Apesar da maior parte dos biólogos sustentar, quase como um “mantra”, que não há progresso em evolução e que um organismo não pode ser considerado “melhor” do que o outro (e que o próprio Darwin sempre disse isso...), na prática a percepção de progresso sempre permeou a visão sobre evolução e a espécie humana é sempre considerada como um ponto alto da evolução. Tanto que já discutimos que a figura abaixo (e suas muitas variantes, desde cômicas até trágicas) representa a ideia de evolução para a maioria das pessoas e que é a metáfora visual mais conhecida sobre evolução


(creditos: Clipart)


Mas diversos biólogos evolutivos mostraram desde os anos 80, na verdade, que as tendências evolutivas são bem mais complicadas e que em muitos casos esse progresso é apenas “aparente”. O famoso paleontólogo americano Stephen Jay Gould, que faleceu em 2002, na sua “cruzada contra a ideia de progresso na evolução”, sempre insistiu que algumas tendências evolutivas, na verdade, podem representar apenas o limite máximo de uma variação biológica. Nesse sentido, essa variação não significa necessariamente que haja um fator, um “driver”, para essa mudança (no contexto de mecanismos evolutivos, estamos falando basicamente de adaptação por seleção natural). Gould chegou a dizer, em um artigo famoso publicado na Nature em 1979, que essas mudanças seriam artefatos psicológicos, um padrão criado em nossa mente a partir dos nossos desejos! Para aqueles mais interessados sugiro dar uma olhada no livro de Gould (com a sugestão adicional de que não se preocupem com as longas digressões dele sobre beisebol; afinal, ninguém é perfeito!).


Podemos ilustrar essa discussão do “progresso” e das tendências evolutivas com a evolução do tamanho corporal (em mamíferos, por exemplo). Será que temos um fator que realmente faz com que um mamífero de maior porte seja bem sucedido e gere mais espécies, de modo que ao longo do tempo as espécies de mamífero vão ficando maiores? Em princípio parece que isso faz sentido se lembrarmos que, no Cretáceo, apenas espécies de pequeno porte de mamíferos, semelhantes a insetívoros ou pequenos marsupiais, além de muitos outros grupos totalmente extintos, viviam “à sombra dos dinossauros”. Apenas após a grande extinção do final Cretáceo, 65 milhões de anos atrás, houve uma maior diversificação dos mamíferos e isso levou a espécies cada vez maiores. Esse padrão de evolução do tamanho do corpo foi batizado de regra de Cope”, em homenagem a Edward D. Cope (1840-1897), um paleontólogo do final do século XIX que foi um dos principais proponentes e apoiadores da chamada teoria da ortogênese (uma teoria neo-lamarckiana) que explicava padrões direcionais no registro fóssil.


Entretanto, esse padrão de evolução “direcional” do tamanho não é tão fácil de demonstrar à medida que conhecemos mais e mais sobre as espécies e o que observamos é algo bem mais complexo. De forma simplista, obviamente as espécies de pequeno porte continuam existindo e, de fato, suas linhagens se diversificaram até bem mais do que a maior parte das linhagens com espécies de maior porte (vamos lembrar que quase 40% das espécies de mamíferos são roedores, em geral de pequeno porte). A discussão na verdade é a seguinte: se as espécies do Mesozoico eram apenas de pequeno porte, na verdade praticamente a única coisa que poderia acontecer é aumentar de tamanho, por um efeito ao acaso da variação do tamanho em cada momento de especiação. Ou seja, não haveria necessariamente um “driver”, um impulso por seleção natural ou qualquer outro fator em grandes escalas de tempo que desencadearia uma evolução progressiva do tamanho, indo de animais pequenos para animais cada vez maiores. Segundo outro biólogo evolucionista e paleontólogo, Daniel McShea, em um artigo já “clássico” de 1994, existiram então tendências “ativas” (quando há uma pressão gerando um padrão direcional) e “passivas” (quando apenas a diversificação acontece ao acaso, mas a partir de um ponto inicial “enviesado). Na prática, o que conseguimos perceber é que, para qualquer característica nos diferentes grupos de organismos, parece haver uma mistura de componentes ativos e passivos, em diferentes graus e variando dependendo do grupo de organismos e da característica que estamos estudando. As figuras que representam esses tipos de tendências encontram-se abaixo, e que nos leva de volta à ideia do progresso na Ciência e na Biologia.


