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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Kant, Hume e um “Designer” não tão inteligente assim...

Atualizado: 25 de fev. de 2021

Há poucas semanas atrás tivemos no Brasil uma nova onda de discussões sobre a questão do criacionismo e da “teoria” do “Desenho Inteligente” (DI), desencadeada quando um dos principais proponentes e divulgadores dessas ideias foi convidado para fazer a palestra de abertura do IntegraUFMS, um dos maiores eventos de C&T do Estado do Mato Grosso do Sul e parte dos muitos eventos que acontecem no Brasil em outubro, associados à Semana Nacional de Ciência & Tecnologia organizada anualmente pelo MCTI. Houve uma série de reações e movimentos “em prol da Ciência” e uma nota de repúdio dos docentes do Instituto de Biociências da Instituição, sempre remetendo ao problema do avanço crescente do negacionismo e da pseudociência no Brasil, como já discutimos várias vezes aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias”. Mas lendo uma das várias reportagens e comentários sobre o acontecido, no meio de uma enorme quantidade de afirmações ingênuas, ultrapassadas, contraditórias ou mesmo falsas, uma das colocações que apareceu na mídia me chamou atenção:


"É hora da gente mudar o paradigma, voltar ao bom e velho paradigma do início da ciência. A ciência nasceu com a percepção do 'design inteligente'. Os grandes cientistas eram defensores do 'design inteligente' e ainda são."


De fato, está absolutamente claro que os defensores do DI querem voltar ao “início da ciência”, presumo que estamos falando da revolução científica de Galileu, Newton, e tantos outros, e ignorar todo o avanço da Biologia desde o início do Darwinismo. Na realidade, em um certo sentido, eles querem ignorar a Biologia como Ciência, já que é difícil pensar no que realmente se sabia cientificamente sobre a vida e sobre a natureza nos séculos XVI ou XVII. Embora obviamente nem todas as aplicações práticas da Biologia e de todo o avanço tecnológico a partir da segunda metade do século XX lidem explicitamente com a ideia de Evolução, na verdade todo esse conhecimento só foi integrado de forma coerente e só fez sentido à luz da ideia geral de Evolução, parafraseando Theodosius Dobzhansky. Assim, só conseguimos conceber esses ataques à Evolução em um contexto de fundamentalismo religioso e, de fato, toda a ideia do chamado “criacionismo científico”, do qual a “nova teoria” do DI é uma parte fundamental, surgiu com mais uma maneira de tentar (sem sucesso, diga-se de passagem...) driblar as decisões da suprema corte dos EUA de que não havia espaço para ensino de ideias sobre criação especial nas aulas de ciência, como um “contraponto” à ideia de evolução. Já discutimos essa questão diversas vezes aqui no blog, em termos específicos da DI e no contexto mais amplo da discussão entre Ciência e Religião (vejam a postagem sobre a Escala de Scott).


Mas e quanto à frase acima? De que “grandes cientistas” está se falando e o que significa “voltar ao início da Ciência”? Qual Ciência? De fato, pensamos HOJE em pseudociência e negacionismo ao nos referirmos ao DI e ao “criacionismo científico” porque algumas pessoas querem equiparar essas ideias à teorias científicas por razões escusas, ligadas a interesses econômicos ou políticos. Mas será que, em algum momento, a ideia do DI foi avaliada sob um ponto de vista “científico” ou racional e realmente levada à sério? Em caso positivo, isso poderia mudar um pouco a nossa perspectiva e as nossas estratégias de combate ao avanço dessas ideias no início do século XXI? Relendo o excelente capítulo sobre criacionismo do “Phylosophy of Biology”, do importante filósofo da ciência e da biologia Elliot Sober, fiquei pensando que ainda há algumas questões importantes para discutirmos aqui e que fazem com que a frase mereça alguns comentários (e muito do que vou discutir a seguir está baseado nos argumentos de Sober; sugiro fortemente aos interessados, especialmente na parte da lógica mais formal, que leiam o livro).


