No dia 12 de fevereiro comemora-se, em todo mundo, o “Dia de Darwin”, relembrando o aniversário de Charles Darwin, um dos gênios da Ciência e o grande pioneiro da Biologia Evolutiva. Como coloquei ainda em 2020, Darwin de fato fez uma grande revolução ao iniciar um programa de pesquisa em biologia (e se quisermos pensar em uma escala maior, talvez até mesmo reforçando o paradigma filosófico de assumir explicitamente explicações naturalísticas na Ciência).
Claro que a Biologia Evolutiva no início do século XXI é muito diferente da que Darwin e seus contemporâneos pensaram, mas não há de fato nenhuma discussão científica sobre a “existência” da evolução. Como é inerente à atividade científica, temos várias incertezas tanto sobre padrões evolutivos em diferentes escalas quanto sobre os processos envolvidos na origem desses padrões. As ideias mais simples sobre a origem da variação e os processos de seleção natural que se consolidaram a partir do desenvolvimento da chamada “Teoria Sintética”, ou “Nova Síntese”, nos anos de 1940, têm sido gradualmente substituídas por uma visão mais pluralista, com outros fatores evolutivos e efeitos que apenas agora começamos a entender, a partir de novas descobertas em biologia molecular e biologia do desenvolvimento, por exemplo.
Entretanto, como já discutimos muitas e muitas vezes aqui no “Ciência, Universidade e Outras Idéias”, é difícil para muitas pessoas lidarem com a incerteza e a inconstância do conhecimento científico e entender, de fato, como se dá o progresso na ciência. No caso da evolução, existe um problema sério ligado à questão do fundamentalismo religioso que insiste em uma visão mítica e sobrenatural da Natureza, na esteira de interpretações literais do Genesis bíblico. Essas ideias, que se propagaram rapidamente a partir dos movimentos neopentecostais nos EUA a partir dos anos de 1930 (ou mesmo antes), inicialmente de forma mais explicitamente religiosa. Gradualmente, essas ideias foram adotando uma roupagem “científica”, especialmente no contexto da chamada “teoria” do Desenho Inteligente (TDI), que é o centro do chamado "criacionismo científico" (na realidade uma reciclagem de ideias antigas, remontando a São Tomás de Aquino e Descartes...). Claro que é possível compatibilizar ciência e religião de forma madura e inteligente, e adotar concepções religiosas sobre a natureza sem que isso se torne algo anticientíficou ou pseudocientífico (vejam a figura abaixo com um esquema, que podemos chamar de Escala de Scott...). Mas, quando falamos em criacionismo, de modo geral estamos em visões extremas, com propagação de toda sorte de bobagens...E, como se a biologia evolutiva ainda estivesse no século XIX, essas pessoas, por razões que são realmente obscuras pra mim, terminam focando em Dawin...
Discutimos amplamente aqui no blog esse tema em diversas ocasiões e não é necessário (inclusive para preservar minha saúde mental...) repetir todos os argumentos. Essas discussões aconteceram principalmente porque, durante o (des)governo Bolsonaro, a pseudociência e o negacionismo científico foram fortemente estimulados, e isso incluiu adeptos da TDI, que começaram a ganhar voz e se manifestar de forma mais assumida, chegando ao extremo de termos um presidente da CAPES que se manifestou favorável a essas visões (e vejam aqui uma materia que minha colega Mercedes Bustamante e eu escrevemos sobre isso à epoca, dentro do movimento liderado por ela, a "Coalizão Ciência e Sociedade"...). Deprimente. Felizmente passou...Passou mesmo???
Em um primeiro momento, achei que teríamos muitos motivos para comemorar o “Dia de Darwin” (12 de fevereiro) em 2024. Como fiz algumas vezes aqui, comecei a pensar em algo que pudesse desenvolver como uma forma de prestigiar o movimento, e percebi que fazia tempo que não ouvia falar da TDI e de seus adeptos e defensores mais ardentes...Eventualmente algum colega me enviava um vídeo ou comentário sobre isso, mas algo bem raro. Para mim fazia todo o sentido, afinal passou...Passou? Ou eu é que desencanei de todas essas bobagens e assumi plenamente que “A Ciência Voltou” depois da derrota de Bolsonaro nas últimas eleições e do fracasso de suas sucessivas tentativas de dar um golpe de Estado (e estamos agora assistindo de camarote a descoberta de provas concretas daquilo que já sabíamos e eventualmente veremos condenações formais dessas ações...)? Vimos logo no início do Governo Lula uma grande mudança de percepção em relação às Universidades e um retorno do respeito à atividade em ciência e educação, e algum retorno em termos de financiamento e apoio (apesar de muitos problemas ainda persistirem, como seria mesmo esperado...). Pessoas em cargos-chave não estavam mais envolvidas nesses debates idiotas e não apoiam esses movimentos, então isso perdeu, na minha cabeça, a importância. Como disse anteriormente, depois do início do Governo Lula fiquei com um tipo de “ressaca” intelectual e política, estávamos todos cansados de tantos conflitos e confrontos sem sentido...
