Como discutimos na postagem anterior, uma visão “positiva” da ciência (no sentido do positivismo/empiricismo lógico) tem uma série de problemas e, apesar de sua grande influência até os dia de hoje, sabemos que a ciência funciona de uma forma bem mais complexa, tanto em termos de como o conhecimento científico avança (considerando a elaboração de teorias e avaliação de modelos) quanto pelos componentes sociológicos envolvidos nesse avanço.
Na visão popular de ciência costumamos pensar em teorias (ou modelos, como veremos a seguir) como algo abstrato e que existem, digamos assim, no “mundo das ideias”, e que estas fazem predições sobre o mundo real. Temos então hipóteses - proposições testáveis da teoria - que nos permitem avaliar se as teorias são coerentes com o que observamos no mundo real. Precisamos então obter dados objetivamente de modo a confirmar ou rejeitar a teoria e, assim, saber se as explicações que temos para um fenômeno estão corretas ou não. Na verdade, como sempre, as coisas não são tão simples assim e uma discussão interessante aparece quando pensarmos o seguinte: até que o ponto os dados que coletamos no nosso dia a dia são “reais”, ou se são mesmo obtidos “objetivamente” e existem no mundo “real” independente de qualquer coisa. Será que é possível mesmo desacoplar teoria e dados?
Vamos pensar em um exemplo que acho bastante ilustrativo na minha principal área de pesquisa, a Ecologia. Peço um pouco de paciência de vocês para desenvolver o raciocínio e colocar questões teóricas e práticas sobre o nosso trabalho antes de voltarmos ao ponto principal e mais geral colocado acima.
Uma das questões mais antigas em Ecologia e Biogeografia é entender por que há mais espécies (de praticamente de todos os grupos de animais ou plantas) nas regiões tropicais do que nas regiões temperadas do nosso planeta. A questão é entender o que chamamos atualmente de “gradientes latitudinais de diversidade” (que não são só latitudinais de fato...nem são só padrões graduais em gradiente...mas enfim, a natureza é complexa!) Na verdade, essa questão foi levantada formalmente pela primeira vez, ao que sabemos, pelo famoso naturalista alemão Alexander von Humboldt (1769-1859) no início do século XIX, quando de suas viagens pela América do Sul. Ele escreveu em 1807 que:
“…Yet, this fulness of life and its renovation differ according to differences of climate. Nature undergoes a periodic stagnation in the frigid zones….Thus, the nearer we approach the tropics, the greater the increase in the variety of structure, grace of form, and mixture of colors, as also in perpetual youth and vigour of organic life.’
Vejam que von Humboldt já chama atenção para o fato de que uma possível explicação para os gradientes é o clima (mais especificamente temperatura), de modo que regiões mais frias seriam mais inóspitas e teriam menos espécies. De fato, até hoje temos uma série de teorias que elaboram e combinam mecanismos ecológicos ou evolutivos nos quais a temperatura, ou a sua variação ao longo do tempo, poderiam explicar esses gradientes. Há, claro, outras teorias, mas, de qualquer modo, não quero discutir aqui as várias explicações possíveis para os gradientes e sim ilustrar a questão filosófica dos dados e das teorias. Vamos ficar então com a proposição original de von Humboldt e avançar uns dois séculos, chegando à Teoria Metabólica da Ecologia (TME) que foi proposta pelo ecólogo norte-americano J. H. Brown e vários colaboradores a partir dos anos 2000.