Na realidade, toda a ideia de DI é bastante antiga e precede, claro, até mesmo a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII. Sim, não tem nada de novo aqui, muito pelo contrário...Até porque a ideia do DI foi pensada particularmente em um contexto teológico ligado ao Genesis bíblico e pode ser encontrada explicitamente nos textos da filosofia escolástica, como na Summa Theologiæ de São Tomás de Aquino (1225-1274), por exemplo (é uma das 5 “provas” da existência de Deus de São Tomás). Indo além da filosofia escolástica, temos as Meditações de Descartes e o início do Racionalismo, e este também buscou “provar” a existência de Deus (sendo inclusive a base da famosa frase de Descartes, “Penso logo existo”). Na verdade, tudo isso pode ser enquadrado em uma área da metafísica clássica chamada de “teologia racional” (teodiceia), uma parte importante da filosofia ocidental na Idade Média e Moderna.


Entretanto, quando falamos sobre a ideia do DI e da complexidade em um contexto “biológico”, normalmente estamos nos referindo aos argumentos do Reverendo William Paley (1743 – 1805) em seu Natural Theology de 1805. A conhecida metáfora de Paley sobre complexidade diz que se encontramos um relógio ao andar por uma estrada não duvidamos de que existe um relojoeiro, uma vez que seria improvável que um mecanismo tão complexo surgisse por acaso. Como os organismos são complexos e tão perfeita e maravilhosamente adaptados ao seu ambiente (em uma avaliação superficial...), obviamente eles não surgiram ao acaso e sua existência requer logicamente a figura de um Criador (e, nesse sentido, pensamos sempre nesse Criador como o Deus bíblico, na tradição judaico-cristã ocidental; mas voltamos a esse ponto em breve).


Vejam que Paley escreveu sobre isso em 1805, portanto antes de Lamarck e de Darwin (Lamarck publicou sua Philosophie Zoologique em 1809, ano do nascimento de Darwin, que como sabemos só exporia suas ideias sobre evolução em 1858, mas que se tornaram mais amplamente divulgadas em 1859 com a publicação da Origem das Espécies). A ideia de evolução era incipiente no início do século XIX, para dizer o mínimo. Mas achei curioso reler em Sober que o argumento do DI já havia sido criticado anteriormente pelo famoso filósofo escocês David Hume (1711 – 1776) em seu Dialogues Concerning Natural Religion, publicado postumamente em 1779. Hume foi um dos principais filósofos da tradição empirista inglesa do final do século XVIII, de modo que é interessante pensar justamente que no próprio início da Ciência o argumento do DI já era questionado sob um ponto de vista filosófico/epistemológico. Vamos entender melhor isso.


Hume coloca a defesa do argumento do DI em um contexto maior e o questiona por ser um argumento “indutivo” por analogia. De fato, Hume é muito conhecido por mostrar que argumentos indutivos não têm sustentação lógica, principalmente em um contexto de projeção (daí o chamado “problema da indução” ser conhecido como o “problema de Hume”). Embora na nossa vida diária nós pensemos de forma indutiva a todo momento e façamos previsões para um futuro com base na nossa experiência passada, não há uma sustentação lógica ou racional para isso. É um longa discussão, central em qualquer curso de filosofia da ciência, e a base do famoso princípio da falseabilidade de Karl Popper (ou seja, não podemos jamais confirmar uma hipótese científica e garantir que ela seja verdadeira, mas o conhecimento avança à medida que refutamos ou rejeitamos uma hipótese que se mostra falsa e a substituímos por outra que é mais empiricamente adequada; claro que nem todos os filósofos da ciência aceitam esse princípio, mas o raciocínio geral é bem importante).


O principal questionamento de Hume em relação ao DI é que, sendo um argumento indutivo, a validade da conclusão depende da validade das premissas. Sober apresenta formalmente a ideia de Hume da seguinte forma.


