But if this ever changin' world
In which we're livin'
Makes you give in and cry
Say live and let die...
Temos discutido muito aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” a questão da pseudociência e do negacionismo, em diferentes contextos, bem como as origens e mecanismos educacionais, políticos e sócio-econômicos subjacentes ao avanço recente desses problemas em nossa sociedade. Na minha concepção entender esses aspectos envolve a compreensão e resolução de pelo menos dois aspectos principais.
O primeiro deles é referente à própria natureza da ciência e como ela funciona, com especial atenção para como definir conceitualmente/epistemologicamente a diferença entre a ciência e a pseudociência e estabelecer critérios operacionais para distinguir uma da outra. Pela minha percepção esse tem sido o principal foco da discussão, que exploramos na verdade em algumas postagens anteriores (ver “O que é Ciência”, ainda em 2019), com foco no chamado “Problema da Demarcação”. Precisamos explorar ainda algumas concepções sobre esse assunto em uma próxima postagem, mas esse aspecto do combate ao negacionismo é bastante discutido e relativamente claro. Na verdade podemos dizer que, em função desse avanço do negacionismo e da pseudociência recentemente, houve um certo ressurgimento do interesse pelos critérios de demarcação nos últimos anos, depois de um “epitáfio” nessa discussão proposto nos anos 80 por Larry Laudan (mas vamos discutir esses altos e baixos do critério de demarcação com mais calma em outra postagem...).
Entretanto, há um outro aspecto que parece ser menos discutido e que se refere à compreensão do próprio “debate científico”. Isso é importante inclusive porque muito defensores de pseudociência e negacionismo usam argumentos do tipo “a ciência é fechada”, ou “precisamos ter uma atitude plural”, “precisamos respeitar as diferenças”, ou “...estar abertos a novas ideias”. A partir de argumentos desse tipo, abre-se espaço para a criação de falsos debates com cientistas, chamando a atenção do público e mantendo assim sua credibilidade com uma falsa concepção de abertura de pensamento. Ao mesmo tempo, muitos dizem que “não há consenso” sobre o tema, de modo que a explicação “pode ser outra” (abrindo espaço para a pseudociência e para o negacionismo). Essas estratégias podem ser entendidas em um contexto mais amplo de “pós-verdade”, com claros interesses políticos e econômicos, e veio das ideias relativistas e pós-modernistas, como meu amigo Luis Mauricio discutiu aqui no blog recentemente.
Vamos explorar um pouco então essa questão do “debate científico”, quais são as suas “regras” e como esse debate se resolve com o tempo. Precisamos inicialmente chamar atenção que uma boa parte da percepção popular sobre ciência não prevê a existência desse debate, pois muitas pessoas acham que a ciência é “objetiva”, “certa” e que encontra “a verdade”. Sendo assim, de que debate estamos falando? Nesse contexto de certeza e objetividade, a ideia de debate não faria muito sentido, certo? Na verdade, isso é, em geral, o oposto do que acontece na prática científica...
Então, precisamos começar estabelecendo que a ciência pode até procurar a objetividade e a “verdade” (apesar da definição de verdade ser difícil na prática, mas esse é outro tema...), mas isso é de fato uma construção coletiva ao longo do tempo. Nesse caminho, há muita discussão e muito debate até que se chegue a certos consensos momentâneos e que, além disso, não precisam ser estritos (ou seja, não precisamos que 100% dos cientistas concordem com algo ou apoiem uma dada teoria). Não há dúvida que vivemos em uma civilização que é regida pela ciência e pela tecnologia, o que cria inclusive um certo paradoxo em relação à pseudociência e o negacionismo. Mas é preciso que as pessoas entendam que essa nossa realidade atual resulta de um longo processo histórico.
