Criei esse blog em meados de 2019 para discutir principalmente o que fazemos na Universidade e como funcionam as atividades de ensino e pesquisa no Brasil, motivado pelos fortes ataques por parte do Governo Federal e do próprio MEC às nossas instituições. Com o tempo, fui ampliando um pouco a abrangência dos temas desse espaço e comecei a discutir questões gerais de ciência e pensar mais em termos de divulgação científica, sendo que no último ano a maior parte das postagens teve o objetivo de discutir questões ligadas à pandemia da COVID-19. Essas postagens refletem em grande parte a minha própria experiência durante a pandemia. Diante de mais ataques nas últimas semanas, em função de toda a discussão sobre a volta às aulas, acho que é oportuno juntar os dois temas e tentar esclarecer às seguintes questões: O que os professores das Universidades estão fazendo durante a pandemia? Nesse sentido, precisamos “retomar” as atividades na Universidade?
Essa semana foi publicada no D.O.U. a Portaria 1030 de 2 de dezembro de 2020, na qual o MEC determinou o retorno às atividades presenciais nas Universidades a partir de 4 de janeiro de 2021, uma posição contrária ao parecer anterior do Conselho Nacional de Educação (CNE). Claro, houve uma forte reação dos sindicatos e dos gestores das instituições, considerando a falta de condições para seguir os protocolos necessários a um retorno com segurança e a falta de discussão mais aprofundada sobre o tema. Diante dessa forte reação, o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse à mídia que iria revogar a portaria, mas em seguida disse que iria consultar as Universidades antes de fazer isso, ou seja, voltou atrás na decisão de voltar atrás. Difícil acompanhar e sempre fica a dúvida se essas idas e vindas nas decisões do Governo Bolsonaro refletem despreparo e/ou incompetência ou são apenas “cortinas de fumaça”? Mas isso é outro tema...
Mais interessante, na esteira da discussão e das atrapalhadas do MEC, o jornalista Augusto Nunes, da “Jovem Pan”, aproveitou para criticar fortemente os professores universitários dizendo que
“...Esses da turma da universidade estão infectados por uma estranha forma de exaustão que é provocada pelo excesso de vagabundagem. Ficam tanto tempo sem trabalhar que estão exaustos, precisam descansar”.
E, depois, de emitir uma série de opiniões inconsistentes sobre o funcionamento do ensino no Brasil, acrescentou que
“...É uma pena que não exista mais no conjunto das contravenções penais a figura da ‘vadiagem’. Minha mãe teria vergonha de ser professora em um momento desses.”.
Na verdade, o próprio vice-presidente Hamilton Mourão também destacou a hipocrisia da situação atual, já que os jovens não querem ir à Escola ou à Universidade, mas lotam os bares (aliás, por que os bares estão abertos mesmo? Boa pergunta...).
Ataques dos Bolsominions às Universidades e aos professores de modo geral não são uma novidade e têm sido feitos sistematicamente desde 2019 (ou mesmo antes, durante a campanha eleitoral) e, como comentei, foram a razão inicial para a criação do “Ciência, Universidade e Outras Ideias”. Também não precisamos repetir toda a questão do negacionismo e das posições anti-científicas do Governo Federal diante da pandemia. Entretanto, com a discussão sobre a 2ª. onda da pandemia e as discussões sobre a retomada das aulas em todo o Brasil, os dois assuntos se misturam.
Há alguns dias ouvia distraidamente o rádio quando apareceu um spot sobre “Retomada Responsável” que destacava o cumprimento dos protocolos e o retorno seguro às atividades em Goiás, algo fundamental para a retomada da Economia no Estado e no país. O termo “Retomada” me incomodou por alguma razão...Logo em seguida, quando começaram as discussões em torno da Portaria 1030 e li os comentários de Augusto Nunes, descobri a razão: não tenho nada para “retomar” porque, de fato, eu nunca parei de trabalhar! Muito pelo contrário, em particular eu não lembro de ter trabalhando tanto e sob tanta pressão na minha vida quanto nesses últimos meses, e conheço vários e vários colegas que se sentem da mesma forma. Isso abre espaço então para falarmos sobre o que aconteceu nas Universidades nesses quase 9 meses de pandemia (a discussão mais ampla e complexa sobre “ensino” e retorno na educação básica fica para a próxima postagem). Vou tentar sintetizar, vamos lá.
