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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Liberdade de expressão e o "Paradoxo da Tolerância" : o que a ciência tem a ver com isso?



Chegamos ao final de mais um ano...Na realidade, foi um ano “épico”, no melhor sentido da expressão, com direito à uma vitória espetacular quase no final...Mas será que acabou? Vamos aguardar, sem dúvida temos muitas coisas para discutir a partir dos tantos eventos que aconteceram nos dois meses desde a última postagem aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias”. Na verdade, aconteceu tanta coisa que confesso que fiquei meio “paralisado” para escrever aqui em meio às muitas demandas típicas do final do ano. “Eu tenho pressa e tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim...”. Pois é, então lembrei de algo importante que, ao mesmo tempo em que está alinhado com o momento atual de dezembro de 2022, ecoa a principal motivação subjacente ao blog e meus interesses atuais como pesquisador, abrindo espaço para outras postagens.


Claro, o momento atual refere-se ao início da nova gestão do Governo Federal, depois de 4 anos do (des)governo Bolsonaro. Em retrospecto, todos que acompanham o “Ciência, Universidade e outras Ideias” sabem que a motivação inicial para a sua criação foi justamente responder, humildemente, aos ataques à Universidade brasileira e à ciência que se iniciaram em 2019, ou mesmo ainda durante a campanha em 2018. Discutimos muitos temas gerais, mas com mais frequência os ataques à Universidade por parte do próprio MEC, o desmonte do Sistema Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação, com ênfase nas atrapalhadas na CAPES, sem esquecer do avanço da onda criacionista associada ao fundamentalismo neopentecostal. Com a chegada da pandemia, as coisas se agravaram e o negacionismo e a pseudociência praticamente se oficializaram, ganhando espaço não só em relação à COVID-19, mas se associando a outros elementos do movimento conservador. A forte “pauta de costumes” se alinhou muito bem a essas crenças e visões fundamentalistas e anticientíficas, gerando uma nova base para o avanço da extrema direita no Brasil. Entender tudo isso certamente dará muito trabalho aos historiadores e sociólogos nas próximas décadas...


Boa parte das postagens aqui tentaram lidar com diferentes facetas esses problemas, com fases de maior ou menor pessimismo, mas eu sempre disse que “o diabo está nas correlações”. Essas correlações quase permitiram a reeleição de Bolsonaro agora em 2022, e certamente o perigo de voltarmos “às trevas” não passou, já que temos dezenas de milhões de pessoas que tiveram coragem de votar nele. E a gente achava que o problema de tantos evangélicos era não acreditar na evolução...Mais uma vez, santa ingenuidade!!! Sorte que temos pessoas como a vereadora Ava Santiago que nos ajudam a manter o otimismo em relação a conversas mais arejadas com esse segmento (mesmo que ainda não seja sobre criacionismo, talvez, mas ainda assim começamos a eliminar algumas das correlações conservadoras...que seja! Uma questão interessante em relação à pluralidade, certamente voltaremos a isso...). De qualquer modo, e apesar de tudo, o presidente Lula venceu as eleições de 2022, então em um primeiro momento vamos tentar manter o otimismo!


Mas todo esse movimento não terminou, isso é claro...Não vai ser fácil e não vai ser rápido resolver tantos passivos, como discutimos na última postagem. Na verdade, faltando poucos dias para a posse de Lula, estamos assistindo a uma série de eventos surreais, incluindo a tentativa de invasão da PF no dia da diplomação do presidente e do vice-presidente. Na semana passada assistimos à prisão de um bolsonarista que planejava um atentado de grandes proporções ao aeroporto de Brasília. Tudo isso acompanhado pelas notícias contínuas dos acampamentos bolsonaristas em frente aos Quarteis do Exército, revelando também uma complacência das autoridades e forças policiais em lidar com tudo isso.