Hume argumenta que o problema do raciocínio acima é a analogia entre os organismos e relógios e mostra que a veracidade da conclusão depende do quanto organismos e relógios seriam similares, o que de fato não é óbvio (e Hume conclui que organismos e relógios não são similares, obviamente). Mas o interessante é que Sober generaliza e reescreve o argumento acima da seguinte forma, pensando em um objeto X, que sabemos possuir uma propriedade qualquer P, e um objeto Y, que achamos que possui uma similaridade N com X.


Foi fantástico perceber que esse raciocínio original de Hume antecipa de forma brilhante as nossas discussões atuais sobre o que chamamos de “sinal filogenético”, pois se N é um valor pequeno, indicando que Y e X são semelhantes, de fato é mais plausível que eles compartilhem a propriedade P. Sabemos hoje que N pode expressar as relações de parentesco entre Y e X, pensando em espécies, e de fato espécies mais próximas evolutivamente tendem a ser semelhantes (vamos pensar em um chimpanzé e em um ser humano, e depois comparar os dois com um gato, e depois comparar os três com uma beija-flor). Então, mesmo se considerarmos os problemas clássicos da indução, o raciocínio formalizado acima faz todo o sentido com base na evolução e podemos hoje formalizar o raciocínio acima e estimar estatisticamente qual o N de uma dada característica ecológica, comportamental ou morfológica P (ou seja, qual a influência da distância filogenética sobre a similaridade de um atributo ou característica das espécies). Mas claro que isso não era conhecido à época e, embora muitos achassem que o problema do DI teria sido eliminado pelo argumento de Hume, um dos problemas é que não havia uma explicação alternativa para a complexidade dos organismos.


Entretanto, Sober mostra também que a crítica de Hume pode não se aplicar realmente à ideia de Paley, pois podemos reconstruir o seu argumento do DI não como uma indução por analogia, mas sim como uma “inferência à melhor explicação” (inference to the best explanation, ou explanatory inference). Nesse sentido, o objetivo de Paley não seria “provar” a ideia do DI ou mostrar que ela é “verdadeira”, mas de uma forma mais modesta comparar a plausibilidade dessas ideias, comparativamente. Ou, falando de forma mais técnica, queremos estabelecer a similitude, ou verossimilhança (likelihood), das hipóteses, em uma avaliação que é sempre relativa ou comparativa. De fato, o argumento de Paley, e de outros que colocaram a questão depois dele, sempre foi que o DI seria mais plausível que uma organização ao acaso das partes (e em um primeiro momento isso até faria sentido - mas voltamos a esse ponto em breve).


Entretanto, a questão é que em 1805 só tínhamos as duas ideias para comparar: DI versus “acaso”. Mas, a partir de meados do século XIX, como já discutimos de forma detalhada aqui no blog, a Evolução se estabeleceu como um novo programa de pesquisa em Biologia, a partir principalmente das ideias pioneiras de Darwin. Surge então outra ideia para comparar, uma outra explicação alternativa para a complexidade. O programa de pesquisa Darwiniano, com a ideia de “Evolução” em um sentido, todos os seus desdobramentos, tem sido extremamente bem sucedido no sentido de avançar todo o conhecimento biológico de forma coerente e integrada, respondendo a um número crescente de questões e fazendo novas predições que são continuamente sustentadas por dados empíricos. Insisto, o conhecimento avançou desde meados do século XIX e só as pessoas menos informadas acham que o que sabemos hoje sobre Evolução é o que Darwin colocou. Assim, dadas as múltiplas fontes de evidência, os biólogos e os cientistas de modo geral rapidamente entenderam (de fato ainda no século XIX), que a similitude da seleção natural e da ideia de evolução como um todo, como princípio organizador, é muito mais alta do que a do DI. Certamente a ideia de evolução permeia hoje toda a Ciência, uma vez que a própria “dimensão do tempo” foi totalmente transformada; não estamos mais falando de um Universo criado há 5000 anos por uma entidade superior, e as evidências disso não estão apenas na Biologia, mas também na Cosmologia e na Geologia (por exemplo). E mesmo que a seleção natural não seja a único processo envolvido na origem das adaptações, como alguns biólogos evolutivos têm sugerido mais recentemente, a similitude da concepção ampla de evolução aumenta na “direção oposta” ao DI no sentido de ser ainda mais plausível que adaptações se desenvolvam mesmo sem um projeto ou “design”. E, como também já discutimos, uma coisa é pensar na ideia geral de evolução como padrão e outra é entender em que situações cada um dos mecanismos e processos atuou de forma mais ou menos intensa.




