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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

O que aprendemos com as novas mutações do coronavírus?

Atualizado: 4 de fev. de 2021


Com a colaboração de


Rhewter Nunes


Pesquisador associado ao LGBIO/UFG e bolsista DTI-A do Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade






Discutimos, em uma postagem anterior, os aspectos filosóficos e teológicos ligados à uma visão criacionista em relação ao coronavirus SARS-CoV-2 e os dilemas "clássicos" envolvidos na questão. Mas podemos explorar, na verdade, o outro lado dessa moeda, ou seja, a ideia de que justamente em função de suas características, podemos ver a evolução “em ação” nesse caso, acompanhando a trajetória do vírus e da pandemia no mundo! Mais importante, entender como os processos evolutivos moldam o coronavírus possui uma grande importância aplicada. Ou seja, não estamos discutindo aqui questões mais abstratas sobre entender os mecanismos envolvidos e as questões existenciais e metafísicas associadas à ideia mais ampla de evolução, estamos pensando em termos de expansão da pandemia e aumento da mortalidade!


Nas últimas semanas o surgimento de novas mutações em linhagens de SARS-CoV-2 ganhou grande repercussão na midia e nas redes sociais. O ponto central é que determinadas mutações em determinados genes dessas linhagens podem conferir a elas uma maior capacidade de infecção e, talvez, uma maior patogenicidade. Além disso, aqui no Brasil surgiram também reportagens mencionando a existência de um “apagão” de dados genômicos de SARS-CoV-2 nos últimos meses e alertando para os possíveis problemas que isso pode gerar.


Quando vamos estudar a evolução de um organismo, estamos sempre pensando em um processo histórico que aconteceu durante muito, muito tempo. Isso tem uma série de implicações importantes em termos metodológicos e epistemológicos. Podemos comparar os organismos e entender as relações de ancestralidade, a partir da identificação de padrões de compartilhamento de características em diferentes momentos no tempo (o que forma uma “filogenia”), e podemos também “mapear” certas características sobre essa sequência histórica de diferenciação. Nós podemos correlacionar esses padrões com variações ambientais (pensando em termos de paleoclima, por exemplo), geológicas e biogeográficas, às vezes conseguimos identificar padrões de comunidades de organismos (ou seja, lidando com a co-evolução desses organismos). Tudo isso pode nos ajudar a tentar entender os processos, ou mecanismos, subjacentes aos padrões que estamos estudando e, de modo geral, estamos principalmente interessados em processos ADAPTATIVOS, ou seja, aqueles que implicam aptidão (sobrevivência ou fecundidade) diferencial entre linhagens ou populações e que desencadeia, a partir dai, um maior ajuste do organismo ao ambiente (veja a discussão mais geral sobre evolução na postagem do último Darwin's Day). Tudo isso é, entretanto, “observacional” no sentido de ser baseado em correlações entre características e o que tentamos fazer é encontrar quais as explicações seriam mais prováveis ou plausíveis para certos padrões (epistemologicamente, essa estratégia mais comum é o que chamamos de inferência explanatória, ou inferência à melhor explicação – inference to the best explanation). Isso é bem diferente da experiência no dia a dia de muitos cientistas de outras áreas, que baseiam o teste de hipóteses e a validação de teorias em experimentos, um contexto no qual estabelecer relações de causa e efeito é bem mais factível. Em biologia evolutiva, nós podemos até fazer experimentos para verificar alguns pressupostos (em termos funcionais, por exemplo) e dizer que tais e tais características afetam a aptidão desse organismo, ou então mostrar que esses atributos possuem um componente genético maior ou menor. Mas isso realmente não mostra empiricamente que a evolução aconteceu dessa forma, porque estamos falando efetivamente de uma ciência histórica. Nesse sentido, é difícil então confirmar, no sentido que as pessoas estão acostumadas a pensar, que a evolução aconteceu dessa ou daquela forma, o que temos sempre é a melhor explicação possível (e isso leva alguns a dizerem que temos “dúvida” sobre a evolução como processo, o que não é verdade...). De forma geral, o que podemos pensar é que temos que INFERIR em geral os processos evolutivos a partir de diferentes padrões, da melhor forma possível, e dificilmente conseguiríamos OBSERVAR a evolução em um contexto mais empírico (o que abre uma discussão interessante sobre evolução como “fato” ou “teoria”; mas voltamos a isso com mais calma em algum outro momento).