Um dos argumentos que ouvimos em relação a esses eventos (em especial sobre as manifestações nos quarteis) é que tudo isso pode ser justificado e compreendido em nome da “liberdade de expressão”. Essas pessoas entendem que houve fraude nas eleições, que há uma grande conspiração para retirar Bolsonaro do poder e, portanto, elas têm o direito de se manifestar e de pedir uma intervenção militar e o estabelecimento de uma nova ditadura, sepultando a democracia instalada a duras penas no Brasil a partir de 1988 (usando a promulgação da constituição como um marco da redemocratização). Muitos argumentos confusos, baseados em informações equivocadas e visões distorcidas da realidade (“o diabo está nas correlações”), mas em resumo é isso.


Acredito que boa parte dos leitores aqui entende que esse argumento não é válido, pois não é permitido usar a liberdade de expressão para criar algo que vá eliminar essa liberdade. Em um contexto político, a democracia não deveria permitir a existência de algo que vá destrui-la por dentro. Obviamente, a liberdade de uma pessoa esbarra em várias outras liberdades individuais e coletivas, de modo que há limites (de fato, todas as ideias centrais sobre liberdade de expressão encontram-se em diversos incisos do artigo 5º. da Constituição Brasileira de 1988, especialmente o inciso IX).


Entretanto, pelo que eu entendi, há uma certa discussão jurídica sobre essa questão das manifestações antidemocráticas, e alguns juristas parecem defender uma prioridade (ainda que limitada) da liberdade de expressão. O argumento é que seria possível falar em liberdade de expressão desde que que não haja um problema “real”, ou que a incitação a esses atos não seja diretamente provocada por alguém com potencial para torná-los realidade (como o próprio presidente ou pessoas influentes no Governo). Não sei se são apenas bolsominions querendo justificar as manifestações ou se há mesmo uma discussão legítima aí. Mas entendi que o STF, na figura do ministro Alexandre de Moraes, aparentemente já concluiu sobre a criminalização sim desses atos, especialmente nos casos que houver prejuízos as outras pessoas, como bloqueios de estradas (mas isso deve ser expandir). De qualquer modo, o objetivo aqui não é entrar em uma discussão jurídica (seria demais...), mas sim pensar conceitualmente sobre o tema. E nesse ponto aparecem várias conexões mais amplas e mais interessantes com muitos temas que temos discutido aqui no “Ciência, Universidade e outras Idéias”.


Nesse contexto dos atos antidemocráticos após as eleições 2022 e da liberdade de expressão, e mesmo antes delas, talvez alguns de vocês tenham ouvido falar do “Paradoxo da Tolerância”, que diz que:


“A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até aqueles que são intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes, o resultado será a destruição dos tolerantes, e com eles, da tolerância...” 


Em resumo, “só não deveríamos ser tolerantes com os intolerantes”. A ideia é paradoxal porque se a liberdade de expressão é um componente fundamental das sociedades democráticas, tolher essa liberdade é contra a democracia. Por outro lado, deixar essas práticas intolerantes acontecerem pode levar ao próprio colapso dessa democracia. Há várias interpretações equivocadas e descontextualizadas (parciais) dessa ideia e que têm sido utilizadas pelos bolsominions para justificar seus atos. Ao mesmo tempo, é preciso definir mais explicitamente (se queremos tentar “operacionalizar” uma solução para o paradoxo) o que é ser intolerante.


Entretanto, acho que poucos dos leitores sabem que essa ideia foi formulada pelo grande filósofo da ciência Karl Popper (1902-1994), em uma nota em um dos seus livros mais famosos, os dois volumes da “Sociedade Aberta e Seus Inimigos” de 1945, de onde retirei a citação acima. O livro foi escrito enquanto Popper estava refugiado na Nova Zelândia, após fugir de Viena quando começou a ocupação nazista na região. Popper lança nesse livro as bases do seu pensamento liberal e faz fortes críticas às ditaduras e aos regimes políticos fechados e totalitários. A ideia do paradoxo não é tão nova nem tão inovadora, e remonta de fato a Platão (como tudo...), passando por Stuart Mill no século XIX, tendo sido discutida depois de Popper em mais detalhes pelo filósofo John Rawls.