Mas, voltando um pouco, por que a similitude da ideia do DI como explicação da complexidade seria menor? De saída, um dos pontos mais importantes da discussão é que o principal argumento do DI em Paley, da complexidade e perfeição das adaptações, não se sustenta, como o próprio Darwin discutiu extensivamente já na Origem das Espécies. A natureza não é “perfeita” e as adaptações são melhor entendidas a partir das relações de parentesco e a partir de modificações de estruturas que, em muitas vezes, haviam evoluído por outras razões (tecnicamente, chamamos esse processo de “exaptação”). Uma ideia relacionada, a do “princípio antrópico” (na sua versão “hard”), surge em um contexto semelhante e diz que todo o Universo foi “preparado” para a nossa existência, pois pequenas mudanças nas constantes físicas não permitiriam a existência da vida ou da natureza como a conhecemos (claro, mas é um raciocínio totalmente circular e estático...). Mas não há perfeição na natureza e não vivemos “no melhor dos mundos” (uma ideia satirizada no famoso livro “Candido” de Voltaire, cujo personagem, o Dr. Pangloss, saiu pelo mundo vendo em tudo a perfeição; daí, pensando no outro lado da moeda, o título do clássico artigo de Stephen Gould e Richard Lewontin de 1979 sobre o “paradigma Panglossiano” que criticou o “programa adaptacionista”; mas deixamos para depois essa discussão).


Portanto, nesse sentido de perfeição da natureza e das adaptações, sob um ponto de vista de otimização e de engenharia, a ideia de DI não seria tão plausível. De fato, ela é refutada pelas evidências empíricas, o que reduz sua similitude em relação à hipóteses alternativas. Em resumo, Deus seria um péssimo engenheiro, no máximo seria algo como um MacGyver, aproveitando o que está disponível para resolver problemas à medida que eles surgem (para aqueles da minha geração que lembram da série de TV “Profissão Perigo”). Por outro lado, as adaptações fazem todo o sentido quando pensamos em adaptação (ou exaptação) e consideramos os padrões de ancestralidade, de modo que comparativamente chegamos facilmente à ideia de que entre as 3 hipóteses que poderíamos pensar para explicar a complexidade dos organismos, não há discussão (de fato) sobre qual delas teria a maior similitude, em termos de compatibilidade com o maior número de evidências oriundas de diferentes fontes.


Claro, os atuais defensores do DI não concordam com nada disso e insistem que há características dos organismos que não podem ser explicadas ou entendidas sem um evento de criação planejada e falam, por exemplo, de “complexidade irredutível” (o foco aparentemente tem sido recentemente características em um contexto bioquímico ou molecular). Mas análises mais detalhadas realizadas extensivamente mostram que não é o caso e que sempre há explicações adaptativas ou exaptativas. Além disso, mesmo que haja padrões ou processos que não conseguimos entender ou explicar (isso é normal na Ciência, aliás...), o que fazer com tudo aquilo que conseguimos explicar? Por ausência de explicação para alguns fenômenos levaria automaticamente ao DI, dado a similitude da ideia de evolução? Os defensores do DI não aceitam essas evidências e dizem, a partir daí, que a questão continua em aberto e que é preciso discutir e debater.