A ideia de Brown - que aliás foi o criador do termo “macroecologia” em 1989, a área de pesquisa mais específica na qual essa discussão está inserida - foi desenvolver uma teoria geral baseada em princípios termodinâmicos fundamentais e em como os organismos com diferentes características usam a energia do ambiente, chegando em modelos capazes de explicar diferentes padrões ecológicos. Um de seus alunos de Doutorado à época, Andrew Allen, desenvolveu um modelo derivado da TME para explicar os gradientes de diversidade, publicado em 2002 na prestigiosa revista Science. Allen e colaboradores chegaram à uma equação que diz que o logaritmo do número de espécies que encontramos em um dado lugar (a “riqueza” de espécies) possui uma relação negativa com o inverso da temperatura, e chegaram a um valor específico da inclinação (slope) dessa reta. Não precisamos entrar nos detalhes matemáticos de como eles chegaram à essa equação, mas o ponto importante aqui é que eles desenvolveram então um MODELO a partir da teoria, que vai nos permitir testar empiricamente hipóteses sobre o mundo real. Uma vez que temos uma equação (um modelo) derivada da teoria, podemos então ver se a teoria está correta comparando o que a equação prevê com a realidade. Vamos então à realidade...precisamos de dados agora, e dados não faltam, certo? Mais ou menos...
Uma das condições básicas do modelo de Allen é que ele deve prever a riqueza de organismos ectotermos, ou seja, organismos “de sangue frio” que não sejam capazes de regular fisiologicamente sua própria temperatura corpórea (como fazem aves e mamíferos, que são animais “de sangue quente”). Isso vem da ideia de que a TME se baseia no modo como a energia do ambiente ativa funções metabólicas mediadas por uma série de outros fatores biológicos e, portanto, os padrões nesses organismos estariam ligados à temperatura (que seria um indicador da energia disponível). Então, vamos pensar por exemplo em anfíbios (sapos, rãs, pererecas, salamandras, etc) e tentar obter dados que possam ser utilizados para ver se as predições da TME e do modelo de Allen estão corretas. Vamos lá...
Se queremos testar o efeito da temperatura, claro que precisamos comparar locais em que haja variação de temperatura no ambiente. E lembrem que a hipótese que queremos testar está pensada em termos dos gradientes observados por von Humboldt, de modo que queremos dados em amplas escalas geográficas, por exemplo, cobrindo regiões tropicais e temperadas (um gradiente ao longo da latitude). Poderíamos delinear um esquema de coleta de dados, ou seja, iríamos a diferentes lugares, digamos, ao longo do continente americano, e coletaríamos ou observaríamos quais espécies diferentes de anfíbios encontramos em cada um desses lugares. Mas, por mais que os biólogos gostem de viajar e de fazer trabalho de campo, vocês já podem imaginar que o custo disso seria MUITO elevado. Precisaríamos pensar em viajar, identificar locais adequados de coleta (pois hoje a maior parte dos lugares já está fortemente antropizado, ou seja, influenciado pelas atividades humanas e isso poderia distorcer os dados...), organizar toda a logística de coleta e trabalhar em equipes. Precisamos pensar em onde guardar esses animais (museus, coleções), isso sem falar em obter autorizações dos órgãos de fiscalização ambiental (algo importante...!!!!) dos vários países. Esses animais também não aparecem sempre em qualquer época do ano, de modo que essa coleta precisaria ser padronizada em um período por diversas equipes ao mesmo tempo, ou então fazer várias amostragens por ano...Quem vai pagar por isso?
Sendo mais modestos, alternativamente, poderíamos fazer essas coletas em um contexto altitudinal, já que a temperatura também diminui com a altitude, mas ainda assim precisaríamos ter uma montanha relativamente alta e ir coletando ao longo de diferentes altitudes, o que também pode não ser tão simples em termos de logística....De qualquer modo, com essa amostragem ao longo de altitudes talvez pudéssemos testar os princípios da TME e do modelo de Allen, mas não o gradiente latitudinal (regiões temperadas versus tropicais) em si. Enfim, é complicado e há mais problemas que poderíamos comentar e outros que nem imagino. Mas vou parar por aqui, acho que vocês já entenderam que, para testar a TME nesse contexto geográfico, não é muito viável coletar esses dados diretamente.