Sir Karl Popper (1902-1994) e os dois volumes da "Sociedade Aberta e Seus Inimigos" (essa minha tradução, herdada da biblioteca do meu pai, é da EDUSP de 1974).

Cresci ouvindo meu pai falar do paradoxo, mas ele começou a aparecer mais na midia no início de 2022, quando o apresentador de podcast Monark defendeu publicamente a criação do partido nazista. O tema voltou agora por causa das discussões sobre liberdade de expressão em relação aos acontecimentos pós-eleição. Confesso que fiquei bastante orgulhoso ao assistir a diversos debates e ler bastante coisa sobre isso nos últimos meses (vejam uma síntese pela Cora Ronaí aqui), já que Popper sempre foi uma das principais referências como cientista. Nós já falamos brevemente dele em uma das primeiras postagens aqui do “Ciência, Universidade e outras Ideias” mais voltadas para questões mais amplas e gerais em ciência.


Popper é certamente o filósofo da ciência mais influente do século XX, extremamente reconhecido pelos cientistas principalmente pelo seu “princípio da falseabilidade”, que é o centro de sua filosofia. Há muita coisa para discutirmos no pensamento de Popper, o chamado “racionalismo crítico”, mas a sua ideia central é que não é possível jamais confirmar uma teoria científica (rompendo assim com uma forte tradição indutiva anterior). O máximo que conseguimos fazer é refutá-la (rejeitá-la) e mostrar que ela é falsa. O conhecimento científico avança justamente porque, ao refutar uma teoria, somos forçados a procurar outra que funcione melhor, embora jamais tenhamos qualquer garantia de que ela represente a "verdade". Assim, se não somos capazes de realmente confirmar uma teoria que, até aquele momento, funciona, o melhor que podemos fazer é continuar trabalhando com ela até que algo mais interessante apareça. Mas temos que sempre manter a mente aberta para outras ideias que possam surgir.


Além de nos ajudar a entender a questão da atividade científica e do avanço do conhecimento por um processo de “conjecturas e refutações”, o princípio da falseabilidade permite definir quando uma teoria pode ser considerada cientifica, gerando assim um critério de demarcação entre ciência e não-ciência (e que Popper denominou de “problema de Kant”; lembrem do seu mais famoso livro “Crítica da Razão Pura”, de 1781). Para Popper, uma teoria precisa ser potencialmente refutável, ou seja, se um teoria "explica tudo" ou não admite falhas, ela não deve ser considerada científica. Vira um dogma, ou uma ideologia, o que pode ser legítimo, claro (mas não é ciência...). Essas "teorias" podem, além disso, se tornar uma base para a pseudociência (ai sim temos um problema!). Há muito para discutir aqui, e essa ideia de demarcação vai e volta diante da complexidade e da heterogeneidade de práticas nas diferentes áreas da ciência (temos inclusive um “epitáfio” para os critérios de demarcação escrito em 1983 por outro dos meus filósofos favoritos, Larry Laudan). De qualquer modo, precisamos retomar alguns dos pontos principais dessa discussão, que se tornou crítica novamente em função do enorme avanço do negacionismo e da pseudociência, como mostrado mais recentemente por Massimo Pigglicucci e Lee McIntyre em dois livros fortemente recomendados sobre esse tema! Voltaremos a esse tópico importante sobre os critérios de demarcação com mais calma posteriormente...





A ideia da falseabilidade é às vezes considerada estranha e contra-intuitiva em relação ao avanço do conhecimento e bem diferente da visão da maior parte das pessoas sobre como a ciência funciona (ainda fortemente influenciada por uma visão positivista ingênua associada ao acúmulo gradual do conhecimento por confirmação de teorias, como já discutido). De qualquer modo, para que possamos entender melhor o princípio da falseabilidade e o racionalismo crítico de Popper precisamos ressaltar a questão da atitude arrojada do cientista, sua postura crítica diante da evidência, sempre bancando o “advogado do diabo”. O cientista está sempre inquieto, nunca está satisfeito com aquilo que sabe e deve sempre procurar uma explicação melhor para os fenômenos que estuda. Não é à toa que Popper, diferente dos filósofos da ciência que o antecederam no início do século XX, se tornou tão popular entre os cientistas.