Como já discutimos anteriormente, formas de conhecimento estruturadas na resolução de problemas e atitudes científicas individuais existem há muitos e há muitos anos e sem dúvida moldaram nosso pensamento desde a antiguidade, abrindo caminho para a ciência moderna (e nesse sentido é sempre bom e oportuno lembrarmos que Eratóstenes estimou a circunferência da Terra mais ou menos 250 anos antes de Cristo!). Mas podemos assumir que a ciência moderna é uma tradição intelectual cuja visão de mundo e estrutura social se estabelece, digamos, nos séculos XVI e XVII na Europa com a chamada “revolução científica”. Sabemos que, nesse processo histórico, a ciência avançou por desenvolver teorias sucessivamente, que foram sendo confirmadas/corroboradas ou rejeitadas e substituídas por outras, à medida que as hipóteses levantadas a partir delas iam sendo gradualmente contrastadas com a evidência empírica. Isso significa que, em um dado momento, os cientistas podem divergir em relação a quais teorias são válidas para explicar ou para nos ajudar a entender um determinado fenômeno. Esse é o debate científico que temos que discutir e vamos usar, como guia, as concepções gerais explicitadas neste parágrafo. Muita do que se segue vem do excelente artigo da filósofa Helen de Cruz, que avaliou mais especificamente o debate em torno do Homo floresiensis, que inclusive já discutimos aqui no blog (vejam também vários outros artigos dela no contexto sobre percepção e vieses cognitivos em relação à pseudociência e negacionismo, alguns inclusive no contexto do debate do Criacionismo e da “teoria” do Design Inteligente, incluindo artigos sobre filosofia da religião).
Vamos começar com a frase acima “...os cientistas podem divergir”. Então, isso significa que estamos falando de um debate entre cientistas ou “pares acadêmicos” (ou “pares epistêmicos”, em um contexto mais amplo, como coloca Helen de Cruz). Esses pares acadêmicos, para serem considerados como tal, devem ser equivalentes em dois sentidos: devem possuir expertises semelhantes em relação ao tema debatido e devem ter tido acesso às mesmas evidências. Em princípio podemos pensar que essas duas condições são facilmente identificáveis, mas na prática as coisas nunca são tão simples assim... Pior, essas duas condições também não são independentes entre si.
Em relação à expertise, podemos distinguir inicialmente como algo em um sentido “estrito” e em um sentido “amplo”. Em um sentido estrito, por exemplo, podemos pensar em duas climatólogas que são pesquisadoras sênior em instituições de pesquisa ou universidades, que possuem mais ou menos o mesmo tempo de formação, com produções científicas equivalentes, mas que não concordam sobre o modo como as atividades humanas afetam o funcionamento da atmosfera e como essas atividades poderiam desencadear uma mudança climática em escala global. Essas duas pesquisadoras poderiam ser consideradas como um “par acadêmico” ideal sob o ponto de vista epistemológico. Seria menos adequado considerar, por exemplo, uma comparação entre uma delas e um jovem pesquisador que acabou de concluir seu doutorado. Essa definição de “pares acadêmicos”, embora idealizada e difícil de se encontrar na prática, pode ser útil para equilibrar os lados do debate, embora na prática seja preciso ser cauteloso para impedir outros efeitos, como por exemplo “argumentos de autoridade” (ou seja, às vezes um jovem doutor brilhante pode enxergar algo que alguém com doutorado há 30 anos não vê simplesmente porque não tem suas concepções “cristalizadas”; isso não é incomum e temos que estar atentos, mas essa é uma discussão mais refinada). Em um sentido mais amplo, que é ainda mais difícil de avaliar, os pares acadêmicos no debate teriam que possuir um mesmo “background” em termos intelectuais e culturais e uma visão similar de mundo. Mas notem que pensar em equivalência de expertise nesse sentido mais amplo significa que estamos, pelo menos em parte, aceitando um certo relativismo científico, que pode ser mais ou menos importante em diferentes áreas do conhecimento (e esse é outro tema super interessante...como equacionar relativismo em diferentes áreas do conhecimento com o crescimento da pseudociência?).
