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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

E. O. Wilson e o Dilema da Pluralidade na Ciência




Let us now consider man in the free spirit of natural history, as though we were zoologists from another planet completing a catalog of social species on Earth. In this macroscopic view the humanities and social sciences shrink to specialized branches of biology; history, biography, and fiction are the research protocols of human ethology; and anthropology and sociology together constitute the sociobiology of a single primate species

(E. O. Wilson, Sociobiology, 1975).



Por muitas razões, não tive forças para escrever aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” ao final de 2021, como fiz em anos anteriores...Foi um ano terrível, por muitas razões, e estava simplesmente esgotado e desanimado e com outros compromissos. Não que faltasse material para uma retrospectiva, infelizmente! Tivemos por aqui a devastadora segunda onda da COVID-19, associada à evolução das novas variantes do coronavírus, mantendo o distanciamento e exaurindo emocionalmente e fisicamente tantas pessoas. O início da campanha de vacinação em fevereiro/março não foi suficiente para impedir essa onda, mas gradualmente vimos a pandemia perder força ao longo do ano, embora tenhamos agora um enorme crescimento de novas transmissões com a variante ômicron, gerando um cenário ainda incerto no Brasil para os próximos meses...Isso em grande parte porque, apesar da vacinação já ter um alcance razoável no país e ter sido bem sucedida, melhor do que muitos lugares da Europa, isso se dá APESAR do governo federal, que explicitamente vem assumindo suas posturas negacionistas e anti-científicas cada vez mais claras. Situação realmente absurda e surreal, e para não perder o momento, entendemos agora por que muitas pessoas “não olham para cima”. Vimos, ao final de 2021, um desmonte e desestruturação das nossas principais agências de pesquisa, na prática a maneira com a qual o Governo explicita sua visão sobre ciência, educação e cultura...Mas vamos em frente, 2022 promete!


Para completar tudo isso, no final de dezembro, tivemos um golpe de misericórdia nos ânimos. No dia 26 de dezembro de 2021 faleceu, aos 92 anos, E. O. Wilson, professor de Harvard e um dos mais importantes nomes da Ecologia e Biologia Evolutiva do século XX. Na verdade, poucos dias antes tínhamos recebido também a notícia da morte de Thomas Lovejoy, também um dos grandes nomes da Biologia da Conservação e com uma enorme contribuição inclusive para a pesquisa no Brasil e na Amazônia, isso sem falar em Robert May, de Oxford, e de Georgina Mace, do Imperial College, no ano passado, ambas figuras lendárias da ecologia teórica e biologia da conservação na Inglaterra e no mundo...Já começamos 2022 com a notícia do falecimento de Richard Leakey, um dos grandes nomes da paleoantropologia, um dos primeiros divulgadores da ciência e um ativista importante na luta contra a degradação ambiental associada ao tráfico de marfim e de animais na África. Muitas perdas trágicas na área de Ecologia e Evolução esses dias, nomes que sem dúvida inspiraram dezenas de gerações de pesquisadores, biólogos e conservacionistas. Ler os trabalhos dessas pessoas nos trazia (e trazem) uma verdadeira overdose de conhecimento, por suas grandes contribuições, e tantas novas ideias...Me faz lembrar de Cazuza, “Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder...”.





De todos esses, E. O. Wilson é que o mais me influenciou desde o início da minha carreira, mesmo antes de eu começar a graduação em Biologia em meados dos anos 1980...Ao pensar nele, a sensação mais vívida é sempre a surpresa positiva ao ver o seu nome aparecendo em diferentes momentos à medida que eu ia avançando na carreira e passando a estudar assuntos diferentes em Ecologia e Evolução. Não tenho muita ideia de quantos dos biólogos das novas gerações já ouviram falar de E. O. Wilson. Mas se não ouviram, temos um problema muito sério em termos de formação que precisa ser remediado urgentemente...Talvez alguns se lembrem do nome dele das aulas de ecologia básica ou de biogeografia, com o professor explicando, com um pouco de sorte, os detalhes da teoria do Equilíbrio em Biogeografia Insular e suas tantas implicações para a nossa compreensão dos padrões de diversidade e sua conservação. Aqueles ou aquelas mais interessados em biologia comportamental certamente já ouviram falar do Wilson, no contexto da criação da Sociobiologia (embora eu nunca tenha efetivamente trabalhado nessa linha, foi assim que ouvi falar dele nos distantes anos de 1980, em uma matéria sobre a sociobiologia em uma excelente revista de divulgação científica que havia na época, a “Ciência Ilustrada”). Outros talvez tenham ouvido falar de E. O. Wilson por meio de seus muitos livros mais recentes sobre biodiversidade e conservação (ele foi um dos criadores inclusive do próprio termo “Biodiversidade”, tão popular hoje em dia, e desenvolveu a ideia de “Biofilia”, nossa ligação intrínseca e ancestral com a natureza). Essa é a sua contribuição mais atual e de maior impacto geral, havendo inclusive um Wilson’s Biodiversity Foundation. Finalmente, para aqueles que trabalham com insetos sociais e, mais especificamente, com formigas, Wilson certamente é uma referência, pois ele foi um dos grandes especialistas nesse grupo. Wilson tem também várias contribuições mais gerais e uma que mais aprecio é o seu “Consiliência”, um ensaio sobre a unificação da ciência e uma tentativa de reestabelecer as pontes entre as ciências naturais e as humanidades.