Muitas coisas aconteceram na filosofia da ciência após a segunda metade do século XX e, de certo modo, a visão Popperiana passou a ser considerada “ingênua”, como já discutimos aqui várias vezes aqui no blog (afinal, o cientista precisa comer...).. Há muitas coisas para repensar, mas em resumo acho que Popper continua atual...Gosto de pensar hoje que sou um “Popperiano não-praticante”, o que diz muita coisa epistemologicamente, levando inclusive a um arrependimento tardio em alguns aspectos. De qualquer modo, está claro que um dos pontos centrais da nossa luta hoje contra o negacionismo e a pseudociência, e que entendo que mantenha vivo parte do pensamento Popperiano, é justamente a questão da atitude do cientista diante da evidência. E, mais importante, isso nos leva de volta ao paradoxo da tolerância e como isso se encaixa de forma mais ampla em seu pensamento.


Na verdade, Popper entendia que a atitude diante da evidência e o pensamento crítico não seriam uma prerrogativa do cientista, mas sim de todos os cidadãos, coerente com seu pensamento liberal em termos de política e economia! Esse princípio geral permitiria não só avançar a ciência, mas envolveria um avanço em paralelo da própria sociedade. As eleições periódicas, por exemplo, seriam um momento de reavaliar e democraticamente corrigir o curso da sociedade, a partir de uma avaliação crítica do desempenho dos governantes. Não tenho “background” para avançar muito nesse tópico de evolução social, inclusive porque sei que muitos dos meus colegas e amigos sociólogos e cientistas políticos não são lá muito fãs de Popper, para dizer o mínimo (inclusive porque o “Sociedade Aberta e Seus Inimigos” contém uma forte crítica ao Marxismo...). Mas entendi, pelas discussões recentes, que o paradoxo da tolerância é uma contribuição relevante e que devemos sempre manter isso em mente. Excelente!


Mas há um outro ponto MUITO interessante aqui. Entendo que um raciocínio análogo ao paradoxo da tolerância se aplica à própria atividade cientifica, demonstrando a coerência geral do pensamento Popperiano. Ele defendia que a ciência avança pela proposição de novas ideias (conjecturas) que devem ser postas à prova no mundo real, empiricamente (sendo potencialmente refutáveis). Essas ideias surgem de forma criativa, de forma dedutiva a partir de princípios fundamentais e pressupostos, em grande parte independentemente dos dados empíricos. A criatividade e capacidade de inovação são os elementos que dão maior destaque ao trabalho de um cientista! Popper rompe com a visão mais tradicional do cientista observando os fenômenos e, partir dai, analisando "objetivamente" as informações e chegando a conclusões "neutras" e "imparciais". Tudo começa com as ideias para ele, uma exaltação da criatividade humana! Para que isso aconteça, entretanto, é preciso estar livre para pensar e para colocar em práticas novas ideias, nem sempre seguindo o que se sabe naquele momento. E, em muitas ocasiões, essas ideias podem romper com aquilo que achamos que sabemos e nos levar a uma outra visão de mundo (para Kuhn isso seria uma “revolução científica”, uma quebra de paradigma, em uma escala maior, mas há outros pontos de distinção aqui).


É justamente a partir dessa questão das novas ideias que começamos a esboçar uma analogia com o paradoxo da tolerância de Popper. Vejam que muitos “pesquisadores” da pseudociência e negacionismo, incluindo criacionistas, ufólogos, defensores da Terra plana, lideres dos movimentos antivacina e negacionistas climáticos, usam o argumento da liberdade de expressão para dizer que eles ou elas são revolucionários e que estão sendo perseguidos pela comunidade científica que é tradicional e conservadora! O argumento, portanto, é que esses “pesquisadores” teriam direto de apresentar suas ideias, que talvez sejam inovadores só que ninguém sabe ainda (há muito do que tenho chamado de “complexo de Galileu” aí, claro, mas seguimos com o raciocínio...). De fato, como coloca muito bem McIntyre ao propor a ideia da “Matrix de Sagan”, a ciência existe em um limiar tênue entre liberdade e conservadorismo. A melhor metáfora para isso continua sendo a frase de Carl Sagan, “é preciso manter a mente aberta, mas não a ponto do cérebro cair para fora da cabeça”.