Mas, ao tentar encontrar um tema para a postagem comemorativa do Darwin Day 2024, percebi que eu estava sendo parcial e sou (ou fui) vítima dos tão falados algoritmos das redes sociais. Percebo que simplesmente fiquei apenas preso na minha “bolha”, simplesmente mudamos de assunto e não falamos mais dessas bobagens de TDI, já que isso não teria mais eco nas instâncias importantes da ciência e tecnologia no Brasil. De fato, já tinha prometido que seria a última vez, mas com tantas coisas sem sentido sendo ditas, era difícil encerrar o assunto. Esse “insight” (agora trivial, claro...) aconteceu quando ouvi diversos comentários recentes sobre a persistência do Bolsonarismo, mesmo com tudo que aconteceu e está acontecendo na política, ressaltando que a vitória de Lula foi por uma margem muito pequena e que precisamos estar atentos para que não tenhamos uma reviravolta em 2026. Temos um efeito do avanço da extrema direita em todo o mundo (incluindo a forte possibilidade de uma nova eleição de Donald Trump esse ano), e muitos dizem que o mundo e o Brasil estão se tornando sim mais conservadores. Temos muitas razões para isso, incluindo a expansão de movimentos fundamentalistas religiosos e de um discurso político baseado nos valores tradicionais da família e na pauta de costumes, que voltará à tona aqui nas eleições municipais de 2024...Diante de tudo isso, por que eu achei que a sociedade mudaria tão rapidamente, só porque elegemos o Lula e achamos que adotamos uma posição mais plural e progressista na ciência e na educação? Obviamente a sociedade não mudou...Como dizia meu velho amigo, “Santa Ingenuidade, Zé”!
Então, onde estão então os criacionistas e os adeptos da TDI? A resposta é simples, eles estão a todo vapor!!!!! Resolvi fazer uma busca rápida no Google e constatei, infelizmente, o efeito da minha “bolha”. Super interessante, e sempre falamos isso em ciência (embora boa parte dos cientistas não perceba mesmo isso): na realidade não foi o mundo que mudou, fui eu quem mudou, e simplesmente esqueci desse assunto! Autoproteção, talvez, mas enfim...Isso não está chegando em mim provavelmente porque não só eu, mas todas as pessoas da minha “bolha”, acharam que isso tinha perdido importância e que não precisamos mais combater esses movimentos anticientíficos e negacionistas. O fato é que houve inclusive, em 2023, um forte AUMENTO das inserções dos criacionistas. Nos últimos 20 anos, uma busca pelos termos “criacionismo e desenho inteligente” mostra um aumento gradual (em parte efeito do crescimento geral da própria internet, acredito), com uma oscilação entre os anos. A partir de 2014 parece haver uma certa estabilização, formando uma logística, com um valor mais elevado em 2020 (veja que neste ano assumiu a presidência da CAPES o Prof. Benedito Aguiar, ex-reitor da Universidade Mackenzie, um dos defensores da TDI...). Difícil dizer com certeza, mas tivemos nesse ano o início da pandemia e o forte negacionismo associado a ela, esse pico não deve ser coincidência! Em 2021 e 2022 o número de “hits” diminuiu, e eu esperava que continuasse a cair, mas não...Em 2023 tivemos, de fato, um salto e o maior número de registros até hoje.
Como sempre, o movimento está muito "localizado" (não preciso nem citar nomes, vocês já conhecem as figurinhas repetidas...), mas ainda acho que é preocupante! Seria preciso fazer análises mais detalhadas, inclusive nas várias redes sociais, mas o interessante é que grande parte do aumento nas inserções no google aparece em função de um crescimento de vídeos e canais no YouTube, e isso é muito forte mesmo a partir de 2020 (provavelmente um efeito colateral da pandemia, pois aprendemos e nos familiarizamos com as várias ferramentas para fazer vídeos, em reuniões, palestras e aulas remotas).
Minha hipótese inicial, agora refutada, seria que, após o crescimento no período bolsonarista, o movimento iria gradualmente perder força, mas não é isso que estamos vendo (apesar da redução em 2021 e 2022, pela busca no google). Esse enorme crescimento agora em 2023 é apenas “inercial”, e vai diminuir e perder força a partir dos próximos anos? É uma reação à vitória da esquerda e um movimento consciente de "resistência da ignorância"? Ou faz parte da tendência geral de crescimento e vai assumir um novo patamar mais alto? Não sei, vamos ter que esperar um pouco mais para ver...
Pragmaticamente, entendo que temos duas mensagens principais a partir dessa exploração simples e da constatação inicial que o movimento criacionista e a TDI continuam em ação. Primeiro, jamais devemos esquecer que estamos sempre imersos em nossas “bolhas” e que, em muitas ocasiões, vemos do mundo apenas aquilo que queremos ver (ou vemos o que o nosso cansaço nos permite ver, quero crer que isso é o que aconteceu comigo...). Segundo, de fato a sociedade brasileira não mudou em 2023 (claro...), e precisamos continuar investindo em manter nossos programas de valorização da ciência e da educação, precisamos continuar tentando mostrar às pessoas o perigo dessas visões conservadoras e fundamentalistas. Apesar da inelegibilidade de Bolsonaro e dos escândalos envolvendo a constatação das intenções golpistas dos seus seguidores, não podemos nos iludir que as pessoas, de fato, se preocupam e entendem isso, como já falamos várias vezes. Utopicamente, continuamos pensando que conseguiremos que as pessoas, por meio de um sistema educacional forte, conseguirão entender melhor o mundo que as cerca e perceberão que são enganadas por pessoas inescrupolosas e que querem apenas dinheiro e poder. Mas cada vez mais temos consciência de que a realidade é outra...A ignorância pode ser uma benção e muitos se aproveitam disso, de modo que talvez, de fato "...o preço da liberdade seja a eterna vigilância" , simples assim!
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