Cansado... São tantos ataques absurdos, em tantas frentes, que ficamos perdidos e é mesmo difícil manter a sanidade...Às vezes nem dá para saber por onde começar a refletir e tentar pensar em como achar uma saída. Eventualmente voltamos hoje, 10/08/2021, no mesmo dia em que Bolsonaro apoia um desfile militar inesperado na praça dos Três Poderes em Brasília, com o objetivo declarado de intimidar o Congresso e o STF, aos já batidos ataques à Universidade e à educação como um todo. Como a ideia das postagens aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” durante a pandemia é também manter algo como uma “crônica” do que tem acontecido nesse momento sombrio, para que possamos relembrar depois e aprender com essas experiências, resolvi voltar ao tema...Ah, só para não esquecer, ainda estamos em meio do “apagão” nos sistemas do CNPq, mais um reflexo do descaso do Governo Federal com a ciência brasileira.
O pastor Milton Ribeiro, atual ministro da Educação, é uma figura apagada, que não mostrou nenhuma capacidade de gestão durante sua estada no MEC até agora (muito contrário, como pode ser percebido detalhadamente na excelente retrospectiva de Luiggi Mazza na Piaui). Além disso, como acontece com a maior parte dos gestores federais de alto escalão desde 2019, apoia atitudes negacionistas diante da pandemia e faz declarações confusas e equivocadas sobre o assunto que deveria, supostamente, dominar, como ministro. Diferente do seu antecessor, o infame Abraham Weintraub, parece que ele é menos impulsivo e menos "dado a arroubos", mas isso não significa que não pense as mesmas besteiras e, eventualmente, faça manifestações bombásticas que expressam a sua ignorância e falta de visão.
Basicamente, a fala recente do pastor Ribeiro se concentra em três aspectos: como diz o título da postagem, nessas declarações que ecoaram fortemente na mídia e nas redes sociais, gerando muitas e muitas manifestações, ele começa falando que a Universidade deveria ser “para poucos”. Essa afirmação, por sua vez, pode ser desdobrada em dois aspectos, a sua preferência pelos Institutos Federais de ensino técnico, e a questão das cotas sociais/étnico-raciais. Claro, o ministro quer priorizar o ensino técnico, pois ele sabe (ou acha que sabe...) que o ensino superior tem, em muitos casos, um objetivo um pouco diferente e que, mesmo com os problemas, não interessa a um Governo com aspirações ao totalitarismo teocrático.
Como já falamos aqui, pelo menos sob o ponto de vista ideal, a ideia é que os alunos no ensino superior tenham uma visão crítica e uma formação mais “densa”, envolvendo não só as questões específicas da formação profissional. O ensino superior deveria dar também uma formação ampla para o cidadão, dando a ele ou ela mais consciência social e política nas áreas de formação, desenvolvendo uma visão crítica do mundo e de sua área de atuação. Com isso, criticando construtivamente o que sabemos e pensando em novas soluções e novas respostas, avançamos como país e como sociedade. Na verdade, claro que isso não deveria ser prerrogativa do ensino superior, deveria ser algo que permeia o ensino desde o ensino fundamental, respeitando, claro, todas as questões pedagógicas e cognitivas. Mas sabemos que infelizmente isso não acontece no mundo real, claro, estamos longe disso...Não é à toa que temos tantos médicos, por exemplo, que não têm ideia de como a própria ciência médica funciona e continuam receitando cloroquina e ivermectina como tratamento para a COVID-19, como discutimos recentemente aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideias”. Mas isso é realmente um problema e mostra uma falha séria na formação desses jovens e na estruturação das matrizes curriculares em muitas áreas, e isso pode estar espalhado em várias áreas mais técnicas, nas ciências exatas e biológicas. Mas a ideia do ministro é justamente evitar esse tipo de formação ampla e ele não quer nem arriscar e, portanto, melhor agora dizer que vai priorizar o ensino técnico (quer mesmo? claro que não, só retórica; mas vamos em frente...). Certamente precisamos de profissionais com uma excelente formação como técnicos, em todos os níveis, e seria ótimo ampliar essas possibilidades também. Mas investir no ensino técnico passa não só por uma ampliação e valorização dos institutos, mas também valorização de carreiras. Será que o objetivo não é formar técnicos inclusive porque, assim sendo, pode-se aumentar o nível de exploração desses profissionais com salários inferiores? Não sei, mas certamente alguém está pensando nisso...Outro ponto, claro, é que esse apoio não significa que o ensino técnico e profissional precise ser, como certamente deseja o pastor Ribeiro, um ensino que forma pessoas sem consciência e que só sabem fazer algo sem pensar, de forma acrítica e sem reflexão, como autômatos e robôs (e vejam que talvez essa expressão nem faça mais sentido no início do século XXI, em tempos de IA...).