O interessante é que as pessoas que conheceram E. O. Wilson pela criação da Sociobiologia, por exemplo, talvez não tenham muita ideia das suas contribuições para a Ecologia (como a Teoria do Equilíbrio em Biogeografia Insular e seu impacto enorme em toda a área de biodiversidade), e vice-versa, por exemplo. O mesmo vale para quem o conhece com um dos grandes especialistas em biologia e taxonomia de formigas...Uma vez, há muitos anos, tive uma discussão que apareceu nas páginas da revista “Galileu” com um colega que disse que Wilson era um “biólogo de formigas” e de certo modo usou isso para desqualificá-lo em outras questões relacionadas ao racismo (ver a seguir). Sem nenhum demérito para os mirmecólogos (especialistas em formigas), muito pelo contrário, mas E. O. Wilson foi bem mais que isso. Na verdade, MUITO mais do que isso... Para que as pessoas tenham uma ideia mais clara de até ondem a admiração por ele pode chegar, para alguns, no futuro, Darwin será conhecido como o “Wilson do século XIX”.


Temos, nesse momento de tristeza, típico das despedidas, muitas homenagens mais do que merecidas a E. O. Wilson e com certeza extensas revisões sobre o seu trabalho. Não quero ser repetitivo e, honestamente, não tenho energia para rever ou sintetizar as principais contribuições de E. O. Wilson para a Biologia, pelo menos não agora. Certamente, sugiro que todos leiam a sua excelente autobiografia publicada em 1991, “Naturalista” (há tradução em português). O que impressiona é que, de fato, direta ou indiretamente E. O. Wilson participou de praticamente todas as grandes descobertas e avanços na Biologia Evolutiva e Ecologia desde os anos de 1950. Além disso, ele foi também um dos primeiros grandes cientistas a se preocupar e ocupar seriamente com a questão da conservação dos ambientes naturais, se tornando um ativista dentro de suas possibilidades e competências.





Apesar de tudo isso, não foi de todo inesperado quando meu amigo Luis Mauricio Bini me chamou atenção para um ensaio de opinião recentemente publicado na prestigiosa revista de divulgação científica Scientific American, escrito por Monica R. McLemore, da Universidade da California. Ela já começa chamando E. O. Wilson de racista e perguntando retoricamente o que devemos fazer com a contribuição de cientistas racistas como ele:


“With the death of biologist E. O. Wilson on Sunday, I find myself again reflecting on the complicated legacies of scientists whose works are built on racist ideas and how these ideas came to define our understanding of the world.”


Não acho que a morte de alguém o redima ou a redima de todo e qualquer mal. Vimos muitas discussões sobre o legado de cientistas importantes como Carl Sagan e Steve Gould quando estes faleceram, em alguns casos questionando suas contribuições (existe até um “efeito Sagan”, referente à redução de produtividade de um cientista quando este ou esta se envolve em divulgação científica e se torna um “superstar” no caso dele, deixando de produzir conhecimento original). Mas eram outros tempos e é lamentável que a Scientific American tenha publicado algo tão enviesado, antiquado, desinformado e totalmente baseado em uma visão extremamente danosa e relativista da ciência. Então, mais uma vez não resisti à discussão...Mas de onde vem esse ataque?


O ensaio de Monica R. McLemore diz que o trabalho de E. O. Wilson na Sociobiologia é racista sem maiores explicações, e ela diz que ele não está sozinho e diz que o trabalho de Karl Pearson, Francis Galton, Charles Darwin e Gregor Mendel, dentre outros, também são racistas. Alguns deles tiveram posições que hoje consideramos pseudo-científicas em relação à imigração, por Pearson, exemplo, e há muita discussão sobre a visão de Darwin e Galton sobre a questão racial, mas Darwin por exemplo era bem menos propenso a criar “escalas” que iam dos “brutos” ao ápice da civilização européia (inclusive por sua visão geral de evolução inclusive, que já discutimos aqui)...Mas Mendel? E de que “outros” ela está falando? De qualquer modo, são todos homens do século XIX, estavam sem dúvidas imersos em um contexto cultural totalmente diferente do nosso, mas voltamos a isso em seguida. Já discutimos aqui que, de fato, no início do século XX a genética foi sim usada para justificar práticas racistas no contexto da eugenia, mas isso sim era pseudociência e não tinha relação com direta com o conhecimento em genética por si (que, na realidade, ainda era bem incipiente, diga-se de passagem). Mas e o que E. O. Wilson tem a ver com isso?