Em todos os países uma das primeiras “intervenções não-farmacológicas” em qualquer epidemia é a suspensão das aulas nas escolas e universidades, tanto para proteger efetivamente as crianças e profissionais do ensino quanto para reduzir a circulação de pessoas. Isso, associado ao fechamento de comércio e de serviços não-essenciais, diminui a agregação e rapidamente reduz o número de transmissões, como já discutimos anteriormente. No Brasil, a maior parte das Universidades foram fechadas e suspenderam suas atividades presenciais na primeira quinzena de março, bem no início do ano letivo de 2020. Quando se percebeu que seria impossível retornar as atividades presencialmente em curto prazo, o calendário acadêmico foi suspenso (pelo menos aqui na UFG) até que fosse possível organizar as atividades de ensino de forma remota, que já haviam sido autorizadas de forma emergencial pelo MEC em 18 de março.
Temos então um primeiro ponto de discussão, pois como o calendário acadêmico foi suspenso, os professores não voltariam a ministrar suas aulas até que fosse possível pensar em ensino remoto, pois existem diversas questões conceituais e principalmente logísticas que precisaram ser resolvidas para que fosse possível retomar as aulas de forma remota. Em muitas Universidades privadas vimos que essa retomada foi feita de forma mais rápida e mais ágil, tanto por questões de gestão e autonomia financeira quanto por uma menor necessidade (ou preocupação, com raras e honrosas exceções) em relação às condições sócio-econômicas dos estudantes. Nesse sentido, vimos por outro lado nas instituições públicas de ensino superior uma grande discussão sobre como os estudantes de baixa renda ou em condições de vulnerabilidade social iriam conseguir acompanhar o acesso remoto, uma vez que existem limitações sérias em termos de acesso à internet, equipamentos e mesmo um ambiente adequado em casa para estudar.
Assim, gradualmente foram organizados programas de doação de equipamentos e apoio para um melhor acesso à internet para os estudantes, ao mesmo tempo em que os professores começavam a explorar as novas possibilidades de ensinar usando as ferramentas e plataformas que já existiam mas que rapidamente começaram a chamar nossa atenção, como Google Meet e Google Classroom, Microsoft Teams, Zoom, dentre outras. A maior parte dos docentes entendeu que seria preciso mudar a forma de ensinar e repensar os cronogramas e os planos de curso. Muitos docentes que conheço se interessaram pelo assunto e começaram a fazer cursos rápidos sobre ensino remoto (e inclusive apoiar os colegas que tinham mais dificuldade) e sobre a ideia mais ampla de “Ensino à Distância” (EAD). Um breve parêntese aqui, claro que o Ensino Remoto adotado emergencialmente ao longo de 2020 é bem diferente de EAD, algo que já existe há bastante tempo, mas que ainda ocupa um espaço relativamente pequeno na maior parte das IES públicas brasileiras (de fato, o Conselho Nacional de Educação – o CNE – permite que até 40% das atividades mesmo em um curso presencial sejam feitas à distância, embora isso não seja de modo geral o que temos).
Mas, voltando...Alguns meses após a pandemia, em maior ou menor grau, as IES conseguiram se organizar, levantaram a situação dos alunos com dificuldades para atender ao ensino remoto, resolveram o que foi possível resolver (mesmo sem apoio do MEC) e em geral retomaram as aulas remotas a partir de agosto ou setembro. Aqui na UFG as atividades de ensino na pós-graduação foram autorizadas oficialmente já a partir de junho, considerando que há um pouco menos de dificuldades logísticas quando comparadas à graduação.
Então, o que temos em relação ao ensino é que, nas instituições particulares, o retorno às atividades foi muito rápido, questão de poucas semanas de modo geral. Nas instituições públicas em geral houve mais dificuldades e um maior atraso nessa retomada. Mas, de qualquer forma, o que quero destacar é que em todos os casos a adoção emergencial do ensino remoto não foi simples para os docentes e, apesar do atraso no calendário, é consenso que os professores estão trabalhando mais do que antes. Como já coloquei, tivemos que repensar os cronogramas e planos de ensino, aprender a utilizar novas ferramentas de ensino e, mais importante, tivemos que repensar como adaptar os conteúdos e mudar nossa forma de interagir com os estudantes nesse novo ambiente virtual. Embora haja um certo ganho em termos de conforto e ganho de tempo pelo menor deslocamento, os docentes, como todos os profissionais que começaram a trabalhar de forma remota, tiveram que compatibilizar o trabalho remoto com as atividades domésticas (especialmente aqueles que têm filhos pequenos, por exemplo). Isso sem falar que tivemos que adaptar, em muitos casos, os nossos espaços em casa para viabilizar as aulas e estamos utilizando nossos equipamentos e nossa internet pessoal para as atividades de ensino (alguns insistem que isso pode não ser um grande problema para os docentes do ensino superior público, mas de forma alguma é trivial para a grande maioria dos professores do Brasil, com salários muito baixos, com carreiras desistimulantes e maior vulnerabilidade social).