Sabemos que, na prática, os vários componentes sociológicos da atividade científica podem sim criar restrições a novas ideias e canalizar a agenda de pesquisa, mas de modo geral espera-se que, ao longo do tempo, as ideias corretas se mantenham (ou seja, aquelas ideias que sejam mais explicativas e que funcionem melhor na prática, por um tempo). Por outro lado, ideias bizarras ou que não se mostrem corretas ou funcionais serão gradualmente esquecidas. Então parece simples...mas não é!


Em um mundo ideal, qualquer nova ideia desenvolvida para explicar um dado fenômeno pode ser colocada “à prova”, e isso simplesmente resolve a questão. Então, sendo assim, porque os formuladores de pseudociência e negacionismo continuam insistindo que a comunidade científica não quer ouvir as evidências? Existem várias questões envolvidas aí, talvez a mais relevante delas é que na realidade essas ideias JÁ FORAM testadas há muito tempo (a questão do design inteligente, por exemplo, que já havia sido refutada por David Hume no século XVII; sem maiores comentários em relação ao terraplanismo...). O que as mantém é justamente os interesses sociais, políticos, econômicos ou religiosos associados à pseudo-ciência e especialmente no negacionismo.


Outro argumento utilizado para evitar refutar essas teorias e hipóteses pseudocientíficas é que não é possível testá-las com o instrumental atual da ciência. Esse é o caso de muitas práticas médicas, como homeopatia ou coisas do gênero, que dizem que a avaliação experimental é falha e não consegue “capturar” os efeitos que existiram na realidade. Uma justificativa semelhante é dizer que muitas dessas ideias ainda não são aceitas porque estão em discussão e no “limiar” do conhecimento. Pensem, por exemplo, em tantas coisas “quânticas” são mencionadas nesse contexto de pseudociência, para dar uma falsa impressão de algo sofisticado e avançado. No final nada disso faz sentido, claro, é só uma questão de tentar (e conseguir, infelizmente...) enganar as pessoas mesmo! Citando Carl Sagan mais uma vez, “Ninguém jamais deixou de ganhar dinheiro subestimando a inteligência das pessoas”.


Temos, então, uma aplicação clara do paradoxo da tolerância a ser discutido (e resolvido?) no nosso dia a dia da atividade científica. Em nome da criatividade e da inovação que movem o conhecimento científico, devemos aceitar e discutir qualquer ideia que seja colocada ou qualquer prática dita “científica”? A solução para o problema parece envolver, idealmente, duas etapas: 1) a comunidade científica de fato tem que estar aberta às novas ideias e deixar que elas sejam avaliadas da melhor forma possível; 2) os proponentes dessas novas ideias têm que estar dispostos a aceitar que, racionalmente, essas ideias podem ser refutadas e se mostrarem falsas, reconhecendo disso. Esse é o espírito Popperiano, e quero crer que tem sido assim pelo menos em uma escala ampla de tempo na história da ciência. Em relação ao ponto 1, entendo perfeitamente que às vezes os cientistas podem perder a paciência e que, de fato, isso cansa...Em relação ao ponto 2, há um limite racional que deve ser estabelecido, e sabemos que muitas dessas pessoas não são racionais e querem apenas ou tumultuar ou têm outros interesses mesmo. Talvez a já famosa frase “Perdeu mané, não amola....” se aplique mesmo nesses casos.