Felizmente, existem outras possibilidades, que são em parte a motivação da própria criação da área que chamamos de “macroecologia” (com fortes raízes na biogeografia nesse caso). Ao longo dos anos, muitos naturalistas, em diferentes locais do mundo, vão a campo e coletam os muitos dados sobre as espécies de anfíbios, estudando suas populações, sua reprodução, seu comportamento etc. Esses dados são reunidos em bancos de dados que são, por sua vez, eventualmente avaliados, sintetizados e organizados por outros pesquisadores. No nosso exemplo em particular, o dado de interesse é a ocorrência das espécies, ou seja, a latitude e longitude onde cada indivíduo das muitas espécies de anfíbios foi coletado. Claro, são milhões de ocorrências em todo o mundo, e esses dados não foram coletados ao mesmo tempo, nem nos mesmos lugares exatos, mas poderíamos utilizá-los de alguma forma para avaliar a TME.
Uma estratégia comum seria então gerar uma malha (grid) de “quadrados” imaginários cobrindo o mundo (às vezes usamos o termo “células”), por exemplo com um grau de latitude e longitude (mais ou menos 110 km no equador), e registrar quais ocorrências de quais espécies estão em cada quadrado. Entretanto, por mais que sejam milhões de ocorrências, não há tantos naturalistas e tantos pontos de coleta assim, cobrindo todo o mundo, em todos os locais possíveis onde cada espécie poderia existir (e além disso estamos falando de mais de 7000 espécies de anfíbios reconhecidas atualmente). Então, antes de registrar as espécies, precisamos de certo modo interpolar os pontos de ocorrência conhecidos e definir a distribuição geográfica delas. Isso pode ser feito pelos especialistas, a partir do seu conhecimento do dia a dia sobre os habitats das espécies e os limites de sua distribuição, simplesmente desenhando um contorno em um mapa e delimitando a região onde a espécie pode ser encontrada. Mais formalmente, é possível chegar a esse contorno pelo que chamamos de “modelo de nicho ecológico” (ENM), como discutimos recentemente aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideais”. Com isso, podemos agora então sobrepor essas distribuições geográficas e, voilà, temos a riqueza de espécies de anfíbios em todo o mundo! Podemos inclusive visualizar os padrões de riqueza de espécies em todo o mundo em um mapa (no qual cores mais vermelhas representam regiões mais ricas de espécies, regiões mais azuis uma menor riqueza). Sem dúvida, von Humboldt ficaria encantado com um mapa como esse!
Mas o mais importante é que agora podemos realmente testar a TME, comparando a riqueza que definimos para cada lugar do mapa acima com a riqueza que seria ESPERADA nesses locais pela equação derivada por Allen e colaboradores (cujos valores vêm, de fato, da temperatura - e nem vamos entrar em mais detalhes aqui, mas vamos usar a temperatura média anual nas diferentes células cobrindo o mundo como um indicador de energia disponível segundo o modelo de Allen). O que queremos testar é se a riqueza no mapa dos anfíbios corresponde à riqueza esperada pela teoria, ou seja, se o modelo prevê uma alta riqueza em uma região, de fato eu tenho que observar uma riqueza elevada ali. Assim, podemos fazer um gráfico colocando a riqueza que calculamos em Y e a riqueza esperada pelo modelo em X, de modo que se a teoria está correta eu esperaria uma reta perfeita de 45o, certo? Essa figura encontra-se abaixo e, embora haja uma certa tendência de que locais com maior riqueza calculada tenham mesmo valores preditos mais elevados, há também muita variação nas predições da TME quando a riqueza calculada é baixa...Obviamente os desertos são bem quentes, mas não tem anfíbios (e a TME prediz riqueza alta em regiões muito quentes (obviamente parte da resposta é que falta disponibilidade de água nesse modelo, mas deixamos essa discussão para outro momento). Na verdade, a relação não é nem de longe linear e próxima da linha de 45o (linha vermelha), há uma região “triangular” no espaço das duas riquezas que é ocupado (na verdade isso é bem comum em relações macroecológicas). A variação na temperatura, na verdade, explica apenas 44% da variação na riqueza de espécies.