Ela encaminha então a discussão para a questão do nurture versus nature (genes ou ambiente) e diz que os geneticistas que lidam com isso têm que lidar com dificuldades de lidar com racismo. Como assim? Qual a relação entre atribuir um componente genético a variações morfológicas, fisiológicas, ecológicas ou comportamentais e racismo? Dizer que existe variação biológica herdável, em maior ou menor grau (chamamos esse parâmetro de “herdabilidade”) para qualquer atributo, como por exemplo diferenças na cor da pele humana ou qualquer outra característica, e dizer que esses atributos variam entre populações, estejamos falando da espécie humana ou qualquer outra espécie, não é racismo. Isso é genética e biologia evolutiva básica. Sempre insisto que precisamos entender e assumir que a nossa espécie é apenas mais uma espécie única, mesmo que tenhamos um forte componente social e cultural capaz de ampliar os níveis de variação fenotípica e gerar mais plasticidade...Essa variação e plasticidade foi bastante importante na evolução humana, inclusive. Pode ser um problema de compreensão e percepção de profissionais da área médica e de saúde, para os quais algo com uma base genético é imutável e determinístico, deve ter alguma confusão aí, falta uma visão evolutiva e dinâmica, e volto ao debate que tive há mais de 20 anos sobre a questão da diferenciação populacional. É preciso discutir com mais calma esse aspecto para evitar mal-entendidos, mas as raças biológicas não existem não porque a espécie humana é homogênea e sem variação, mas porque essa variação é distribuída de contínua no espaço e no tempo, formando diferente gradientes e padrão geográficos para as diferentes características morfológicas, fisiológicas, comportamentais, culturais. Assim, não existem grupos ou “subespécies” bem definidas, na verdade nem para o homem e, em geral, nem para a maioria das espécies amplamente distribuídas em termos geográficos. A definição de grupos, que era uma prática comum tanto na Zoologia quanto na Antropologia até início ou meados do século XX, está há muito ultrapassada. E justamente uma das pessoas que começou essa categorização foi E. O. Wilson, ainda em 1954! E vejam que, mesmo que houvesse grupos biologicamente bem definidos dentro da espécie humana (que não é o caso), reconhecer as diferenças não implica necessariamente em racismo, no sentido de discriminação, escravização, valoração etc.


De qualquer modo, além dessa questão básica de sistemática e evolução, as discussões na Sociobiologia e na Biologia Comportamental Humana, ou Psicologia Evolutiva, são e sempre foram muito mais profundas que isso e já há muito tempo, envolvendo a discussão sobre genes e ambiente para além de questões puramente morfológicas...Estamos falando de componentes genéticos e evolutivos de características comportamentais e culturais, mais complexas, mas nenhum sociobiólogo minimamente informado seria ingênuo a ponto de dizer, por exemplo, que a pobreza é inerentemente genética ou coisas parecidas e intrinsecamente relacionadas aos grupos étnicos e raciais, como McLemore sugere no texto. Que confusão... E a sociobiologia, de fato, é bem mais complexa do que isso.


Em resumo, em 1975 E. O. Wilson sintetizou a biologia comportamental e o neo-darwinismo em seu magnífico “Sociobiology: the new synthesis”. Eu particularmente considero o Sociobiology como o último dos grandes livros que compõem a teoria sintética da Evolução, publicado tardiamente em relação às contribuições de Ernst Mayr, Theodosius Dobzhanski, George G. Simpson, Julian Huxley e outros nos anos de 1940-1950 (veja aqui um histórico rápido do pensamento evolutivo nos século XIX e XX). De modo geral, o Sociobiology foi recebido de forma extremamente positiva, afinal Wilson era um dos grandes nomes da área e o trabalho em si é fenomenal, reunindo tudo que se sabia sobre comportamento animal e dando a ele uma visão evolutiva. Entretanto, o último capítulo, “From Sociobiology to Sociology”, teve uma grande repercussão, mas em geral negativa e gerou muitas controvérsias entre biólogos e sociólogos que existem até hoje. Muito da discussão nesse capítulo se refere ao quanto dos padrões sociais e comportamentais (e especialmente sexuais) teriam uma base genética-evolutiva e teriam sido moldados por pressões seletivas e variações adaptativas no passado. E, claro, o quanto elas são passíveis de mudança diante de novas pressões sociais. Em um certo sentido é uma discussão trivial, algo tipo “copo meio cheio” e “copo meio vazio”, quando temos além disso milhares de copos e outros fatores enchendo e esvaziando esses copos ao longo do tempo...