Então, os ataques de Augusto Nunes dificilmente se justificam em termos de ensino e, certamente, mostram simplesmente ignorância sobre o funcionamento do sistema e a necessidade de atacar, por motivos escusos, um segmento da sociedade que os Governos autoritários tradicionalmente desprezam e querem, a todo custo, desacreditar... Mas, como também já discutimos, claro que temos mais coisas pra acrescentar!
Mesmo que as justificativas acima possam parecem insuficientes a muitos Bolsominions em termos de “ensino”, é importante mais uma vez ressaltar que os docentes das Universidades públicas estão envolvidos em muitas outras atividades além da sala de aula, diferente do que em geral ocorre nas IES privadas ou no ensino básico (que, mesmo assim, tendem a ter uma carga horária bem maior em sala de aula...). Já discutimos aqui, desde o início do blog, toda a ideia do tripé “ensino, pesquisa e extensão” e não precisamos retomar as razões e implicações disso, mas podemos destacar alguns pontos relevantes no contexto da pandemia.
Alguns mais otimistas acham que um dos efeitos da pandemia no Brasil foi mudar a percepção que a sociedade tem das Universidades e dos seus professores, e talvez até da ciência de modo geral, já que tivemos uma resposta impressionante dessas instituições diante da crise. Tenho lá minhas dúvidas, considerando toda a campanha negacionista do Governo Federal e dos segmentos conservadores da sociedade desde 2019, mas de qualquer modo é inegável que os docentes das Universidades e pesquisadores ganharam muito espaço na mídia e têm tido um papel importante em auxiliar os tomadores de decisão e gestores da área de saúde a desenvolver estratégias de combate à COVID-19. Em todo o Brasil, os docentes das IES na área de saúde se envolveram rapidamente com o tema e passaram, em suas áreas de especialidade, a desenvolver projetos específicos, publicar trabalhos científicos e aplicar novas soluções médicas e epidemiológicas. Apesar do forte contingenciamento de recursos, foram lançados editais emergenciais pelos Órgãos Federais como o CNPq e a CAPES, bem como pelas Agências Estaduais de Amparo à Pesquisa, para financiar alguns desses projetos. Isso envolve tanto a organização dos projetos pelos pesquisadores e a sua submissão às agências, como todo um movimento da comunidade científica para formar os comitês que vão avaliar esses projetos (isso sem falar no trabalho emergencial das equipes técnicas das agências).
Mas é interessante notar que esse movimento não esteve restrito aos docentes da área de saúde. Como já discutimos antes também, houve uma movimentação de pesquisadores de várias áreas do conhecimento se unindo para tentar entender as implicações da pandemia e mitigar seus efeitos, demonstrando claramente a viabilidade e a importância de ações interdisciplinares e organização de pesquisadores de diferentes áreas. Aqui na UFG, apenas como exemplo, além das ações específicas na área de saúde, são muitos projetos sendo desenvolvidos por pesquisadores de muitas áreas, desde às engenharias e computação até economia e ciências sociais aplicadas, passando pelas áreas biológicas, mais correlatas. Apenas para mencionar ações mais próximas, acompanhei de perto a montagem e implementação, ainda em abril ou maio deste ano, de um "laboratório de campanha" aqui no Instituto de Ciências Biológicas (ICB) para realizar testes de PCR e diagnóstico molecular, apoiado por diversos colegas de diferentes departamentos do ICB, do IPTSP e da Escola de Veterinária, permitindo centralizar os equipamentos dos seus laboratórios de pesquisa – adquiridos, aliás, por meio de projetos para fins de pesquisa e desenvolvimento nas mais diferentes áreas. Eu e meus colegas Cristiana Toscano e Thiago Rangel, bem como o Laboratório de Geoprocessamento (LAPIG), liderado pelo Professor Manuel Ferreira, passamos a trabalhar com modelagem e análise de dados, apoiando as gestões estaduais e municipais. Movimentos muito semelhantes aconteceram nas IES em todo o Brasil, como mostra uma olhada rápida nas “notícias” nas webpages das instituições.