Na verdade, há uma grande discussão sobre se a TME funciona ou não e se ela consegue explicar os gradientes de diversidade de modo mais geral. Mas não temos respostas definitivas, o que nos leva de volta ao que discutimos na postagem anterior sobre a questão da ciência ser mais complexa do que usualmente pensamos e, especificamente, à questão inicial dessa postagem. O que quero discutir é se realmente estamos comparando as expectativas (predições) da teoria com dados reais, nesse nosso exemplo. A resposta à essa questão tem muitas e muitas implicações.
Vejam, o que estamos chamando aqui de riqueza calculada (e às vezes usamos a expressão riqueza “observada”), de fato, é um MODELO do “real”, um modelo dos dados mais primários que poderíamos coletar, que seriam as ocorrências das espécies. No caso dos contornos das espécies serem definidos por ENMs é explicito que temos um modelo matemático/estatístico/computacional da distribuição geográfica, claro, mas há mais questões envolvidas, vamos ver a seguir. O que estamos fazendo, de fato, na figura da relação XY acima é comparar um MODELO TEORICO (uma representação da TME) com um MODELO DE DADOS (uma representação dos dados). As razões pelas quais temos um modelo dos dados já deve estar mais ou menos claras nesse momento, mas vamos deixar mais detalhar um pouco mais.
O mapa de riqueza é obtido pela sobreposição de distribuições geográficas, que não são “reais”, são uma interpolação, já que não é possível (e nem faria sentido inclusive...) coletar em “todos” os lugares. Assume-se que as coletas de certo modo estão bem distribuídas, mas sabemos que há grandes lacunas de informação e, entre os locais dentro da distribuição geográfica geral, há muitos que não são adequados à espécie, já que os habitats diferentes ocorrem em geral em um mosaico em escalas bem menores do que a distribuição geográfica em escalas maiores (pense, por exemplo, em uma espécie que vive em área mais úmidas ou corpos d´agua, como a maioria dos anfíbios, em meio à região de Cerrado ou campos). Independente se usamos o conhecimento de um especialista ou um ENM para definir um contorno, o que temos, portanto, é um modelo, uma representação, uma generalização das ocorrências que chamamos de distribuição geográfica. Vejam que quando temos uma distribuição discreta (ou seja, a espécie ocorre ou não) isso também é uma simplificação, já que ela pode ocorrer com maior ou menor abundância (número de indivíduos por espécie) em diferentes partes da distribuição geográfica (há uma certa expectativa que mais indivíduos sejam encontrados mais no centro da distribuição). Esse padrão espacial da abundância também possui muitas implicações, inclusive porque se uma região possui uma abundância muito menor, porque o ambiente já é menos favorável, por exemplo, há maior probabilidade de extinção dessas populações “marginais” na distribuição, de modo que o contorno pode ser mais variável e instável, inclusive ao longo de anos diferentes. A distribuição geográfica, portanto, não é algo fixo e estável, imutável...Mas precisamos definir isso pragmaticamente como um contorno a partir de certos critérios de modo que podemos sobrepor essas distribuições para chegar, como vimos acima, ao mapa de riqueza.
Além disso, temos a própria questão das “espécies”. A TME e o modelo de Allen e colaboradores tem por objetivo entender os padrões de riqueza, o número de espécies, mas como chegamos à conclusão de que um indivíduo X que está em um museu qualquer pertence à uma espécie “A” ou “B”. Algum taxonomista especialista em anfíbios, em algum momento, utilizou as convenções disponíveis à época e identificou o indivíduo, atribuindo-o à uma espécie que era reconhecida a partir de critérios consensuais (ou mais ou menos consensuais) entre alguns dos taxonomistas. Há uma série de concepções teóricas nessa atribuição, bem como questões práticas e operacionais. O fato é que uma espécie também é uma construção (essa é uma longa discussão bem interessante em um contexto de Filosofia da Biologia...). E, além disso, será que conhecemos “todas” as espécies? Será que ainda não existem espécies novas que ainda são desconhecidas? Todos esses problemas são estudados em um contexto de identificar e corrigir lacunas de conhecimento (shortfalls) em biodiversidade. E as espécies que foram extintas recentemente por ação humana com maior ou menor intensidade em diferentes regiões do planeta? Nem sabemos delas, em muitos casos, e nem vamos saber...Mas, pela TME e pelo modelo de Allen e colaboradores, elas ainda deveria estar nos seus respectivos lugares, já que o modelo deles para prever a riqueza não incorpora esses efeitos antrópicos que aumentam a chance de extinção.