De qualquer modo, esse não é um tema fácil e aberto a muitas discussões e qualquer frase tirada de contexto causa muito mal-estar. Claro, rapidamente E. O. Wilson foi acusado de racismo, sexismo, determinismo, de ser um adaptacionista extremo (inclusive por outro dos meus heróis intelectuais, o também professor de Harvard S. J. Gould, falecido em 2002). Para mim essas críticas nunca fizeram muito sentido, pelas razões que coloquei acima, mas enfim, essas coisas acontecem. Depois de conviver um pouco mais com colegas da área de humanidades, sei o quão fácil é que interpretações distorcidas e simplificações (sobre “genes para isso ou aquilo”, por exemplo) podem causar problemas sérios. Além disso, existem visões complexas sobre o significado da ciência e sua natureza, que vamos discutir a seguir. Mas, de qualquer modo, resolvi reler agora o capítulo depois de mais de 25 anos e acho que, na verdade, que ele chega a ser até ingênuo. Não temos espaço aqui para revisar e discutir todos os pontos, mas de fato as posições de Yuval Harari, no seu “Sapiens”, por exemplo, são muito mais “fortes” no sentido de explicar de forma “intrínseca” muito do nosso comportamento social e sexual. Hoje sabemos muitas coisas sobre como o comportamento de massas e estruturas de grupo (bandos) interferem e disparam padrões neurológicos no nosso cérebro, e como isso explica o comportamento religioso e a aceitação de fake news (problema bem potencializadas pela internet, mas que releva resquícios fortíssimos do nosso cérebro antropoide hipertrofiado...). Não é necessariamente biológico apenas e, claro, não são só “genes”, mas nunca foi mesmo assim (e E. O. Wilson nunca disse isso).


Hoje me admira que as questões básicas de sociobiologia humana do Sociobiology tenham gerado (e ainda gerem, de fato) tanta controvérsia. Mas que é assim que a ciência avança mesmo...E, de qualquer modo, mesmo diante de todas as críticas à época (ou talvez até por causa delas), E. O. Wilson lançou, 4 anos depois, o “On Human Nature”, só para discutir a evolução humana e a sociologia, livro que ganhou o prêmio Pulitzer na categoria de não – ficção. Isso, claro, só piorou a controvérsia, pelas mesmas razões de dificuldade de comunicação e falta de compreensão, mas nele há muitas ideias fantásticas.


Mas, para além desse aspecto mais “batido” da sociobiologia e da discussão trivial entre efeitos genéticos e ambientais sobre padrões culturais e comportamentais, há outra coisa mais interessante e que me chamou atenção quando McLemore menciona algo sobre “white empiricism”, e coloca um link que nos remete para um artigo sobre como a exclusão de mulheres negras afetou epistemologicamente a Física. Esse é um ponto até interessante para discutirmos, que está ligado à toda essa questão da sociologia da ciência que temos colocado aqui. Na frase inicial do ensaio transcrita acima ela já questiona o que devemos fazer em relação ao legado de cientistas racistas (como Wilson, segundo ela). Mesmo não concordando e sem entender bem o que ela quer dizer ao chamar de racista a sociobiologia e a psicologia evolutiva, vamos entender o que ela quer dizer sobre o que fazer com o legado.


Sem dúvida, as bases da ciência moderna e suas aplicações tecnólogicas foram feitas por homens brancos de ascendência européia, que podemos chamar de WASPs (White-Anglo Saxonian Protestants; faltou o “Men”, mas está subentendido). Isso tem uma série de explicações históricas, mas de modo bem simplificado reflete a estrutura social que temos na Europa desde o final do império Romano, com forte influência da Igreja Católica e suas variantes, e da expansão global dessa civilização com as navegações em busca de rotas comerciais associada à expansão inicial do capitalismo, como bem coloca Yuval Harari em “Sapiens”. Nesse processo, estabeleceram-se as colônias europeias em todo o mundo e isso levou inclusive ao extermínio de muitos povos indígenas, tanto física quanto culturalmente, bem como à associação do racismo à escravidão principalmente dos povos africanos (e criando uma forte associação entre o racismo e os povos Africanos). Isso é a história que temos, inclusive a que é contada pelos vencedores, mas claro que temos “feedbacks” interessantes, como o desenvolvimento do iluminismo na Europa por influência da cultura dos indígenas norte-americanos (vejam o excelente “The Dawn of Everything”, de David Graeber e David Wengrow, mas discutimos isso melhor em outro momento).