Mas, considerando o enorme número de docentes das IES, alguém poderia ainda argumentar que uma proporção relativamente pequena dos docentes estaria envolvida mais diretamente nessas ações. O que estes outros estariam fazendo? Estão vagabundando, como quer Augusto Nunes? Bastam conhecer um pouco o sistema de ensino superior no Brasil para ver que não. Embora muitas atividades de pesquisa ou trabalhos de campo tenham sido de fato interrompidos inicialmente, para evitar aglomerações (alguns retornaram gradualmente depois, seguindo protocolos específicos), novas atividades passaram a ser desenvolvidas. Muitos docentes de pós-graduação, por exemplo, mudaram os projetos de dissertação ou tese dos estudantes para temas que pudessem ser desenvolvidos com dados já coletados. As bancas de dissertação e tese continuaram normalmente e os alunos de pós-graduação continuaram a obter os seus títulos. A CAPES possibilitou prorrogar as bolsas por até 6 meses, de qualquer modo, o que favorece os estudantes que estavam começando seus trabalhos e lhes dá “graus de liberdade” para suas atividades.
Falando em CAPES e pós-graduação, 2020 é o último ano do quadriênio de avaliação (2017-2020) e os coordenadores dos cursos - e de certo modo todos os docentes - estão envolvidos em organizar os dados para o preenchimento do relatório final na plataforma SUCUPIRA (e essa semana encerrou o prazo para correções de dados dos anos anteriores), Nesse sentido também, só destacando o trabalho dos coordenadores de cursos e docentes, tivemos há poucos meses um edital novo do CNPq para concessão de bolsas de Mestrado e Doutorado e que exigiu que os programas de pós-graduação elaborassem um projeto do curso (os resultados foram divulgados semana passada, com uma grande insatisfação dos coordenadores não só pelo número ridiculamente pequenos de bolsas aprovadas quanto pela perda de tempo em elaborar um projeto complexo para resultados potencialmente pífios por causa da forte limitação de recursos da agência desde 2019).
Ao mesmo tempo, a pandemia ampliou as opções de cursos e palestras de forma remota, e passamos a ver um enorme número de lives, cursos, reuniões, workshops e eventos virtuais em todas as áreas, por todo o Brasil. Muitos docentes têm um papel importante em disseminar as informações nas redes sociais, em um contexto de divulgação científica. Em maior ou menor grau os pesquisadores continuaram a reunir os seus grupos de pesquisa e de estudantes de graduação e pós-graduação, discutindo os projetos e as possibilidades de pesquisa. Apesar de não ser o ideal, por diversas questões pessoais ou logísticas, algumas vantagens de interações virtuais começaram a ficar aparentes, em termos de diminuição de deslocamentos e até mesmo compartilhamento de informação.
O que quero dizer, em resumo, é que as atividades de pesquisa, fortemente ligadas no Brasil à pós-graduação, continuaram a ser desenvolvidas pelos docentes durante a pandemia, mesmo que de forma diferente em alguns casos. Sem dúvida a pesquisa no Brasil vai ser afetada, do mesmo modo que está acontecendo em todo o mundo, por causa da pandemia. No caso específico dos pesquisadores e dos programas de pós-graduação, vamos precisar esperar pelo menos 1 ou 2 anos para fazermos uma avaliação quantitativa, por causa do atraso normal na dinâmica da produção científica (mas vai ser dificil separar o efeito da pandemia dos efeitos nefastos da política de desmonte do sistema nacional de pesquisa e pós-graduação em curso...). De qualquer forma, parece ser inevitável que a produtividade das pessoas em geral tenha sido reduzida ao longo deste ano tão difícil, tanto por razões operacionais e logísticas quanto por razões psicológicas e pessoais. Mas isso não é algo particular dos professores, ou dos pesquisadores das Universidades, é algo que está afetando toda a sociedade! E é muito mais difícil lidar com a pandemia se, para além dos problemas inerentes a ela, temos que lidar também com as atitudes negacionistas e com a incompetência do Governo, sem falar nas agressões gratuitas por pessoas com uma percepção limitada da realidade.
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