Finalmente, existe uma outra questão muito importante ainda, que é a RESOLUÇÃO da malha que é usada para chegar à riqueza, o tamanho dos quadrados ou células. Estamos arbitrariamente dividindo o espaço geográfico contínuo em regiões arbitrárias (quadrados), de modo que estamos avaliando é de fato a riqueza em uma grande região. Já mencionei ainda a questão do habitat quando falei da adequação dos locais dentro da distribuição geográfica, mas até que ponto os processos ecológicos que estamos estudando ocorrem nessa escala do quadrado? E se mudamos essa resolução, ao invés de usarmos 1 grau usarmos 0,5 graus? Poderíamos também usar regiões ecológicas “naturais” ao invés de quadrados, mas isso leva a outros problemas (um forte efeito de área sobre a riqueza, por exemplo).
De qualquer modo, esse efeito de escalas é um tópico discutido há décadas na Ecologia. Imaginem que há duas espécies “A” e “B” que são sempre encontradas mais ou menos nas mesmas células, digamos, em muitas células que cobrem a região do Cerrado do Brasil central. Isso deve indicar que elas têm uma origem evolutiva comum na região, ou estão adaptadas e chegaram a ela, e se olharmos em escala global, ou mesmo de Brasil, elas estariam positivamente correlacionadas. O que quero dizer é que se pegamos todas as células que cobrem o Brasil, por exemplo, quando encontramos a espécie “A” tendemos a encontrar também a espécie “B” (em geral em células do Cerrado), e quando não encontramos a espécie “A” também não encontramos a espécie “B” (em geral nos outros biomas). Mas isso não pode ser interpretado em termos do que chamamos de “interações bióticas” entre essas espécies, que incluem os processos ecológicos nos quais as pessoas estão acostumadas a pensar (por exemplo, predação, parasitismo, competição etc). Isso porque o meu dado não está na “escala de população”, não foi obtido para avaliar isso, representa apenas ocorrências gerais em uma grande região. É possível que se eu fosse visitar cada uma das células e tentar registrar indivíduos nas populações, eu nunca encontrasse a espécie “A” e espécie “B” no mesmo lugar (digamos, em um mesmo fragmento de vegetação ou um corpo d’água). Ainda mais interessante, elas até poderiam estar nos mesmos lugares mas talvez não ao mesmo tempo. A mensagem aqui é que certos processos, como as interações bióticas, ocorrem em escalas bem locais e é difícil (quase impossível, de fato...), responder a questões sobre interações sobre eles pensando no tipo de dado que mostrei acima.
Os macroecólogos, de fato, em geral evitam interpretar os padrões com base nesse tipo de processo e esse caso acima é bem conhecido (por ser muito extremo), mas às vezes as coisas vão ser bem mais sutis e não é possível saber objetivamente se os processos que queremos entender estão na mesma escala dos dados que estamos obtendo. E, claro, o tipo de dado que temos limita o tipo de questão que é possível responder, como vimos no exemplo acima. Se eu tenho uma teoria que me fale sobre competição, uma hipótese para testá-la nas espécies “A” e “B” tem que se basear em dados que foram obtidos especificamente para isso. E, finalmente, quando simplesmente sobrepomos as distribuições para chegar no mapa de riqueza estamos assumindo que as espécies são independentes entre si, pelo menos na escala (resolução) da malha que estamos usando.