Claro, como estamos falando de uma ciência histórica então, estamos lidando com padrões e processos em grandes escalas de tempo, estamos normalmente falando de eventos que ocorreram há milhares ou milhões de anos, tempo suficiente ou necessário para que certas mudanças aconteçam nas populações e nas espécies. Mas isso, na verdade, é apenas uma espécie de “artefato” da nossa percepção como grandes mamíferos que somos...Tempo, pensando evolutivamente, é relativo ao tipo de organismo que estamos estudando. A medida comum e mais geral seria o que podemos chamar de “tempo de geração”, ou seja, qual o intervalo entre duas gerações sucessivas? Já que os mecanismos de mudança evolutiva ocorrem durante a reprodução, essa é a medida apropriada de tempo, ou seja, intervalo entre dois eventos reprodutivos na população. Há muitos detalhes técnicos aí para calcularmos o tempo de gerações (porque, no caso de humanos, por exemplo, temos um tempo continuo, as pessoas estão nascendo e morrendo a cada instante de tempo), mas de qualquer modo vocês já podem intuir que o tempo de geração da espécie humana (digamos, 15-20 anos) é BEM maior do que o tempo de geração de algumas espécies de pequenos animais ou plantas, que podem ser anuais (ou seja, a cada ano temos uma nova geração), de um mosquito (alguns poucos meses) ou de uma bactéria (alguns minutos...). Então, será que é possível, em alguns casos, observar mais diretamente a evolução? Sim, claro, e é por isso que muitos de vocês estudaram, ainda no ensino médio, os muitos padrões e processos, por exemplo, com Drosophila, ou que vemos experimentos e análises clássicas com a evolução da resistência a antibióticos em bactérias. Com organismos desse tipo, é bem mais fácil tentar entender os processos nas populações naturais e/ou fazer experimentos para validar certos padrões observados.


Voltando ao coronavírus então, já imaginamos que esse padrão é "extremo", digamos assim. Como os vírus se replicam de forma assexuada dentro de uma célula, simplesmente criando mais e mais cópias da molécula de RNA, na realidade quando o SARS-COV-2 infecta uma pessoa temos ali milhões de eventos "reprodutivos" acontecendo simultaneamente e sequencialmente, de modo que o tempo de geração é realmente MUITO curto...Isso significa que eventos evolutivos que levariam milhares de anos para acontecer em animais ou plantas acontecem em questão de dias, no máximo semanas, em um vírus. Realmente é isso que os pesquisadores estão observando desde o início da pandemia, de modo que estamos vendo (neste caso, infelizmente...) a “evolução em ação”.


Temos o evento inicial de spillover do SARS-CoV-2 na China em algum momento no final de 2020, e isso envolveu certamente uma adaptação para um tipo diferente de hospedeiro. Mas o que aconteceu desde então? Será que conseguimos ver o coronavírus realmente evoluindo depois de pouco mais de 1 ano? Com certeza a resposta é SIM e podemos ver isso com os resultados obtidos em sequenciamento de genomas de SARS-Cov-2 ao redor do mundo. Comparando esses genomas conseguimos, pela semelhança entre eles e/ou pelas “novidades evolutivas” em termos de mutações, reconstruir a relação filogenética entre eles e, além disso, mapear as frequências dessas linhagens para avaliar sua origem em termos geográficos, como podemos ver na Figura 1 abaixo (obtidas na plataforma GISAID). Na parte A da figura conseguimos visualizar uma filogenia gerada a partir das sequências de genomas de SARS-CoV-2 amostradas em diferentes datas. Com a filogenia é possível agrupar alguns genomas em subconjuntos que chamados de “clados”. Atualmente, são 12 os principais clados observados ao redor do mundo. A visualização da frequência de cada clado por país pode ser observada na parte B da figura abaixo. E, por último, na parte C dessa mesma figura, é possível observar a proporção de cada clado ao longo do tempo. Como podemos observar nessa parte, os primeiros clados que surgiram em 2019 no começo da pandemia quase não aparecem na porção mais à direita do gráfico, indicando que efetivamente o vírus evoluiu desde o seu surgimento.