De fato, pensando bem, todos os meus heróis intelectuais da fase clássica em Ecologia e Evolução são homens brancos (incluindo E. O. Wilson). Mas vejo que ha um forte efeito de área do conhecimento e do tempo (época) nisso. Por exemplo, na minha outra área de forte interesse de pesquisa atual, em filosofia da ciência, minhas filósofas prediletas atualmente são principalmente mulheres, como por exemplo Nancy Cartwright, Naomi Oreskes, Mary Morgan e Margareth Morrison (tenho na minha lista de autores favoritos claro os homens brancos tradicionalmente representados por Popper, Kuhn, Lakatos, Laudan, Feyeraband e, mais recentemente, Ronald Giere; este último, aliás, criticado por alguns colegas por sua defesa do feminismo na ciência, também faleceu em 2020...). Ok, mas vamos em frente.


O ponto em que quero chegar é qual a relação entre a ciência atual e as suas origens e história, e o fato dela ter sido feita principalmente por WASPs, em termos de vieses culturais e raciais? Claro, vemos uma série de movimentos de revisão histórica em todo o mundo questionando se devemos enaltecer pessoas que, por exemplo, massacraram a indígenas, ou que tiveram atitudes racistas ou sexistas. É uma questão mesmo da história ser escrita pelos vencedores e podemos repensar esses valores a todo o tempo. Não sou historiador, mas tenho certeza de que há discussões teóricas importantes e interessantes relacionadas a isso. Mas o que isso tem a ver com as contribuições de uma pessoa para a ciência e o conhecimento humano? Digo isso porque as duas coisas (a atitude da pessoa e a sua contribuição) necessariamente não estão relacionadas em alguns casos. Por exemplo, vamos deixar de calcular uma correlação de Pearson em nossos trabalhos porque ele (Karl Pearson) era declaradamente racista e eugenista? Nesse caso me parece que não há problema, mas há outros aspectos interessantes para considerar nessa discussão.


De forma mais sofisticada epistemologicamente, podemos realmente pensar que a ciência atual seria diferente se suas origens sociais e culturais fossem outras e se houvesse, desde o início, mais igualdade e se ela fosse mais representativa? Mais pragmaticamente, pensando em termos da discussão mais comum e atual sobre racismo e sexismo, como seria a ciência no início do século XXI se tivéssemos mais negros e mulheres como cientistas, por exemplo? Isso é algo muito discutido atualmente, sem dúvida, e vemos muitos movimentos diferentes em todo o mundo que procuram ampliar a diversidade na ciência por meio de ações afirmativas (sempre com alguma resistência, reconheço...), como já discutimos aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias”. Mas vamos tentar pensar melhor sobre essas diferenças e esses efeitos, do que estamos falando mesmo?


Um primeiro passo é reconhecer que existem (efetivamente) essas desigualdades, o que pode ser facilmente demonstrado inclusive porque o efeito é muito forte (ou seja, há MUITO menos mulheres e negros na ciência, especialmente em posições de destaque). Seguindo a discussão no meu livro texto predileto de filosofia da ciência, o “Theory and Reality” de Godfrey-Smith, poderíamos pensar em dois efeitos principais que essa desigualdade pode causar, em termos de práticas científicas e da sua própria concepção teórica.


1. Em um primeiro nível poderíamos pensar que a maneira como a ciência é feita hoje, em termos de suas práticas, é afetada por essa desigualdade. Alguns argumentam, por exemplo, que se houvesse mais mulheres na ciência ela seria menos competitiva, pois essa competição é uma característica tipicamente masculina. Não sei se concordo muito, pois acho que a ciência existe em um balanço muito delicado entre competição e colaboração, de fato, mas essa competição é muito mais forte entre grupos do que entre os sexos. Assim, a prática científica refletiria um componente maior da sociedade capitalista como um todo, e teríamos muito a discutir aqui. Mas ainda assim alguém poderia argumentar que a própria sociedade como um todo é machista, claro (touché, morri!!!);


2. Em um segundo nível, podemos pensar que como esses grupos menos representados teriam um outro “background” cultural e percepções diferentes do mundo, as TEORIAS científicas atuais que explicam os vários fenômenos naturais e sociais seriam diferentes. Essa segunda consequência, uma pouco mais “hard”, é bem mais controversa. Como a nossa visão do mundo seria diferente? Claro que os homens no passado (e mesmo hoje, às vezes), podem roubar ou usurpar as descobertas feitas por colegas mulheres e diminuir o seu papel, isso é bem conhecido infelizmente. Mas essas teorias são ou seriam diferentes das teorias “masculinas” e entenderíamos o mundo de forma diferente?