Temos, portanto, um certo limite (prático) à pluralidade na ciência, que não é uma linha rígida e pode ser algo difuso inclusive porque estamos sempre falando de atividade humana. Ele depende também do contexto histórico e da situação em cada área do conhecimento. Não é fácil, mas temos que avançar e tentar retomar a questão dos limites da pluralidade de pensamento, em um contexto mais amplo, pensando tanto em termos sociais-políticos (democracia) quanto em ciência! Segundo a visão inicial de Popper, podemos até tolerar inicialmente manifestações intolerantes, mas racionalmente é preciso que os seus proponentes sejam convencidos de que essa ideia proposta não pode avançar por romper com um princípio fundamental (no caso, a democracia). Como nem sempre esse convencimento racional é possível, o Estado deve ter mecanismos que permitam reprimir essa situação, especialmente em casos extremos (quando há violência ou restrição à outras liberdades individuais e coletivas). Aí é que precisamos definir os limites e o temos que aceitar o paradoxo, C’ Est la Vie, é isso mesmo...Popper continua sua descrição do paradoxo dizendo que:


“...Nesta formulação, não quero implicar, por exemplo, que devamos sempre suprimir a manifestação de filosofias intolerantes; enquanto pudermos contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia. Mas deveríamos proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo que pela força, pois bem pode suceder que não estejam preparadas para se opor a nós no terreno dos argumentos racionais e sim que, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação; assim podem proibir seus adeptos, por exemplo, que dêem ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensino-os a responder aos argumentos por meio de punhos e pistolas. Deveremos então reclamar, em nome da tolerância, a direito de não tolerar os intolerantes... Deveremos exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, do mesmo modo que no caso da incitação ao homicídio, ao sequestro de crianças ou à revivescência do tráfego de escravos"



Em um contexto científico, alguns podem ingenuamente achar que não há limites porque não há dolo e as questões de modo geral não levam à violência (seguindo o raciocínio jurídico aplicado às questões sociais e de democracia). Mas isso não faz muito sentido, e podemos pensar em muitos casos complicados. Só como um exemplo mais óbvio, e as milhares de pessoas que morreram de COVID-19 em função da campanha contra o isolamento social e do apoio ao movimento anti-vacina por parte do Governo Federal? E as consequências previstas, ainda não de todo compreendidas, da mudança climática? E o criacionismo, seria apenas uma questão “teórica” ou “filosófica”? Não sei, mas como vimos no fortalecimento do movimento de extrema direita no Brasil, o “diabo está nas correlações”. Entendo que, no contexto do paradoxo da tolerância, todo pensamento dogmático tende a ser uma ameaça, direta ou indireta, devendo, portanto, ser combatido. Notem também que a discussão sobre o movimento anti-vacina esbarra na mesma questão dos limites da liberdade individual em relação às liberdades coletivas.


Finalizando, saindo do abstrato e voltando para o Brasil em dezembro de 2022, e de forma otimista já avançando para janeiro de 2023, vamos esperar então que o paradoxo seja levado a sério pelas autoridades do novo Governo e pela justiça, para que não haja nos próximos meses uma escalada de violência e de modo a que esses eventos deploráveis não se repitam daqui a 4 anos. Retomando a citação de Popper, “... deveremos então reclamar, em nome da tolerância, a direito de não tolerar os intolerantes...”. Não é uma questão de vingança ou retaliação, é uma questão de civilidade e de entender que é preciso que a sociedade tenha uma atitude crítica em relação a tudo. Isso implica em importantes mudanças culturais e educacionais...Não vai ser fácil e não vai ser rápido. Precisamos também generalizar essa discussão e urgentemente olhar para as nossas próprias instituições de ensino e pesquisa e começar a pensar na questão dos limites da pluralidade acadêmica. Como lidar com tanto negacionismo e pseudociência em nossas instituições, praticados por colegas que deveriam entender como funciona a ciência e ter uma atitude crítica diante da evidência? Como combater esse discurso de liberdade de pensamento e de expressão que sustenta essas práticas? Não é fácil, um enorme “telhado de vidro” e que foi, de certo modo, usado nos ataques do (des)governo Bolsonaro às universidades públicas a partir de 2019...Realmente temos aí um paradoxo que precisa ser encarado de frente! Que Popper nos ilumine então!







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