Visualizando as tendências passivas (à esquerda, A) e “ativas” (à direita, B) na evolução, que ocorre com a passagem do tempo ao longo do eixo vertical. O eixo X representa a variação em uma características qualquer, vamos imaginar que seja o desvio em relação ao tamanho do corpo da espécie ancestral. Nas tendências “passivas” a evolução começa no ponto 0, mas como não faz sentido que a evolução leve a valores menores do que o ancestral, uma simples diversificação ao acaso começa a levar a media para a direita (ou seja, há um aumento no tamanho). Por outro lado, nas tendências ativas da figura à direta há realmente uma mudança direcional, no qual a cada intervalo de tempo o valor do tamanho seria aumentando gradualmente em relação ao ancestral. Na tendência passiva, então, a tendência é consequencia de uma “barreira”, uma limitação, que impede a variação ao acaso (linha tracejada), enquanto que na tendência ativa o que há é realmente um “impulso” para a que o tamanho aumente ao longo do tempo (seta) (Modificado de McShea 1994)

Talvez forçando um pouquinho a analogia, poderiamos pensar que o progresso científico e seu impacto na sociedade possam ser mais bem descritos como uma “tendência passiva”, pelo menos em um contexto amplo de visões de mundo e da natureza pela sociedade. Vejam a similaridade entre as figuras, com a região "triangular" formada nas tendências passivas (note que, nessas figuras, o tempo está no eixo Y e nas figuras sobre o progresso científico o tempo está no eixo X). Esse padrão aparece porque embora certamente haja um “driver” para a criação e substituição das teorias, em termos de poder de explicação crescente e potencial de aplicação tecnológica, esse efeito é percebido apenas por parte da sociedade, por uma série de razões sociológicas. As demais ideias e visões continuam no mesmo patamar com o passar do tempo, criando a região triangular.


Em termos de padrão, o que acontece, como mostrei acima, é que as teorias e visões ultrapassadas de mundo continuam existindo independente do que os cientistas e biólogos digam sobre elas. Pior, essas teorias ou visões de mundo terminam sendo utilizadas com interesses políticos e ideólogos, ou para apoiar dominação econômica ou social, questões fortemente ligadas ao negacionismo e à pseudociência. No nosso caso específico em Biologia, já discutimos bastante os exemplos clássicos do criacionismo e sua versão pseudo-científica, especialmente a “teoria” do design inteligente, motivado por crenças religiosas (mas com forte componente de dominação social e política) e a questão da mudança climática e da degradação ambiental como um todo. No contexto mais recente da pandemia, vemos um renascimento de toda uma série de argumentos também anticientíficos e negacionistas.


Então, se a maior parte da população continua acreditando em ideias ultrapassadas e antiquadas e não é capaz de entender ou mesmo enxergar a fronteira do conhecimento científico, isso significa, obviamente, que a ignorância da sociedade como um todo está aumentando. Na época do Darwin não seria tão absurdo acreditar que Deus criou o mundo em 7 dias como escrito na Bíblia. Muitos intelectuais e pensadores brilhantes na época estavam comprometidos com essa visão... Mas no início do século XXI, sério???? Faz sentido esse tipo de “explicação” a partir do momento que entendemos tanta coisa sobre Biologia e que esse conhecimento é inerente a tantos aspectos da nossa vida diária?