Figura 1. Principais clados formados na análise filogenética de sequências genômicas de SARS-CoV-2 entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021. A) Amostras sequenciadas plotadas na filogenia seguindo a data de amostragem e coloridas conforme o clado a que pertencem; B) Distribuição da proporção de cada clado por país em 2021 e; C) Proporção de cada clado ao longo do tempo. Figuras extraídas da plataforma GISAID em 19/01/2021




“Genoma” é um conceito utilizado por biólogos moleculares para caracterizar todo o conjunto de informações biológicas herdáveis que estão codificadas em moléculas de DNA ou RNA nos organismos. Essas moléculas são compostas por unidades menores, chamadas de bases nitrogenadas, e que podem ser de tipos diferentes (Adenina (A), Timina (T), Uracila (U), Guanina (G) ou Citosina (C)). No genoma, as bases nitrogenadas se apresentam de forma ordenada como em uma fita, ou seja, em sequência, e por isso damos o nome de “sequenciamento de genoma” ao ato de determinar a ordem em que essas bases nitrogenadas aparecem em um determinado genoma. A ordem dos nucleotídeos é o mecanismo pelo qual a informação biológica herdável é armazenada e pode ser utilizada, por exemplo, para a síntese de proteínas. Nesse caso da produção de proteínas, cada três bases nitrogenadas codificam para um tipo de aminoácido (unidade de proteína). Por exemplo, a sequência de bases AAG codifica para o aminoácido Lisina, enquanto AAC codifica para uma Asparagina. Em outras palavras, a ordem dos nucleotídeos irá coordenar quais aminoácidos e em que ordem serão utilizados na síntese de proteínas.


Uma primeira versão da sequência do genoma de SARS-CoV-2 foi publicada em março de 2020 na revista científica Nature. Essa sequência foi obtida para um conjunto de genomas de RNA presentes no fluido broncoalveolar de um paciente que apresentava síndrome respiratória grave em dezembro de 2019. Essa abordagem de sequenciar uma coleção de genomas presentes em uma determinada amostra é chamada de metagenômica e permitiu identificar a presença de um novo genoma de vírus da família Coronaviridae, 89,1% similar ao genoma de SARS-CoV (vírus causador da doença SARS que ocorreu na China em 2002), permitindo então definir o que viríamos a chamar de SARS-CoV-2, o novo coronavírus.


Com a primeira sequência do genoma obtida para SARS-CoV-2 foi possível identificar que o seu genoma é composto de 29.903 bases nitrogenadas e apresenta dois conjuntos principais de genes: os complexos de poliproteínas chamados de pp1a e pp1b, e as proteínas constituintes da partícula viral, conforme a figura abaixo (para os mais interessados, vejam também a excelente reportagem sobre as linhagens e genoma do vírus publicada essa semana no New York Times). Os complexos de poliproteínas são quebradas em proteínas menores que participam dos processos de transcrição de genes e replicação genoma, enquanto os genes de constituição da partícula viral codificam proteínas que formarão glicoproteínas de membrana (M), proteínas do capsídeo (N), proteínas do envelope (E) e proteínas Spike (S), por exemplo, como aparece na Figura 2 abaixo. Dentre essas proteínas, a Spike é particularmente importante por causa de sua função. Ela está presente na parte mais externa da partícula viral e da aos coronavírus o aspecto de coroa que se popularizou nas representações gráficas do vírus na mídia. Essa proteína é responsável por mediar a ligação entre a partícula do vírus e a célula hospedeira e, consequentemente, promover a infecção.



Figura 2. Representação da posição de alguns genes que compõem o genoma de SARS-CoV-2. ssRNA: single strand RNA (RNA de fita única, em português).