Assim, a maior parte das discussões filosóficas/epistemológicas sobre o debate científico se concentram em definir pares do debate em um sentido mais estrito e, inclusive, em termos estabelecer até critérios acadêmicos e bibliométicos e quantitativos para avaliar sua equivalência. Então, trazendo para um contexto mais real, se você estiver assistindo na TV um debate entre Alice Roberts (ou outro biólogo evolucionista renomado) e um religioso defensor do criacionismo, por mais interessante – ou deprimente - que possa ser, esse não é um debate científico. Os dois não possuem a mesma expertise e, com certeza, não possuem a mesma visão de mundo (embora claro que nada impeça que o defensor do criacionismo em questão tenha um Doutorado ou PhD em Biologia, como o bioquímico Michael Behe – ou em outras áreas do conhecimento, como filosofia – veja o vídeo - e com certeza há mais questões a explorar aqui em termos de definição de área de expertise...).
Mesmo pensando em um sentido mais restrito e tentando equalizar a expertise nos dois lados do debate, na prática pessoas de diferentes áreas do conhecimento podem se debruçar sobre um mesmo problema e, em função disso, podem ter percepções diferentes sobre ele. Mais interessante, elas podem avaliar a evidência empírica e sua relevância relativa para apoiar uma ou outra hipótese de forma diferente. Por exemplo, pesquisadores às vezes em uma mesma área podem ter uma bagagem mais “experimental” ou mais “observacional”, e isso acontece bastante na Ecologia e na Biologia Evolutiva. Não é infundado pensar que, nesses casos, um ecólogo experimental não dê muita importância a correlações em grandes escalas, enquanto um ecólogo observacional pode achar que os experimentos são irrealistas ou simplistas, não fornecendo informações tão relevantes quanto o ecólogo experimental acha que são para o problema. Ou, em alguns contextos, um mesmo problema pode ser discutido por pesquisadores de áreas próximas, como por exemplo antropólogos físicos e anatomistas discutindo com arqueólogos e paleontólogos sobre o significado de um novo fóssil humano. Nesses casos, portanto, uma mesma evidência (empírica) pode ser vista de forma diferente, ou ter “peso” diferente em relação à tomada de decisão, pois de fato a observação empírica e sua relevância dependem do contexto teórico e do background que o pesquisador tem (o que é uma das questões que levam, em maior ou menor grau, à ideia de relativismo científico). Na verdade, isso leva a um desacordo profundo (deep disagreement), porque não estamos falando da evidência em si, mas até mesmo das circunstâncias nas quais a própria evidência é obtida e avaliada. Em um certo sentido voltamos ao problema maior do princípio de Duhem-Quine da indeterminação da teoria pela evidência...
Então, entendemos até aqui que mesmo pesquisadores com uma mesma expertise e de áreas correlatas de conhecimento podem divergir em relação à explicação para um dado fenômeno porque não avaliam uma mesma evidência da mesma forma. O que fazer, nesses casos? Na realidade, melhor, o que tem acontecido de fato quando avaliamos a história da ciência? Há diversas possibilidades para lidar com teorias ou hipóteses que estão sendo debatidas, com diferentes consequências, e vamos pensar hierarquicamente em algumas situações, conforme colocado no diagrama abaixo em relação a duas teorias, digamos T1 e T2.