Tentando agora generalizar um pouco, chegamos a uma visão interessante sobre como estamos fazendo ciência, que pode ser sintetizada na figura abaixo, extraída do livro de Ronald Giere, Scientific Perspectivism, de 2006. Essa figura representa o que de fato é uma teoria científica na visão de Giere, fortemente centrada em torno da construção de modelos. As teorias são de modo geral uma combinação entre questões teóricas de princípios, conceitos, generalizações e conhecimento “a priori”, que são utilizados para construir modelos de representação (o modelo de Allen e colaboradores, por exemplo). Por outro lado, dados são obtidos empiricamente no mundo real e generalizados, como discutimos acima (modelos de dados). A comparação dos dois modelos se dá por hipóteses específicas e que podem permitir fazer generalizações e novas predições. Tudo isso constitui uma teoria científica.
Em um extremo, essa visão das teorias pode levar inclusive à ideia de que as teorias são de fato “secundárias” sob um ponto de vista epistemológico, sendo vistas apenas como princípios gerais e conhecimento prévio que são utilizados para construir modelos teóricos. Estes, por sua vez, têm que ser testados de forma pragmática e utilizados não para verificar a validade da teoria, mas sim para aumentar o conhecimento sobre o mundo “real”. Na verdade, os modelos podem ser quase que “independentes” das teorias, ou melhor, eles podem ser construídos a partir de componentes ou princípios de várias teorias para resolver um problema complexo. Assim, pensando na figura acima que representa a concepção de Giere, não seria de fato necessário dizer que esses componentes são parte da teoria; na realidade não importa, o foco está em construir os modelos. Isso leva inclusive à uma concepção ampla de Ciência baseada em Modelos (Model-Based Science), diferente da visão mais ortodoxa na qual as teorias são estruturadas de forma axiomática (Theory-Based Science), e que tem sido popularizada principalmente a partir dos trabalhos da filósofa da ciência Nancy Cartwright a partir dos anos de 1980. Para os mais interessados nessas questões epistemológicas, vejam o excelente artigo de revisão de Bruno Travassos-Britto e colaboradores sobre concepções de teorias ecológicas publicado recentemente na importante revista científica Oikos (e uma discussão específica sobre a TME, nesse contexto, de Martinez Del Rio).
Diante disso, e pensando em uma visão mais tradicional de como fazemos ciência, muitos dirão que chegamos a um impasse sério. O que podemos dizer, por exemplo, da relação entre a TME e a riqueza de anfíbios a partir dos resultados que mostrei acima? Se, por um lado, tivéssemos encontrado algo mais próximo da linha esperada de 45 graus, será que isso indicaria que a TME está correta e que os gradientes de diversidade são “explicados” pelos mecanismos que ela contém? Provavelmente sim, ou pelo menos indicaria que a TME teria sido capaz de capturar pelo menos um componente, ou uma “perspectiva” da realidade, como sugere Ronald Giere (sendo, portanto, uma forma mais branda de realismo científico, que ele chama de “perspectival realism”). Mas, na maior parte das situações, há sempre margem para outras explicações e, no caso de sistemas complexos, é pouco provável que não existem outros fatores que estejam envolvidos na origem dos padrões de diversidade. Isso é particularmente importante em sistemas biológicos com forte componente histórico-evolutivo, que geram efeitos contingenciais e particulares em diferentes grupos de organismos...E vejam que não temos simplesmente pontos ao acaso em torno da linha de 45 graus, o que poderia sugerir apenas flutuações ao acaso (erros de amostragem ou de definição) em torno da expectativa correta da teoria. Há muito mais variação e desvios mais complexos e sistemáticos da expectativa da TME.