Pensando sobre a função da proteína Spike, não é difícil concluir que esse seja um dos principais "alvos" de estudos para o desenvolvimento de vacinas, terapias utilizando anticorpos e testes para diagnóstico baseados em antígenos. E de fato é! Mas, além das questões relacionadas com prevenção, diagnóstico e tratamento, é importante avaliar gene envolvido (S) no que chamamos de monitoramento genético da epidemia, que nada mais é que avaliar a evolução do genoma do vírus ao longo do tempo. Basicamente, esse monitoramento se dá pelo sequenciamento e análise de genomas de SARS-CoV-2 de pacientes de diferentes localidades e em diferentes datas. No Brasil, um primeiro esforço para se sequenciar genomas de SARS-CoV-2 de pacientes daqui foi publicado na revista científica Science em setembro de 2020. Nesse estudo, foi possível detectar quais eram os grupos de genomas que circulavam no país nos primeiros meses da pandemia e também foi possível avaliar o efeito de intervenções não farmacológicas (fechamento de escolas, por exemplo) no avanço e disseminação do vírus no país. Esse primeiro estudo foi extremamente importante para traçar estratégias de enfrentamento ao coronavírus. No entanto, é preciso ressaltar que o esforço de sequenciamento do país como um todo no ano de 2020 foi muito baixo, pelo menos quando comparado com outros país emergentes como a África do Sul (que depositou 2.882 sequências no banco de dados GISAID). Esse valor de depósito de sequências é quase o dobro do valor brasileiro, embora o Brasil tenha cerca de sete vezes mais casos confirmados que a África do Sul. Em geral, se compararmos um genoma de SARS-CoV-2 recém sequenciado com o genoma de referência reportado no artigo da Nature que comentamos acima (o originalmente sequenciado a partir de pacientes da China), seremos capazes de dizer o quanto esses genomas se parecem, ou melhor que isso, no que eles se diferem.


Nós chamamos essas diferenças que podem ser observadas nos genomas ao longo do tempo de “mutações”, ou seja, em um determinado local no genoma temos uma alteração na ordem das bases nitrogenadas que pode ser gerada pela substituição de uma determinada base por outra, ou pela inserção ou deleção de uma ou mais bases em uma determinada composição. Você se lembra que comentamos acima que cada três bases nitrogenadas codificam para um aminoácido? As mutações podem gerar mudanças nessas trincas e fazer com que um determinado aminoácido seja substituído por outro na síntese de proteínas. Em outras palavras, uma mutação pode gerar uma nova versão da proteína conhecida anteriormente e que, por ter uma modificação em sua sequência de aminoácidos, pode vir a ter uma modificação também em seu funcionamento.


No mundo todo, os genomas de SARS-CoV-2 que foram e estão sendo sequenciados são normalmente depositados em um banco de dados público de genomas chamado GISAID e, dessa forma, essas informações podem estar disponíveis para outros pesquisadores ao redor do mundo. Essas muitas variações que vemos na filogenia do SARS-COV-2 ocorrem no contexto do que chamamos de evolução NEUTRA, como proposto pelo cientista japonês Mooto Kimura ainda nos anos 1970. Ou seja, no nível do DNA (ou RNA, no caso do coronavírus...), a maior parte das mutações não causa mudanças na aptidão, de modo que o aumento ou a diminuição de frequência dessas mutações na população ocorre por acaso (isso é mais rápido em pequenas populações, ou pode explicar por que certas variantes ocorrem em um lugar e não em outro; simplesmente porque alguém contaminado com aquela linhagem chegou naquele lugar antes). Inclusive, se pararmos para pensar, mutações que conferem uma maior agressividade da doença, por exemplo, tendem a não persistir uma vez que quanto mais rápido o hospedeiro morrer, menor será a chance de ele transmitir o vírus para outros indivíduos, sendo portanto, menos eficiente no final das contas. Na realidade, existe uma discussão se há mesmo variações neutras, no sentido estrito, e às vezes falamos em evolução QUASI-NEUTRA, no sentido de que as diferenças de aptidão seriam muito pequenas, e nesse caso processos puramente ao acaso podem ser mais importantes do que essa diferença no sentido de aumentar ou diminuir a frequência das mutações. Mas isso são detalhes mais técnicos...O que importa, nesses casos, é que vemos as muitas mudanças nas linhagens do coronavírus, considerando os vários ramos na Fig. 1 acima, mas isso aparentemente não teve impactos muito grandes sobre a sua transmissão e sobre a letalidade (embora isso não seja tão fácil de avaliar, devido aos muitos fatores de confundimento, já que lugares com as diferentes linhagens dominantes podem variar em termos de comportamento da população, política governamental, fatores sócio-econômicos, estrutura etária, e até mesmo sistema de registro dos dados...). As pessoas estão acostumadas a pensar em evolução como adaptação e resposta a variações ambientais, mas em muitos casos (talvez a maior, dependendo do nível a que estamos nos referindo) essas mudanças vão simplesmente se acumulando ao acaso, sem grandes consequências. Interessante, na verdade é exatamente porque essas mudanças não possuem grandes impactos no fenótipo é que conseguimos usar essas variações para reconstruir a história!!!!