Eu particularmente acho que os dois pontos merecem atenção e não vejo grandes problemas em nenhum deles, ao contrário de outros colegas nas ciências naturais (especialmente em relação ao ponto 2). Entendo de onde vem a resistência a esse ponto, considerando a forte influência do positivismo e, mais recentemente, de uma forte visão realista das teorias científicas nas ciências naturais, como já discutimos aqui algumas vezes...Entretanto, uma vez que entendemos que essa visão realista de que existem teorias “verdadeiras” não é necessariamente a única, menos problemas. Por exemplo, podemos entender que, mesmo que o próprio sucesso da ciência implique em um certo realismo das teorias, é claro que isso é uma perspectiva (na visão de Ronald Giere, por exemplo) e que não impede a existência de teorias alternativas ou complementares. Mas isso tem limites, claro...


Em algumas áreas a discussão entre realismo e instrumentalismo é mais forte e a metafísica da “realidade” das teorias e descobertas científicas é bem mais sutil. Em outras áreas menos. Voltando a E. O. Wilson, a Sociobiologia, especialmente pensando em sociobiologia humana, pode ser bem mais sujeita a efeitos de perspectiva, sem dúvida. Um dos exemplos clássicos inclusive do ponto 2 é justamente a biologia comportamental em primatas e humanos, que passou a ter novas teorias quando as mulheres começaram a se inserir fortemente na área como pesquisadoras. O comportamento sexual humano, em particular, que nas teorias sociobiologicas clássicas está muito pensado em um contexto ecológico mais tradicional a partir de visões simplificadas e enviesadas desse comportamento nas sociedades de caçadores-coletores, pode ter realmente falhado em reconhecer muita heterogeneidade (ao dizer que a própria influência da igreja católica e das visões conservadoras pode estar se baseando em propriedades biológicas intrínsecas à divisão de trabalho entre os sexos; mas isso é de fato anterior a Wilson e, de qualquer modo, já mudou muito desde a publicação do Sociobiology em 1975; e mesmo no capítulo 27 não vemos ideias tão fechadas quanto algumas que apareceram depois). Sabemos hoje por exemplo que o comportamento sexual humano nas sociedades de caçadores-coletores é muito mais variado do que se imaginava, de modo que na realidade a cultura e a estrutura social se sobrepõe à biologia sexual básica...Entender essa diversidade em termos de seleção natural e adaptações passadas é bem mais desafiador. Mas Wilson sempre falou disso e inclusive desenvolveu uma série de modelos interessantíssimos de coevolução genético-cultural (isso está muito bem explicado no “On Human Nature”), reconhecendo a complexidade das sociedades. E vejam, para algo mais recente, claro, o “Sapiens” de Harari.


Então, o problema em relação ao ponto 2 não é que não haja outras perspectivas, isso é sempre possível e esperado (exceto em uma visão realista mais extrema). O problema é o que fazer com as perspectivas diferentes. Naomi Oreskes, em seu “Why Trust Science”, defende exatamente que o aumento na diversidade na ciência resulta em mais visões teóricas que podem ser diferentes e que isso é positivo, claro, porque minimizamos a chance de defender teorias equivocadas e inadequadas empiricamente. Mas só ser diferente não é suficiente, é preciso colocar todas elas juntas e combinar, discutir e, mais importante, continuar avaliando e verificando sua adequação empírica. O escrutínio nunca termina, a beleza da ciência está justamente no seu questionamento constante e, como já discutimos, as pessoas (e mesmo muitos cientistas) de fato não entendem isso. E essa falta de compreensão, por sua vez, está realmente associada, em alguns casos, a uma forte visão realista extrema da ciência. Mas a diversidade de ideias não se justifica por si só, apenas se ela melhorar efetivamente o nosso conhecimento sobre o mundo. É preciso pensar em critérios para termos uma efetiva seleção de ideias, e mesmo aqueles que não gostam ou não concordam com Popper entendem a ideia geral de “conjecturas e refutações”.