Nesse contexto de continuar o debate, os defensores do DI acusam os biólogos evolutivos de terem a mente fechada e não aceitarem “novas” ideias (novas, sério?), não aceitando os questionamentos feitos. Eles apelam para a liberdade de expressão, para a valorização da crítica e do pensamento livre, que seriam valores inerentes à Ciência, para justificar suas exposições...Isso realmente não é verdade e nada mais é do que parte de um processo de vitimização, inclusive porque há de fato hoje muita discussão sobre os processos envolvidos na adaptação e no surgimento de estruturas complexas, no contexto da “síntese expandida”, por exemplo. Nesse sentido, aproveitando a deixa e voltando à razão inicial da postagem, a resposta oficial da UFMS às críticas à palestra de abertura do evento coloca a questão exatamente nesses termos, algo típico da atitude das pessoas envolvidas com pseudociência e do negacionismo:


"A Universidade constitui-se em um local para imersão em temáticas diversas, para expansão do conhecimento, para debate livre de teorias e propostas, em respeito à pluralidade e diversidade de conhecimentos e de ideias, presente no mundo acadêmico, como previsto na Constituição que estipula que o ensino será ministrado observando-se o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (art. 206, III, da Constituição Federal), preceito presente na programação do Integra UFMS 2020 e da SBPC, realizada em 2019 na UFMS".


Não há debate científico nesse caso nem é preciso admitir esse tipo de “pluralidade”. O problema que enfrentamos aqui é a origem do argumento e a necessidade de defender ideias ultrapassadas por razões que não estão, de fato, ligadas à evidência disponível, ou mesmo à ausência dela (já que os cientistas sempre admitem que não se sabe tudo). O que está em jogo é a necessidade de manter ideias religiosas fundamentalistas e ultrapassadas (mesmo no contexto teológico) que, no final das contas, estão fortemente ligadas a interesses políticos ou econômicos. Como tenho dito, o Diabo está nas correlações, de modo que estamos de volta à pseudociência e ou negacionismo...


Mas há ainda um último argumento interessante que ainda podemos explorar, na tentativa de dar um sentido lógico e racional à concepção de DI, que possui desdobramentos em termos de discussão lógica e teológica. Toda a discussão da similitude acima, de fato, começa com a ideia de Paley da perfeição da adaptação, depende desse pressuposto. Esse aspecto, claro, pode ser evitado rapidamente com um argumento ad hoc de que Deus pode fazer o que quiser (lembrando a discussão entre Einstein e Bohr; quando vamos parar de dizer a Deus o que ele ou ela podem ou não fazer?). Na verdade, se for usado o argumento “ad hoc” de que Deus poderia fazer qualquer coisa, toda a discussão acima sobre similitude perde o sentido e a ideia de DI deixa ser testável ou verificável (voltamos a esse ponto no final da postagem). Mas, para fins de continuar o raciocínio e entender mais questões interessantes, vamos em frente então assumindo que poderíamos hipotetizar sobre como Deus pensa.


Defensores do DI poderiam colocar que, na verdade, Deus criou a vida de uma forma lógica e sequencial, de modo que APARENTEMENTE, e apenas aparentemente, ela surgiu por evolução e que seu ajuste ao ambiente ocorreu por seleção natural. É outro argumento antigo e que me lembra a ideia de que Linnaeus, ao estabelecer o esquema seguido (parcialmente) até hoje de classificação zoológica e botânica estava, de fato, tentando entender o “plano divino de criação”. Me lembra também o argumento de que Deus colocou os fósseis no registro geológico para que nós os descobríssemos e criou grupos de organismos similares de forma proposital, simulando a existência da árvore da vida e da evolução, tudo isso apenas para testar a fé dos Homens.