Continuando nos pontos levantados pelo pastor Ribeiro, temos a segunda questão, sobre "quem" está na Universidade brasileira. Idealmente, seria ótimo que TODOS os brasileiros tivessem acesso ao ensino superior, e que isso os ajudasse a melhorar de vida e desenvolver uma visão crítica do mundo e da realidade, como coloquei antes. Não estou falando do ensino superior atual, que aliás está dominado, em muitos casos, também por uma visão mercantilista e sendo realizado apenas para dar um diploma para aqueles que se arriscam a pagar por um serviço de péssima qualidade em muitos e muitos casos. Já discutimos aqui há muito tempo a questão do ensino superior privado no Brasil... Em tese, se tivéssemos um ensino superior efetivo, de qualidade e de maior alcance, isso diminuiria visões negacionistas, anticientíficas. Mas será que isso interessa a alguém com o perfil do pastor Ribeiro? Obviamente não, pois seu sucesso profissional está totalmente baseado na exploração da ignorância das pessoas.
Além da questão da formação ampla para todos, a ponto específico levantado pelo pastor Ribeiro diz respeito à lei de cotas de acesso ao ensino superior. Em todo o mundo civilizado se discute a questão da justiça social e os passivos históricos que precisamos resgatar, e as cotas étnico-raciais são uma solução inicial e emergencial. Nas IES federais e algumas estaduais brasileiras, temos 50% das vagas destinadas à alunos de escola pública (com menor renda familiar) e, dentro dessa cota, vagas étnico-raciais para pretos, pardos e indígenas (e há uma correlação entre questões sociais e étnico-raciais). Note-se que essas cotas não diminuíram o acesso das pessoas de classe social mais privilegiada às IES públicas, já que essas cotas vieram justamente no momento de expansão a partir de 2007-2009, com o programa REUNI do Governo Federal. Na verdade, há, em termos absolutos, mais vagas para a classe média/alta do que antes, isso sem falar na facilidade de acesso com a criação de novas Universidades Federais e campi em todo o Brasil, um processo de interiorização que já havia começado algo como 10 anos antes. Será que o pastor Ribeiro sabe disso? Aparentemente não, e ele diz ironicamente inclusive que quem paga a conta das Universidades públicas são os “filhinhos de papai”, que não podem ser prejudicados...
Outro ponto importante que discuti recentemente aqui no blog diz respeito à diversidade na Universidade, que é um dos efeitos causados em parte pela criação da lei de cotas (ou pelo menos esperado). Não só as cotas “em si”, claro, mas os efeitos correlacionados de aumento de empatia a partir do reconhecimento das diferenças, um maior crescimento emocional e psicológico de todos. Mas, além disso, como sugere Naomi Oreskes, professora de história da Ciência em Harvard, em uma visão moderna de ciência é importante termos múltiplas perspectivas, muitos olhares sob um problema. Isso não é, como muitos imaginam, um apelo a visões relativistas ou pós-modernas na ciência, mas o simples reconhecimento de que os consensos e as tomadas de decisão se beneficiam de múltiplos olhares. Com mais diversidade, e claro que se ouvirmos essas múltiplas opiniões vindas de diferentes backgrounds culturais e de percepção, menor é a chance de termos vieses e de tomarmos decisões distorcidas em relação a questões teóricas na ciência e aplicadas, em um contexto tecnológico! No fundo, é a mesma questão geral da democracia e da sociedade aberta e, portanto, mais uma razão para idealizarmos que toda a população brasileira, e mundial, tivesse acesso ao ensino superior. Se temos dominação cultural ou intelectual, quem garante que essa visão vai nos conduzir a uma sociedade mais justa e melhor? Apenas décadas depois de Hitler e Stalin é bem ingênuo achar que isso funciona. Mas, novamente, essa visão de uma Universidade plural interessa ao pastor Ribeiro? Obviamente não...