Na realidade, a ideia da diversidade de ideias ser importante por si só é, na minha visão, o principal problema do relativismo na ciência. Temos visões diferentes do mundo, tudo bem, e elas podem até representar perspectivas diferentes de uma mesma realidade subjacente, no sentido de todas estarem certas sob um certo ponto de vista e capturar diferentes componentes ou partes dessa realidade. Mas precisamos entender bem isso, temos que integrá-las ou, no mínimo, associar suas origens ao “background” cultural e intelectual e entender as implicações dessas correlações. Para muitos relativistas, a existência de uma visão diferente, por definição, parece garantir a validade da ideia ou concepção teórica, especialmente se elas vierem de grupos tradicionalmente minoritários. Às vezes vemos isso, por exemplo, para ideias vindas do conhecimento de povos tradicionais. Acho que aí temos problemas, pois temos que receber quaisquer novas ideias, mas ao mesmo tempo precisar ser críticos em relação a elas. Como dizia Carl Sagan, “devemos que manter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto do cérebro cair da cabeça...”. Ai está o dilema da pluralidade, encontrar esse ponto de equilíbrio entre absorver novas ideias sem comprometer a seriedade da Ciência e seu compromisso com a realidade.


Pior, o outro lado dessa moeda é que, mesmo sem entender se existem mesmo essas perspectivas em algumas teorias ou áreas, o fato de algumas teorias terem sido desenvolvidas por homens brancos nos últimos 200 anos, antes de muitas dessas concepções filosóficas associadas ao relativismo ou ao perspectivismo serem reconhecidas, por si só já permite questioná-las? Esse seria o caso por exemplo da teoria da evolução por seleção natural, por exemplo, que além de ter sido pensada por um homem branco (dois, na verdade, Charles Darwin e Alfred Russel Wallace), se desenvolveu no meio da Inglaterra Vitoriana em meio à revolução industrial e auge do colonialismo inglês. Claro que essa teoria, portanto, está errada ou enviesada...Sério? Já ouvi críticas no mesmo sentido à teoria da relatividade, por exemplo. Desculpem, mas isso não faz o menor sentido...A correlação pode até existir e ela pode ser uma perspectiva, mas o que temos que fazer é, ao entender um problema em potencial, reavaliar e julgar a validade da teoria. A competição entre os indivíduos e espécies sempre teve um papel importante nas teorias ecológicas e evolutivas? Faz sentido? Tem relação com o ambiente intelectual e social no qual Darwin e Wallace estavam inseridos? Talvez sim, mas temos alternativas que poderiam explicar os padrões? Em caso positivo, ótimo, avançamos, sem o menor problema. Isso tem acontecido, embora a competição continue sendo um fator importante para explicar a estrutura das comunidades e explicar os padrões de diversidade. Mas e se eles (Darwin e Wallace) perceberam um componente importante da realidade justamente porque estavam nesse meio? Como diferenciar? E isso importa? Mas se simplesmente dizemos que a teoria inicial não é válida porque “achamos” que há um viés, temos um problema. Vejam que isso rapidamente leva, nesse contexto relativista, a um criacionista usar esse mesmo argumento para dizer que que a teoria evolutiva é só uma construção social (dos homens brancos na Inglaterra Vitoriana) e que não é “verdade”, e, portanto, que a sua “teoria” do design inteligente deve ser igualmente considerada e simplesmente reflete um outro “background” cultural ou intelectual (tudo bem que ela é mais WASP ainda, mas vocês entenderam o raciocínio...).


Precisamos urgentemente retomar as discussões sobre demarcação na ciência. Depois de ser um dos pontos focais da discussão em filosofia da ciência ao longo do século XX, principalmente a partir do falseacionismo Popperiano, a partir do avanço da sociologia da ciência e dos paradigmas Kuhnianos dos anos de 1960 reconheceu-se que era difícil “demarcar” o que conta ou não como ciência. A ciência é muito heterogênea, com diferentes níveis de “amadurecimento”, usa muitos métodos, há relações complexas entre ciência básica, aplicada e tecnologia, toda a questão dos ativismos associados ao conhecimento. Tudo isso gera muitas agendas diferentes, é muito plural...Com tudo isso, é difícil dizer o que é ou não ciência, então vamos em frente, vamos trabalhar para entender o mundo e a sociedade sem se preocupar com demarcar. Essa foi a ideia de Larry Laudan, por exemplo. Tudo bem, mas já discutimos aqui que tem uma questão de honestidade. Como coloca Piggliucci em seu “Philosophy of Pseudoscience”, mesmo que não seja possível estabelecer limites rígidos, precisamos definir o que conta como ciência ou não e o que isso significa, pois as coisas estão fugindo do controle. Principalmente, precisamos entender o que é honesto e legítimo, mesmo que seja ainda incerto e incipiente em comparação com uma ciência mais bem estabelecida. É uma longa discussão e nem sempre fácil, pois há interesses mundanos envolvidos. E vejam que, mais uma vez, E. O. Wilson tentou em seu “Consiliência” estabelecer as bases para um diálogo entre ciências naturais e humanidades, reparar o dano e os efeitos colaterais das “Science Wars” dos anos 80.