Nessa última linha, Sober coloca que poderíamos tentar distinguir a similitude das duas hipóteses (evolução versus DI) se conseguirmos testar hipóteses auxiliares sobre como Deus pensa: será que Deus, perfeito, onipotente e onipresente, criou a natureza dessa forma (perfeita, como colocou Paley), ou ele é um trapaceiro egocêntrico e desconfiado que só está interessado na adoração das pessoas de forma irracional? Ou será que não estamos falando de Deus, mas sim do “Demônio Enganador” de Descartes? De qualquer modo, podemos concluir que realmente as hipóteses seriam equivalentes e impossíveis de distinguir, já que as suas predições são iguais. Voltamos ao debate, portanto, e para resolver isso precisamos lembrar de outro problema importantíssimo na filosofia da ciência, que é a tese de Duhem-Quine sobre o “holismo do teste” das hipóteses científicas. Ou seja, precisamos sempre de hipóteses auxiliares ou pressupostos em paralelo que sejam independentes da hipótese principal para tentar chegar a qual delas teria uma maior similitude ou seria “correta” ou “confirmada” (e a discussão surge porque, de forma recorrente, essas hipóteses ou pressupostos também podem precisar de novas hipóteses auxiliares, formando uma teia complexa de testes que muitas vezes torna difícil, ou mesmo impossível, concluir em definitivo sobre uma hipótese). Em outras palavras, e invertendo o raciocínio, como vou saber se a minha hipótese principal foi refutada porque ela está realmente errada ou porque alguma das hipóteses auxiliares estava equivocada? Esse argumento minou muito da iniciativa dos empiristas lógicos de encontrar critérios absolutos de “confirmar” teorias científicas e afeta a diferença entre falsear e confirmar defendida por Popper. A saída, em principio, é avaliar as similitudes.


Voltando ao teste do argumento do DI e pensando na tese de Duhem-Quine, mesmo diante da evidência empírica de que as adaptações são imperfeitas e fugindo ao “ad hoc” de que Deus pode fazer o quiser (inclusive deixando solto o “Demônio Enganador”?), será que essas hipóteses auxiliares são “testáveis”? Como já discutimos, se aceitarmos a tese original de Paley da perfeição das adaptações, encerramos a discussão e o DI é inválido, já é contra a evidência empírica e isso reduz drasticamente sua similitude. Se, por outro lado, conseguimos aceitar bem a ideia de que Deus ou alguma outra entidade maligna está nos enganando em relação à evidência, então poderíamos realmente aumentar a similitude do DI e eventualmente concluir que ele é uma explicação plausível para a complexidade (sem pensar nas outras hipóteses auxiliares para a ideia de evolução, mas vocês entenderam o ponto...). Como vamos decidir sobre isso? Dada a diferença das percepções das diferentes religiões sobre Deus, e mesmo comparando o comportamento do Deus biblico no Velho e no Novo Testamento, acho difícil chegar a um consenso nesse sentido...Mas, como diz Yuval Harari nas suas “21 Lições para o Século XXI”, quando as pessoas hoje invocam a existência de uma “entidade superior” tentando parecer mais racional, elas usam como argumento a complexidade do Universo, a amplitude do desconhecido e se maravilham diante da perfeição da Natureza, falando assim do Deus de Spinoza e de Einstein (que, como já discutimos também, era uma forma elegante de disfarçar o ateísmo ou, na melhor das hipóteses, o agnosticismo). Entretanto, de forma súbita e paradoxal, rapidamente essas mesmas pessoas passam a saber exatamente o que Ele (ou Ela) quer, o que podemos ou não fazer, e dizemos que isso é a base no nosso código moral, escrevendo tuto isso em muitos detalhes nos vários textos sagrados. Cada texto é diferente do outro, claro...


Assim, quando se trata da mente de Deus podemos defender qualquer coisa e sustentar qualquer argumento dependendo dos nossos interesses, e isso torna qualquer avaliação do DI definitivamente não-científica e metafísica. Nesse contexto, um outro ponto interessantíssimo que já discuti anteriormente é que o argumento do DI poderia ser valido mesmo se “Deus” for substituído por uma civilização alienígena extremamente avançada, de modo que nós (e a natureza) seríamos apenas mais um experimento na sua tentativa de entender de onde eles vieram. Como disse James T. Kirk ao suposto Criador que vivia preso no centro da Galáxia, em Star Trek V, “...Why God needs a Starship?”. Será que os defensores do DI estariam dispostos a aceitar a hipótese do Criador trapaceiro se este for realmente uma inteligência alienígena e não o Deus de Abraão, e assim abandonar todas as suas convicções religiosas fundamentalistas? Duvido, pois, como disse, o diabo está nas correlações...Mas quem sabe!