O outro ponto levantado pelo pastor Ribeiro se refere aos dirigentes das IES, que não deveriam, na sua opinião, ser “esquerdistas”. Eles deveriam ser “neutros”, pelo que entendi da sua fala atrapalhada...Sabemos que isso não existe, mas de qualquer modo o Governo faz o seu trabalho e, paradoxalmente, tem escolhido, dentro ou fora das listas tríplices, os dirigentes que estão mais alinhados com eles (não é, de fato, paradoxal, só mostra que a fala do pastor Ribeiro não tem nenhum significado, é apenas retórica vazia; eles não querem esquerdistas, mas sabem que não existe neutralidade, e o que eles querem são direitistas...). Claro que as Universidades devem ser o espaço de discussão e, de modo geral, não há muito problema em relação a isso. Encontramos na Universidade todas as vertentes políticas e ideológicas, embora claro que visões “à esquerda”, seja lá o que isso signifique de forma concreta, sejam dominantes. Estamos falando de pessoas, professores, técnicos e estudantes, que se preocupam com outras pessoas, que querem justiça social, que acreditam que a educação é capaz de transformar a sociedade, que não querem se curvar às grandes corporações que desejam manter seus lucros a qualquer preço, que se preocupam com os efeitos deletérios das mudanças climáticas, com os princípios de sustentabilidade, e por aí vai...Isso é ser de esquerda? Como dizia Lulu, “...e se isso for algum defeito, por mim tudo bem”.
Claro, a ideia de desenvolvimento científico, de modo geral, está bastante ligada à democracia, à liberdade de expressão e de ideias, à justiça social (pelo menos voltando momentaneamente à minha visão romântica estóica e iluminista). E temos uma boa tradição nesse sentido, vamos lembrar dos iluministas, de Bertrand Russel, de Einstein, Popper e dos filósofos do Círculo de Viena perseguidos pelo nazismo...Na verdade acho que temos na Universidade até muita tolerância com certos grupos de professores de extrema direita que, após 2019, começaram a ser “valorizados”, se sentido no direito (em nome de uma suposta liberdade de expressão) de falar uma série de absurdos, inclusive defendendo agora publicamente ideias retrógradas que incluem o criacionismo, o negacionismo climático, além de visões racistas e misóginas, que já cansei de discutir aqui. E por coincidência são esses mesmos “cidadãos do bem” que compactuam com as falas do pastor Ribeiro. Como tenho dito, o diabo está nas correlações...Ao me deparar com essas pessoas, me lembro sempre do “paradoxo da intolerância” de Karl Popper: só não deveríamos ser tolerantes com os intolerantes!
Finalmente, o pastor Ribeiro ataca não só aos reitores, mas a todos os professores, e voltamos então à questão das escolas fechadas durante a pandemia. Sem dúvida esse é um assunto polêmico e, sem querer concordar minimamente com a fala equivocada do pastor Ribeiro, há de fato muita discussão sobre os prejuízos resultantes do fechamento das escolas por tanto tempo. Já discutimos um pouco essa questão no final do ano passado, quando houve tentativas de reabrir as escolas um pouco antes do início da segunda onda de expansão da COVID-19 no Brasil, no final de 2020 e início de 2021. Na realidade, temos de fato uma situação de fogo-frigideira...O manifesto da ANPED e ABRASCO, e muitas outras sociedades cientificas, continua super atual, mas sabemos, por outro lado, que os brasileiros naturalizaram a pandemia. Mesmo com a campanha de vacinação, que vai aos trancos e barrancos e sem planejamento estratégico ou coordenação, estamos em um patamar semelhante ao platô da primeira onda. E agora, com o forte apoio do MEC e do Governo Federal, e do próprio CNE, muitos governos estaduais e municipais decidiram abrir as escolas e acabar com a pandemia “por decreto”.