Por outro lado, do modo que observamos, a relação entre a riqueza calculada e a esperada pela TME não é muito promissora... Mas podemos efetivamente descartar a TME com base nisso? Podemos talvez descartar sua aplicação para entender a questão levantada há 200 anos por von Humboldt? De novo, não quero entrar nos detalhes específicos da TME, mas algumas análises que fizemos há muitos anos, lideradas por meu colega Brad Hawkins da Universidade da California, mostram que as predições do modelo de Allen e colaboradores não são válidas para a maior parte dos organismos. Mas será que o problema está na teoria (ou no modelo) ou nos dados? Será que os dados macroecológicos que usamos em geral estão adequados para avaliar o modelo? Será que a TME não é muito simples para explicar padrões tão complexos e que se originam em organismos diferentes ao longo de sua evolução? Refinando um pouco a análise dos dados de anfíbios, minha ex-aluna de Doutorado Fernanda Cassemiro mostrou que mais ou menos 60% da falha na TME está nos dados, em termos de violar pressupostos do modelo, o resto aparentemente em problemas na parte teórica (e esse número, claro, é em sim dado por um modelo...). Ok, ótimo, mas ainda assim o que fazemos com essa informação? Em muitos casos as predições podem ficar mais adequadas para alguns subgrupos de anfíbios ou em algumas regiões, quando não há violação nos pressupostos do modelo, mas isso indica que ela é válida em apenas situações específicas e não seria, portanto, essa teoria geral não se aplica bem à questão dos gradientes de riqueza de espécies (aliás, será que existem teorias gerais para a biodiversidade?).
Então, temos que continuar estudando e tentando entender, mas não é possível (ou mesmo necessário) dizer se a TME ou o modelo de Allen e colaboradores está “CERTO” ou “ERRADO”. Na verdade, uma vez que sabemos que estamos lidando com modelos (que são apenas representações de algo), por definição não faz sentido fazer julgamentos nesse sentido. O que podemos honestamente nos perguntar é se esse modelo é útil, ou interessante, no sentido de fazer novas predições gerais para outros grupos de organismos, por exemplo, ou outras situações. E vejam que mesmo que este não seja o caso (como mostrou o trabalho de Hawkins), ainda assim alguns argumentam que o próprio desenvolvimento do modelo e da teoria, ainda que sua aplicação seja falha e sua concepção simplista, pode ser um ponto de partida para levantar novas questões e novas ideias, permitindo identificar outros fatores que possam nos ajudar a entender a realidade (o componente de disponibilidade de água que mencionei rapidamente acima, por exemplo?). Esse é um aspecto importante da visão pragmática das teorias e da “ciência baseada em modelos”.
Outro aspecto interessante é que, na prática, em termos mais sociológicos, em geral se considera que é mais “interessante” confirmar uma teoria. Em geral é mais fácil conseguir publicar resultados “positivos” em uma revista de mais alto nível (e um efeito colateral importante disso é que se chama de confirmation bias). Em geral, boas publicações ajudam a conseguir um bom emprego com mais facilidade e assim continuar na atividade científica. Como discutimos acima, não podemos afirmar “objetivamente” se a teoria ou um modelo está certo ou errado, de modo que não é incomum que diferentes grupos de pesquisa tenham critérios ligeiramente distintos na tomada de decisão de aceitar ou rejeitar um modelo como válido, inclusive a partir de concepções diferentes sobre a própria importância da teoria ou do modelo. Nesse sentido, será que diferentes grupos de pesquisa não poderiam “construir” esses consensos em um sentido ou outro (de aceitar ou rejeitar teorias)? Em caso positivo, isso abre espaço para versões moderadas de construtivismo científico, que podem variar entre as áreas do conhecimento e em situações particulares (temos muitos casos de “copo meio cheio” ou “copo meio vazio” em ciência).