Bom, temos falado com frequência que as ideias de DI não são científicas porque não são testáveis ou verificáveis, sob diferentes princípios filosóficos (não seria falseável em um sentido Popperiano, por exemplo). Mas, com tudo que discutimos acima, fica claro que o argumento do DI poderia sim ser discutido sob um ponto de vista racional (e de fato foi, até Hume). Poderíamos, para fins de raciocínio, assumir e testar algumas coisas sobre a mente de Deus, embora isso esteja de fato além dos limites da ciência...De qualquer modo, como coloca Sober, podemos avaliar e claramente descartar a ideia de DI pelo menos como um exercício de lógica e de epistemologia. Alguns devem achar isso inútil e uma grande perda de tempo, e nesse contexto de criacionismo eu até estaria disposto a concordar (mas achei interessante avaliar isso dessa forma, muito didático...). De qualquer forma, diante de tudo que coloquei acima e sob esse pressuposto de avaliação racional, o problema então passa a ser: vamos discutir isso até quando? Mesmo se quisermos pensar de forma racional e voltar a todo o pensamento clássico e racional da teologia para justificar a existência de um Criador, como colocaram São Tomás de Aquino e Descartes, vamos ver (a seguir) que esses argumentos não se sustentam mais.


Mesmo deixando momentaneamente de lado a questão de encarar essas ideias como pseudociência HOJE, as ideias sobre DI e criacionismo “científico”, segundo Sober, não deveriam mesmo ser ensinadas nas escolas e ou defendidas não (só) por razões teológicas - um argumento que sempre usamos, de fato - mas sim porque elas JÁ FORAM eliminadas do rol de ideias (científicas ou pré-científicas) válidas há muito tempo! Seria a mesma coisa que falarmos sobre terraplanismo, astrologia, geocentrismo, frenologia, éter, flogisto, e tantas outras ideias que podem, em algum momento, até ter feito algum sentido para algumas pessoas, mas não fazem mais (será que Sober lembra que uma parte considerável da sociedade brasileira e norte-americana no início do século XXI acha que a Terra é plana??? Difícil...). Não ensinamos hoje uma série de “teorias” ou ideias antigas sobre o Universo e sobre a Natureza simplesmente porque elas não são mais consideradas válidas e não nos ajudam a entender os fenômenos naturais (exceto como “curiosidades” históricas ou se estivermos discutindo em um contexto bem específico a origem e a evolução do conhecimento até chegar às ideias atuais). Esse último argumento de Sober nos leva a dois pontos finais importantes, a partir da questão início sobre o “início da ciência”.


Primeiro, do que estamos falando então quando se menciona “...o surgimento da Ciência?” Como coloquei no início da postagem, entendo que estejamos falando do surgimento da abordagem e estratégia de investigação científica moderna na Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, sob um ponto de vista epistemológico. Mas não podemos esquecer que o início da ciência, em termos de “objeto de estudo”, foi bastante específico no sentido de estar ligado ao que entendemos hoje por “Física”. Então, realmente é uma posição extremamente arrogante, para dizer o mínimo, reduzir o início da Ciência ao início da Física (e logo em seguida da Química, depois da Geologia, depois da Biologia). As diferentes áreas da Ciência surgem em momentos diferentes e suas principais ideias e princípios unificadores surgem à medida que as áreas vão amadurecendo, desenvolvendo seus métodos específicos e entendendo melhor os fenômenos nos quais estão interessados. Então, o surgimento da própria Biologia Moderna coincide justamente com o fim do argumento do DI, de modo que todo o raciocínio de Sober, embora válido sob o ponto de vista racional e epistemológico, deve ser encarado mais como um exercício didático e de boa-fé do que como uma discussão real sobre Ciência. A ideia de DI, no sentido da Biologia como Ciência, seria, portanto, pré-científica. Sobre os grandes cientistas (ou filósofos) do passado terem apoiado o DI, pena que eles viveram antes de Darwin. Melhor não apelarmos para sua genialidade nesse sentido e nos fixarmos em suas contribuições nas suas próprias áreas do conhecimento, aceitando sua honestidade no sentido de respeitar a melhor evidência que havia disponível na época. Quanto a “grandes cientistas” de hoje que apoiam o DI, sem mais comentários...