Em primeiro lugar, poderíamos dizer que, em algumas situações, os cientistas envolvidos decidem que “não querem” debater a adequação ou validade de T1 e T2. Podemos pensar nessa possibilidade inicialmente porque já que os “pares acadêmicos” são válidos e se reconhecem mutuamente, é melhor assumir que “não sabemos” e que não conseguimos explicar o fenômeno, sendo as duas teorias T1 e T2 antagônicas em relação à explicação da evidência (opção “a” no esquema acima). Por que não abandonar o assunto por um tempo e passar a trabalhar em outras linhas de investigação menos conflituosas, até que haja mais evidência? A outra possibilidade é não debater por assumir que não será possível chegar a um consenso e que não queremos nenhum desgaste em relação a isso. Essa última atitude é o que David Christensen chama de “live and let live” (viva e deixe viver...a opção “b” no esquema). Ou seja, assumimos que cada um tem sua posição e tudo certo...É muito interessante chamar atenção que esse tipo de postura, embora seja aparentemente “pacifista” e “democrática” e dê a impressão de respeito pelas ideias do outros, pode levar a uma visão relativista que pode favorecer atitudes negacionistas e à “pós-verdade”. Se pensarmos bem, abandonar o debate científico nesse contexto não parece ser uma boa prática justamente porque dificulta acharmos a solução para o problema (a não ser que já se assume, a priori, que não há solução ou que é tudo relativo ao observador... é isso que preocupa no sentido de reforçar o negacionismo e a pseudociência; mas vejam abaixo a discussão sobre realismo e instrumentalismo).
Por outro lado, vamos então insistir na ideia de que o debate vai acontecer. O que acontece nesse caso, quando o debate se instala? Em princípio, alguns sugerem que, uma vez que os “pares acadêmicos” se reconhecem, a própria existência de discordância em relação à T1 e T2 faz com que os cientistas envolvidos tendam a rever os seus próprios pontos de vista, em uma atitude de certo modo “conciliatória” (opção “c”). Essa atitude pode, em médio-longo prazo, fazer com que a maior parte dos cientistas envolvidos se aproximem de um lado ou de outro (dependendo de qual das teorias T1 e T2 é menos resiliente à uma reavaliação da evidência pelos cientistas). Alternativamente, isso pode fazer com que apareça uma nova teoria T3 que, de fato, seja algo intermediário ou que tenha elementos originalmente reconhecidos de T1 e T2 e que são considerados aceitáveis por ambas as partes.
Entretanto, aparentemente o que acontece com mais frequência na ciência é que a comunidade científica se divide em termos de apoio a T1 e T2, cada qual mantendo sua posição, e de fato esse é o caso mais interessante em vários sentidos (e, pensando em Paul McCartney e seu espetacular tema de 007, poderíamos chamá-la, exagerando um pouquinho, de estratégia “live and let die”) (opção “d” no esquema acima). Vamos prosseguir pensando, então, que os cientistas vão manter o debate científico defendendo T1 ou T2 e “tomando partido”, algo como “...eu defendo T1 e vou mostrar que T2 está equivocada” (ou vice versa). Na prática, isso aparece inclusive explicitamente em termos de publicações científicas, com artigos publicados por um grupo de pesquisadores sendo criticados por outros grupos, em uma “réplica”, e havendo eventualmente direito a uma “tréplica”, sendo que o editor da revista científica em questão serve como um árbitro desse debate (tenho vários casos e exemplos interessantes, mas vamos discutir essa questão operacional oportunamente). Claro, em última instância espera-se que o próprio debate faça com que os pesquisadores vão convergir gradualmente para T1 ou T2, ou mesmo criar T3 a partir delas, mas isso em um segundo momento (e isso tem implicações interessantes que vamos discutir abaixo). O ponto relevante é a manutenção do debate científico e não simplesmente um “acordo” ou “convergência” inicial para T1 ou para T2.
Vejam que estamos assumindo que o debate vem do fato da evidência empírica não permitir que haja realmente uma escolha logica e puramente racional entre as teorias alternativas, seja porque ela é ambígua ou porque diferentes pares acadêmicos não concordam sobre a importância dela para apoiar ou não essas visões alternativas. Na prática, essa escolha entre T1 e T2 depende então de diversos fatores, alguns extrínsecos à própria ciência, mas que podem ser compreendidos em um contexto mais amplo de filosofia ou sociologia da ciência. Na verdade, como coloquei inicialmente, a própria existência do debate científico implica em uma visão não-monolítica, não fechada, da ciência (de modo que já eliminamos uma ideia de ciência normal, paradigmática, no sentido de Kuhn; mas vamos voltar a esse ponto a seguir).