Temos falado muito sobre que a pseudociência e o negacionismo estão nos levando fortemente a rediscutir o problema da demarcação, pois essas práticas estão dominando a sociedade e levando a problemas muito sérios, como vimos no Brasil especialmente na pandemia. Não estamos falando mais de questões amplas e teóricas e abstratas, os impactos disso são sérios...Mas as nossas instituições, inclusive as Universidades, abrigam muitos que defendem práticas e teorias negacionistas ou pseudocientíficas, e ao serem questionados o argumento é justamente que é preciso haver pluralidade de pensamento. Como colocam Naomi Oreskes e Erik Conway no seu excelente “Mercadores da Dúvida”, há muitos problemas e muitos interesses econômicos escusos por trás de tudo isso. Entretanto, raramente, por questões políticas inclusive, falamos que o relativismo científico tem um papel importante nessa discussão, tanto no sentido de usar de forma equivocada a liberdade de expressão e a pluralidade quanto ao atacar “a priori” certas áreas ou teorias científicas mais “duras” se elas não foram desenvolvidas, historicamente, em um contexto que hoje é considerado politicamente correto.


Então, se temos diferentes perspectivas hoje e se entendemos que uma teoria em vigor está fortemente influenciada por um “background” cultural ou social que consideramos inadequado, sem problemas, podemos achar outras perspectivas e podemos colocar tudo isso na mesa, avaliando melhor a evidência empírica. Mas isso não significa, por definição, que a teoria está “errada” ou não tem valor. Mesmo que a teoria da seleção natural tenha sido desenvolvida em um contexto que não consideramos hoje adequado (não sei bem por que, mas enfim...), isso não significa que as nossas estimativas desse efeito em um estudo de campo ou analisando os dados populacionais estejam erradas. Ou que o Universo não se comporta como Einstein sugeriu apenas porque ele era um homem branco europeu do início do século XX (aliás, diga-se de passagem, essa era uma das visões de Hitler, que falava que os nazistas não deveriam confiar na “ciência judia” ou “física judia”, o que é bem irônico pensando na similaridade com o que ouço de muitos relativistas...).


Em resumo e já finalizando, muito das críticas à Sociobiologia em termos de ser racista ou sexista estão, na minha compreensão, totalmente superadas e nunca se justificaram muito, especialmente se dirigidas pessoalmente à E. O. Wilson como cientista. Isso não significa que a perspectiva original dos anos 70 não tenha sido ampliada ou mesmo superada, pois hoje temos uma compreensão bem mais ampla das influências genéticas, sociais e culturais no comportamento humano e, consequentemente, na estruturação da sociedade. Mas ninguém sério jamais foi tão ingênuo e negou essa complexidade, e claro que isso também não significa também que não tenhamos biólogos e naturalistas que sejam racistas e sexistas (e muitos são criacionistas também, aliás...). Temos que combater fortemente isso tudo, claro. Mas temos que ficar sempre atentos para não criar uma nova inquisição sem nenhuma base e atacar a imagem de pessoas em função de vieses de percepção. E precisamos ter coragem também de ir contra outras formas de discriminação e entender inclusive outras fontes de viés, inclusive a própria religião. Há pouco tempo um colega criacionista foi duramente criticado por defender o movimento anti-vacina, e quando eu argumentei que isso era péssimo mas que ele já negava a ciência há muito tempo (por ser criacionista), outro colega disse que isso era uma situação mais delicada e um pouco diferente. Mesmo? Como assim diferente? Porque temos que respeitar as “crenças religiosas”, mesmo que revestidas de pseudociência, mesmo que elas me ofendam como biólogo? Enfim, outras digressões interessantes...


Nunca tive a honra de conhecer pessoalmente E. O. Wilson e certamente não conheço suas visões intimas sobre qualquer uma dessas questões, não sei se ele se enquadraria como racista ou sexista. Não me parece que isso é compatível com um a visão de um biólogo evolutivo, ainda mais alguém do porte dele. Todos que o conheceram dizem que era uma pessoa muito amável e muito simples, o que transparece no “Naturalista”. Acho muito pouco provável, considerando toda a sua trajetória científica, inclusive para muito além da Sociobiologia, que ele defendesse pontos de vista racistas e sexistas. Afinal, podemos entender que há diferenças em tudo que vemos e que há diversidade, inclusive na espécie humana, e, ao invés de discriminar e perseguir os diferentes de nós, podemos simplesmente admirar essa diversidade e tentar entender sua origem. Afinal, a diversidade é a base de tudo que temos em Biologia, não é à toa que temos > 18.000 espécies de formigas por exemplo, e adoramos entender isso. É isso que os biólogos fazem de melhor, há realmente "...grandeza nesse modo de ver a vida". É isso que E. O. Wilson fez a vida toda!




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