Em conclusão, acho que hoje, dia 3 de setembro de 2020, os biólogos brasileiros têm pouco para comemorar, infelizmente. Apesar da sua capacidade de trabalho e do seu importante papel na sociedade, a atuação dos biólogos e cientistas está cada vez mais comprometida, uma vez que a sociedade está imersa em uma visão teológica e sobrenatural do mundo, dominada por crenças sobrenaturais, misticismo e sendo continuamente bombardeada por idéias anti-científicas. Está cada vez mais claro que estamos rapidamente sendo dominados por um Governo teocrático, na qual as leis e os valores éticos e morais da própria sociedade são definidos pela Bíblia (não que a Bíblia não possa ser uma fonte de valores, mas estes não existem por uma revelação mágica por um ser sobrenatural...os valores devem ser discutidos, entendidos e assumidos a partir da nossa própria reflexão das suas consequências). É inacreditável que estejamos passando por isso e, infelizmente, não consigo ver nada que seja mais anticientífico do que esse tipo de postura...Aliada a isso, temos uma visão econômica retrógrada e ultrapassada, que não seria consenso nem nos anos de 1970, e como consequência a falta total de compromisso com qualquer questão ambiental, com um enorme desmonte de toda a estrutura de fiscalização e proteção da natureza. O Brasil e o mundo vão pagar caro por essas ações irresponsáveis, mas a falta de visão do futuro é também uma das faces da pseudociência e do negacionismo.


No contexto de muitas atitudes recentes do Governo e do que tem acontecido na sociedade brasileira como um todo, ouço com bastante frequência as pessoas dizerem que estamos “voltando à Idade Média”, ou voltando à “Idade das Trevas”. Sei que é uma visão equivocada associar a Idade Média “por si” à falta de conhecimento e ignorar diversos avanços que aconteceram nesse período. Inclusive, dizer isso logo no século subsequente ao de Hitler e Stalin parece ser um pouco forçado...Mas, de qualquer modo, acho que essa visão do mundo medieval está no imaginário da maioria das pessoas, principalmente se pensarmos em violência generalizada, falta total de reconhecimento de direitos humanos, desconfiança pessoal e falta de empatia, reis e imperadores despóticos e políticas autoritárias (qualquer semelhança com as últimas notícias na mídia brasileira é mera coincidência?). Esse mesmo imaginário vê o renascimento no século XIV - XVI nas artes e na cultura realmente como uma fuga da escuridão, seguida pelo iluminismo que desembocou na revolução científica de Galileu, Newton, Descartes e tantos outros. Mas será que é isso mesmo que aconteceu? Será que isso não é apenas algo como um sonho, um “wishful thinking”, uma visão distorcida de alguns poucos que acharam que esses movimentos sociais do renascimento e do iluminismo tiveram um alcance maior do que realmente tiveram? Será que esses movimentos foram, de fato, vivenciados pela sociedade como um todo? Como disse E. O. Wilson em “Consiliência”, na verdade o iluminismo falhou e os seus ideais foram rapidamente manipulados e apropriados por políticos que os usaram para justificar muitas atitudes bárbaras e para tomar o poder...Posso estar sendo pessimista e sem dúvida a sociedade se beneficiou da ciência e da tecnologia nos últimos 300 anos, realmente diminuímos a mortalidade infantil, aumentamos a expectativa de vida, diminuímos a violência generalizada e a fome e a miséria (pelo menos se compararmos com o que havia na idade média...). Nesse sentido Steve Pinker é bem mais otimista e nos clama a pensar no “Novo Iluminismo”.


Ok, posso viver com isso, tudo certo...Mas será que a sociedade está consciente disso tudo? Diante dos absurdos que vemos hoje, principalmente aqui no Brasil, tenho lá minhas dúvidas...As pessoas continuam vivendo como sempre viveram o seu dia a dia, sem capacidade ou necessidade de fazer reflexões sobre o mundo ao seu redor e sem questionar o conhecimento imposto, especialmente pelas religiões fundamentalistas. Daí a nossa epígrafe, como disse Belchior, “...apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Indefinidamente...Dessa forma, não temos realmente grandes motivações para os avanços como sociedade e, nesse sentido, estamos cada vez mais e mais cercados de ignorância.


Então, pensando melhor na pergunta acima, acho que a resposta é NÃO, nós não estamos voltando à idade das trevas. Mas não estou querendo ser otimista para concluir essa postagem, desculpem...O que quero dizer é que talvez haja um equívoco na pergunta, de modo que a resposta pode não fazer sentido diante de tudo o que coloquei acima. Acho que a pergunta mais adequada seria: SERÁ QUE ALGUM DIA SAÍMOS DA IDADE DAS TREVAS?






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