O acúmulo de mutações ao longo do tempo pode permitir o surgimento do que chamamos de “variantes” ou linhagens. Uma variante de SARS-CoV-2 é portanto, uma forma genômica que possui uma certa quantidade de diferenças em relação aquela originalmente descrita para o SARS-CoV-2 identificado em Wuhan, por exemplo, mas que ainda assim, se assemelha o suficiente para que a tratemos como uma mesma cepa do vírus. Uma mesma cepa viral detem propriedades e resposta imune similares. Conforme novas sequências do genoma de SARS-CoV-2 vão sendo produzidas, é possível relacioná-las evolutivamente e organizá-las em uma filogenia, como mostramos na Fig. 1 acima. Na fase inicial de uma pandemia, nós podemos atribuir um genoma a uma linhagem por meio da presença ou ausência de um conjunto específico de mutações. Essa nomenclatura de linhagens é extremamente importante para acompanharmos a dinâmica evolutiva do vírus no tempo e um bom sistema de nomenclatura deve passar a se concentrar nas linhagens que mais contribuem para a transmissão global e para a diversidade genética conforme a pandemia vai avançando.


No caso recentemente ocorrido em Manaus, por exemplo, foi detectada uma nova linhagem chamada de P.1, que é descendente da linhagem B.1.1.28, descrita recentemente por Nuno Farias e colaboradores (mas também detectada e descrita de forma independente por Felipe Naveca e colaboradores). A maior discussão em torno dessa nova linhagem é que aparentemente não estamos mais falando em evolução neutra. No caso dos genomas recentemente sequenciados de SARS-CoV-2 de pacientes de Manaus, o que chama atenção é a presença de mutações no gene que codifica a proteína Spike. Essas mutações receberam os nomes de S: K417N, S: E484K e S: N501Y. O “S” no nome delas se refere ao gene em que essas mutações ocorrem (o gene S que codifica a proteína Spike) e os demais caracteres se referem a posição da mutação na proteína codificada pelo gene e a que tipo de alteração de aminoácidos é observada em relação ao genoma de referência. Por exemplo, no caso na N501Y, o aminoácido que ocupa a posição 501 da proteína, segundo o genoma de referência, é uma Asparagina (que segundo a nomenclatura IUPAC é simbolizada pela letra “N”) e no genoma recém-sequenciado esse aminoácido foi substituído por uma Tirosina (simbolizado pela letra “Y”). Essas mutações apareceram em 13 dos 31 genomas sequenciados de amostras coletadas entre 15 e 23 de dezembro de 2020, mas não estavam presentes em 26 genomas de amostras coletadas entre março e novembro, indicando que o surgimento delas é recente nesse local.


Essa mutação N501Y já havia sido observada em outras linhagens, como a B.1.1.7 na Inglaterra. Essa é uma mutação bastante importante pois ocorre em uma porção superior da proteína Spike, em uma região de interação com um receptor nas células humanas. É como se essa região de interação, chamada de RBD (Domínio de ligação ao receptor ou Receptor-Binding Domain, em inglês), fosse um quebra-cabeça em que a forma típica do SARS-CoV-2 formasse um encaixe meio “frouxo”, enquanto a versão com a mutação N501Y já fosse mais ajustada e, portanto, AUMENTASSE as chances de uma infecção bem sucedida. Essa mutação observada no gene S, além de outras como a E484K, parece ter evoluído de forma independente em diferentes linhagens em outros países do mundo como Austrália, Dinamarca, Japão, Holanda, África do Sul, País de Gales, Estados Unidos e, como já mencionado, na linhagem B.1.1.28 aqui no Brasil. A mutação E484K pode ser particularmente importante porque parece estar ligada também a uma maior probabilidade de reinfecção, o que possui muitas implicações epidemiológicas (abaixo). Então, olhando para a mutação N501Y e as outras no gene S, estamos falando possivelmente de um processo de ADAPTAÇÃO do vírus, que se torna (evolutivamente falando) mais eficiente em invadir as células e, com isso, aumenta o seu poder de propagação. Ao mesmo tempo, os profissionais que atuam na linha de frente contra a COVID-19 em Manaus relataram sua percepção de que, além de ser mais transmissível, essa variante também parece ser mais letal, especialmente em pessoas jovens (mas ainda vai levar algum tempo para sistematizar essas informações e avaliar se esse é mesmo o padrão).