Entretanto, o problema não é dos professores que não querem trabalhar, com sugere o pastor Ribeiro, mas sim de toda a política educacional totalmente equivocada que foi adotada no Brasil durante a pandemia, inclusive pelo próprio MEC. Talvez as escolas pudessem ter permanecido abertas, pelo menos parcialmente, com protocolos de segurança, testagem em massa, e principalmente se toda a sociedade tivesse consciência da importância social e educacional da escola e tivesse realmente priorizado sua abertura. Todos sabemos que isso não aconteceu, muito pelo contrário; temos uma situação caótica no brasil e totalmente fora de controle, com uma mortalidade absurdamente alta, isso se deve justamente à abertura total e à política negacionista do Governo diante da pandemia. E vejam que o próprio MEC liderou a falta de organização, inclusive culpando ou pressionando os Estados e municípios a abrirem as portas diante da pandemia. Não houve discussão geral sobre novas maneiras, e muito menos qualquer incentivo à adoção de ensino remoto, EAD, aumento da inclusão digital, reorganização dos espaços escolares, distribuição de equipamentos e outras medidas que poderiam ter mitigado o aumento nas transmissões do vírus e os efeitos nefastos da pandemia como o colapso nos sistemas de saúde e as mortes. E agora, em meio à muita incerteza na pandemia diante, mais uma vez, de uma nova variante que está causando preocupação em todo o mundo (mesmo nos países em que a situação está bem mais controlada), coloca-se que os protocolos serão suficientes para que haja um retorno com segurança...
Claro que há prejuízos com o fechamento das escolas, inegável, mas alguém estava mesmo preocupado com isso antes da pandemia? O pastor Ribeiro, ou seu antecessor, estava preocupado com a educação no Brasil quando, em 2019, as escolas estavam abertas? A impressão que tenho, em toda essa discussão, é que eles querem que as pessoas acreditem que antes de 2020 estava tudo maravilhoso no ensino no Brasil e agora as coisas ficaram ruins e pioraram por causa da pandemia...Assim, se voltarmos às atividades de forma presencial, retomamos o ensino de excelente qualidade e vamos dar às crianças e jovens uma excelente formação, que vai lhes garantir uma mudança no nível de vida e uma vida profissional plena. Sério??? A quem o pastor Ribeiro quer enganar...Se houvesse qualquer preocupação com o ensino, tudo seria diferente. E sem falar que “nada será como antes, amanhã...”; mas isso é outra questão que vamos ter que discutir.
E não vou nem retomar a ideia de que a Universidade, mais especificamente, nunca parou de fato. Mesmo que tenhamos tido algo como 5 ou 6 meses sem aulas e de atraso nos calendários acadêmicos, tempo que foi necessário para organizar as atividades remotas, muitas das demais atividades da Universidade, em termos de pesquisa, extensão e administração, continuaram. Claro que houve prejuízos em termos de trabalhos de campo ou laboratórios, etc, mas se fez muita coisa...E, claro, como tenho colocado em muitas das postagens aqui do “Ciência, Universidade e Outras Ideias”, a Universidade pública brasileira teve um papel muito importante para mitigar ou tentar auxiliar os Governos estaduais ou municipais no combate à pandemia, desenvolvendo e aplicando métodos de testagem, equipamentos de segurança, plataformas e aplicativos para análises e modelagem epidemiológica, dentre outras atividades. Será que o pastor Ribeiro sabe disso?
Enfim, será que o pastor Ribeiro sabe disso? O pior é que acho que ele sabe de tudo isso sim...Ele se coloca dessa forma só porque tem uma visão limitada do mundo, da ciência e da Universidade, e claro tem outros interesses escusos, sociais, políticos e econômicos. Com certeza teríamos mais coisas para discutir, mas desculpem, como disse logo no começo, estou realmente cansado: quando isso vai acabar? Só mais um desabafo entre muitos...
Em tempo, a convite da minha colega Mercedes Bustamante, da UnB, publicamos hoje, 17/08/2021, no Correio Braziliense, um artigo de opinião mais amplo (e mais curto) sobre toda a gestão desastrosa do MEC desde 2019...Além dos comentários acima, mencionamos os problemas no INPE e na CAPES! Esse é mais uma contribuição da Coalizão "Ciência e Sociedade", liderada pela Mercedes, que tem feito um trabalho fantástico no sentido de denunciar todos os absurdos que estão acontecendo no país, especialmente em termos de Meio Ambiente, Ciência e Educação Superior.
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