Em segundo lugar, e finalizando e encerrando nossa discussão, pensamos então que hoje a ideia do DI é pseudocientífica e negacionista não porque seja religiosa e teológica, e nem mesmo porque as proposições em si não sejam científicas, no sentido de não serem necessariamente testáveis ou falseáveis. Dizemos isso por causa da ATITUDE das pessoas envolvidas em termos de negar e não aceitar a evidência científica e o acoplamento da experiência empírica com as concepções teóricas. A problema não está necessariamente nas proposições “em si” e sim nas pessoas! Como já discutimos anteriormente, depois de todas as longas discussões sobre o que faz uma ideia ser considerada científica ou não, chegamos à conclusão de que um aspecto fundamental é a atitude do cientista diante da evidência e os valores pessoais envolvidos na busca pelo conhecimento, como coloca Lee McIntyre em seu excelente livro de 2019 “The Scientific Attitude” (que já discutimos em detalhe na postagem sobre a “matriz de Sagan”). No sentido que coloca Sober, as proposições sobre DI são simplesmente ingênuas, ultrapassadas ou equivocadas e foram pensadas em uma época em que não havia, de fato, Biologia como Ciência, no sentido que entendemos hoje. O problema está em usar e invocar essas ideias hoje e querer apresentá-las como “científicas”, forçando debates que não existem. Mais uma vez, o diabo está nas correlações...


Chegamos, assim, à discussão sobre o “critério de demarcação”, ou seja, como distinguir Ciência e Não-Ciência. Karl Popper se dedicou extensivamente a essa questão e se refere a ela como sendo o “problema de Kant” (do mesmo modo que o problema da indução é chamado de “problema de Hume”). Chegamos, finamente, ao filósofo alemão Immanuel Kant (1724 – 1804), segundo alguns o maior filósofo que já existiu! No famoso Crítica da Razão Pura, de 1781, ele faz uma análise detalhada da metafisica clássica, incluindo questões sobre a alma, sobre Deus e sobre questões cosmológicas discutidas na época, e mostra que é claramente impossível decidir sobre elas, inclusive porque as “provas” dadas a questões são racionalmente corretas mas chegam a conclusões contraditórias (daí o título do livro). Encerramos com Kant a discussão sobre possibilidade de estabelecer a similitude de ideias sobre a “mente de Deus”, no exercício acima. Com essa crítica à metafísica, Kant termina por fazer, em um certo sentido, uma unificação das tradições racionalistas e empiristas e abre caminho para a epistemologia moderna e coloca muitas das questões fundamentais da filosofia da ciência que discutimos até hoje.


A minha intenção é convencer todos os que creem na utilidade de se ocuparem de metafísica de que lhes é absolutamente necessário interromper o seu trabalho, considerar como inexistente tudo o que se fez até agora e levantar, antes de tudo, a questão: se algo como metafísica é possível” (Prolegômenos, 1783).




Voltamos, sim, ao início da ciência, ao início da filosofia da ciência, mas esse retorno nos mostra que a preocupação em demarcar a Ciência e afastá-la de formas de pensamento dogmático e sem sentido, especialmente em um contexto de metafísica, está presente desde o início. Está claro que podemos distinguir entre Ciência e não-Ciencia de diversas formas, embora no final é a postura e a atitude dos indivíduos, das pessoas, que determina o avanço do conhecimento ou sua estagnação. As ideias sobre DI já deveriam ter sido eliminadas do pensamento ocidental desde o século XVIII (ou XIX, na pior das hipóteses), mas como coloquei em uma postagem recente, continuamos a lutar contra o obscurantismo e contra a falta de racionalidade. Mas pelo menos podemos dizer que a refutação das ideias metafísicas sobre DI a partir do início do Darwinismo foi uma das grandes conquistas da Biologia, com desdobramentos que agora permeiam todo o pensamento científico. Essa é uma contribuição que jamais devemos esquecer e da qual, certamente, devemos nos orgulhar como biólogos.




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