Mais interessante, como já mencionamos rapidamente acima, sendo uma sequência de RNA relativamente simples – mas vejam que ela é altamente eficiente e especializada – dificilmente podemos dizer que é “improvável” que as mesmas mutações evoluam de forma independente, em diferentes lugares. Dado bastante tempo (no sentido do vírus) e uma enorme população de infectados, chega a ser quase inevitável que essas convergências apareçam (tecnicamente dizemos, em análise filogenética, então que as mutações chamamos então as mutações N501Y e E484K, por exemplo, são homoplasias). Aparentemente, é isso que estávamos vendo nas várias linhagens que estão aparecendo no Brasil (Manaus), na Inglaterra, na África do Sul e em outros países. E muitas outras coincidências devem acontecer, mesmo nas mutações neutras, mas sabemos pouco sobre isso exatamente porque o número de genomas sequenciados é relativamente pequeno e não está distribuído uniformemente pelo mundo. Então, embora tenhamos linhagens diferentes do coronavírus que podem ser reconhecidas como "clados" (grupos formados por todos os descendentes de um mesmo evento evolutivo, no caso uma ou mais mutações), essas linhagens podem ter uma ou mais mutações que aparecem de forma independente, e isso é especialmente plausível se essas mutações são adaptativas.


Às vezes é comum pensarmos nessas adaptações biológicas quase que de forma “intencional”, como já discutimos antes, mas de fato o que temos é simplesmente um processo de seleção natural como pensado por Darwin e Wallace em meados do século XIX. Vejam que, no caso do coronavírus, isso acontece dentro dos hospedeiros (ou seja, nós...). Se temos pacientes com diferentes respostas imunes, em algum momento uma mutação que aconteceu ao acaso (modificando os aminoácidos gerados, como explicado acima) pode se mostrar mais funcional no sentido de entrar na célula, e quando isso acontece aquele paciente em particular vai transmitir mais....Temos então um processo de seleção natural dentro do organismo (população viral dentro de um hospedeiro) e que se propaga para o nível populacional do hospedeiro.


Então, é importante entendermos que a mutação N501Y, por exemplo, não foi DIRECIONADA PARA infectar mais, em termos de “intencionalidade”. Ou seja, o vírus não está evoluindo PARA se tornar “mais infeccioso”, isso é uma consequência a posterior da reprodução diferencial das linhagens, e é um dos aspectos mais difíceis de entender conceitualmente em biologia evolutiva (essa é a questão da “teleologia”, que vamos discutir com mais calma em uma próxima postagem). O que acontece de fato é que qualquer mutação que afeta certas características do vírus, como as que acontecem na porção RBD, podem fazer com que ele seja mais “eficiente” e penetre mais na célula. Se ele infecta mais as pessoas, a carga viral pode ser maior e, consequentemente, a chance de haver transmissão e infecção de outra pessoa é mais alta. Como a sequência do vírus de RNA é curta e relativamente simples, eventualmente mudanças ao acaso no seu genoma podem ser ADAPTATIVAS no sentido positivo (para ele, claro...).