Voltamos à questão discutida na postagem anterior sobre a “objetividade” da ciência. Especialmente em situações complexas, é difícil fazer avaliações absolutamente claras e conclusivas, de modo que há sempre espaço para outras intepretações dos dados ou dos resultados. Desse modo, diferentes grupos podem chegar a consensos diferentes, sendo mais otimistas ou menos otimistas em relação a validade de uma teoria ou modelo (ou mesmo seu potencial). Só o tempo dirá qual intepretação vai prevalecer e isso vai ser mais ou menos rápido dependendo da aplicação e das implicações “concretas” da teoria o modelo. Mas o ponto relevante aqui é que a aceitação ou não da teoria não é algo tão “objetivo” quanto estamos acostumados a pensar e, portanto, estamos diante de uma visão de ciência bem diferente daquela que a sociedade em geral conhece (quando conhece alguma...).
Alguns de vocês podem estar pensando, à essa altura, que isso é algo peculiar e que se aplica somente a esse exemplo em macroecologia. De fato, é um caso bem extremo (e por isso acho que é ilustrativo da questão do “modelo de dados”), mas pensem se não é mesmo difícil, no geral, pensar em dados “puros”, “objetivos” ou “reais”. Toda vez que alguém obtém um dado, isso está de alguma forma, pelo menos em parte, associado à ideia ou concepção que se quer testar. No nosso exemplo, mesmo que estivéssemos analisando dados mais “primários” (no caso as próprias ocorrências e não as distribuições geográficas), existe um esquema de amostragem que pode ter vieses ou tendências, ou capturar mais um tipo de organismo do que outro. Poderíamos tentar escapar das outras ideias que discutimos, referentes à concepção teóricas da delimitação das “espécies” e da questão da escala (resolução) dos dados, mas as alternativas existentes têm lá os seus próprios “problemas” ou peculiaridades. Em outras áreas, por exemplo, o próprio equipamento de laboratório utilizado para obter o dado, em biologia molecular, em física ou em química por exemplo, foi construído a partir de uma teoria e em muitos casos são tomadas decisões em relação à precisão, calibração de equipamentos, ajustes etc. O dado reflete essas decisões e, portanto, é uma representação da realidade que queremos estudar, sendo definido por essas condições. Em ciências humanas e sociais as coisas são ainda mais complicadas, inclusive porque as percepções do próprio observador podem levar a resultados diferentes ao observar a “realidade”. No final, o que temos que fazer é manter em mente o que significam os dados que temos e entender bem como eles foram obtidos, avaliando da melhor forma possível se eles servem para resolver os problemas com os quais estamos lidando.
A mensagem final, mais uma vez, é que a ciência é bem mais complexa do que imaginamos e que não há necessariamente uma “realidade científica objetiva”. Sem cair em um relativismo extremo no qual a realidade seria inacessível e o conhecimento científico seria totalmente “construído” (vocês já sabem que não acredito nisso...), é importante de qualquer modo manter em mente as condições em que as teorias ou modelos foram desenvolvidos e como os dados foram obtidos. Temos sempre que lembrar que não existem dados “puros” na hora de entender o que estamos concluindo, não sendo assim ingênuos de achar que temos respostas “certas” ou “definitivas” para todos os problemas. Ao mesmo tempo, precisamos ter claro que isso não é um demérito para a prática científica, mas sim algo inerente a ela e ao ser humano! Temos que pensar que estamos fazendo o melhor que podemos para entender da forma mais honesta possível os fenômenos complexos ao nosso redor. É inegável que temos tido excelentes resultados na maior parte das situações e quero acreditar que falhamos em muitos casos porque as soluções para os problemas reais não dependem totalmente da melhor ciência que temos disponível em um dado momento. Mas, como tenho insistido, é preciso entender os limites do conhecimento científico, o que ele significa em um dado momento e como chegamos a ele. Só assim seremos capazes de efetivamente usar a ciência da melhor forma para tentar resolver os problemas que nos afligem como indivíduos e como sociedade.
Temos que agradecer pessoas como o Alexandre que dedicam o seu tempo para escrever um texto tão esclarecedor e imparcial.
Excelente reflexão!