Em termos práticos, essas mudanças evolutivas na proteína Spike possuem, em princípio, implicações importantes sob um ponto de vista epidemiológico. Em primeiro lugar, na Inglaterra e em outros países da Europa se estima que essa nova linhagem com a mutação N501Y possua um R0 (o número reprodutivo básico) entre 50% e 70% maior do que a linhagem originalmente mais comum até então. Esse aumento pode passar, inclusive, por uma possibilidade mais clara de reinfecção, pois a nova linhagem pode ser mais eficiente em termos de se contrapor às defesas imunológicas do paciente. Desse modo, ela se expande mais rápido e requer uma atitude mais enérgica das autoridades na tentativa de controlá-la (vejam que a Inglaterra entrou novamente em lockdown no final do ano mesmo já tendo começado a campanha de vacinação...). É importante destacar que embora sempre pensemos no R0 como uma medida ecológica de crescimento da população de infectados (pelo vírus), na realidade ele termina sendo EXATAMENTE a medida de aptidão Darwiniana do SARS-CoV-2!


Outro preocupação tem sido descobrir se essas mutações têm o potencial para driblar a imunização gerada pelas vacinas ou por infecções anteriores. Um estudo preliminar com experimentos in vitro apresentou resultados alarmantes de que as mudanças naturais que tem surgido em SARS-CoV-2 teriam o potencial para escapar de uma resposta imune eficaz e que, portanto, deve-se buscar por vacinas que consigam controlar as formas emergentes do vírus. Se esse for o caso, haverá um esforço contínuo no sentido de aprimorar as vacinas, como vemos no caso da gripe (influenza). Por outro lado, as empresas que desenvolveram algumas das vacinas (no caso a Pfizer) insistem que é pouco provável que essas mutações afetem a sua eficácia, considerando que elas foram experimentalmente testadas com formas diferentes do coronavírus. Mais investigações sobre esse tema ainda são necessárias e, de qualquer modo, é preciso focar agora em imunizar o maior número de pessoas possíveis com as vacinas disponíveis, mesmo que sua eficiência possa ser parcialmente reduzida (se é que isso vai acontecer) para essas novas linhagens. Com certeza a evolução do coronavírus não é justificativa para qualquer atitude de negação da importância das vacinas disponíveis, muito pelo contrário...


Ainda é cedo para saber qual o impacto da evolução dessa nova linhagem no enorme surto que estamos vendo hoje em Manaus, com mais um sério colapso no sistema de saúde, já que vimos por todo o Brasil um recrudescimento da pandemia a partir do final do ano, associado a uma diminuição das medidas de isolamento social e controle individual, como já discutimos. De qualquer maneira, é imprescindível acompanhar de perto a situaçao, alertar as autoridades e manter a vigilância, como colocado na carta do Observatório COVID19BR. Uma linhagem com a mutação E484K já havia sido identificada no Rio de Janeiro, de modo que não sabemos ao certo o quanto o aumento da epidemia que estamos vendo no Brasil, em uma 2a. onda, já estaria associada a essas novas variantes. As mutações que estamos observando são preocupantes e precisam ser mais bem estudadas para avaliarmos seus efeitos e, inclusive, sabermos se elas de fato têm relação com uma maior transmissibilidade (e, com o aumento o número de infectados, aumenta também o número de hospitalizações, criando problemas para o sistema de saúde, e mais óbitos). Essa era uma preocupação dos pesquisadores desde o início da pandemia, pois quanto mais tempo e maior é a circulação do coronavírus, maior a chance de que mais e mais linhagens apareçam. É isso que estamos vendo depois de mais de 1 ano de pandemia, infelizmente...Eventualmente, como vimos, essas linhagens podem começar a mais diferentes em regiões específicas (como parecer ser o caso da N501Y) que podem afetar os padrões epidemiológicos e criar mais problemas do que já temos.


Portanto, com tudo que aprendemos ao longo de 2020 em termos de evolução do coronavírus, temos duas tarefas importantes a cumprir: 1) ampliar o número de genomas de coronavírus sequenciados com a finalidade de monitorar a dinâmica das linhagens já identificadas e detectar novas possíveis mutações que irão surgir e; 2) manter ao máximo as medidas de segurança e de distanciamento social como uma forma de minimizar as “oportunidades” do coronavírus evoluir. Quanto mais gerações, maior é a chance de surgimento de novas variantes e, portanto, o isolamento social reduzindo o número de transmissões continua sendo a nossa melhor arma para minimizar a evolução dessas linhagens de SARS-CoV-2 até que tenhamos a vacina aplicada a uma grande parte da população mundial.




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