A atitude de pesquisadores tomarem partido e defenderem T1 ou T2 tem uma série de implicações importantes, inclusive em um contexto sociológico e de desenvolvimento tecnológico. Em primeiro lugar, isso reforça uma visão hoje relativamente bem aceita (pelo menos eu acho que sim...) que a escolha de uma teoria não é baseada “apenas” na evidência, mas possui outros componentes, como reforçam alguns filósofos da ciência como Larry Laudan e Bas van Fraassen (e isso ocorreria mesmo quando a evidência parece apoiar mais uma das teorias, T1 digamos, mas alguns cientistas mesmo assim continuariam defendendo T2). No contexto das tradições de pesquisa de Laudan, por exemplo, é mais provável que os orientados de um pesquisador sênior tendam a propagar as suas teorias ou métodos e não de outros pesquisadores (já vimos que na Alemanha nazistas, por exemplo, foram necessárias 2 ou 3 “gerações” acadêmicas de pesquisadores antes que se assumisse que a conduta e as práticas de alguns cientistas foram, de fato, bastante questionáveis...). Ainda, teorias que sejam mais parcimoniosas, em diversos sentidos, também podem ser mais interessantes para fins práticos, embora haja uma série de implicações para as quais os pesquisadores nem sempre estão cientes. Essa parcimônia pode ser pensada em termos de número de parâmetros em um modelo, como no sentido clássico, mas também em termos de aplicações práticas ou facilidade de uma maior conversão em tecnologias (e nesse caso as questões políticas e econômicas passam a ser importantes também...).
Outro ponto bastante relevante em um contexto sociológico é o seguinte: se temos duas ou mais alternativas T1 e T2 para entender ou explicar um fenômeno, talvez seja vantajoso, sob um ponto de vista “estratégico” na geração de conhecimento, deixar que diferentes grupos de cientistas invistam seu tempo e inteligência em diferentes alternativas...Se não sabemos, como comunidade cientifica, qual alternativa é mais viável ou frutífera, e se os recursos (humanos) são finitos, talvez seja mais eficiente explorar todas elas e dividir os esforços do que se concentrar em apenas uma delas. Notem que essa estratégia pode ser válida mesmo que uma das teorias possa ser, em princípio ou aparentemente, um pouco mais apoiada pela evidência empírica do que as outras. Popularmente falando, melhor não colocar todos os ovos na mesma cesta? Isso abre uma discussão interessante, claro, sobre as relações custo-benefício de investir em programas ou tradições de pesquisa com diferentes possibilidades de sucesso e, mais interessante ainda, sobre qual o momento “correto” para um cientista em particular mudar de ideia (e de grupo) e passar a trabalhar com uma teoria “concorrente”. Ou seja, como equilibrar as vantagens individuais dos pesquisadores com as vantagens coletivas? Há muitas dificuldades para entendermos aí...
Nesse sentido filosófico/epistemológico mais amplo e explorando algumas visões mais conhecidas, podemos pensar que, para Karl Popper, por exemplo, não existe a ideia de escolha entre teorias “igualmente explicativas”, ou seja, não teríamos T1, T2, T3 .., Tn. para “escolher”. Segundo sua visão, o que ocorreria de fato seria a substituição de teorias por um processo contínuo de conjecturas e refutações, de modo que o debate científico estaria centrado na refutação das teorias a partir da evidência. Isso levou, de fato, a muitos questionamentos e, realmente, Irme Lakatos, um dos colaboradores do Popper, começou a desenvolver a ideia de programas de pesquisa a partir desses questionamentos, no sentido de que existiriam realmente grupos de cientistas defendendo posições antagônicas na forma de “programas” de pesquisa que poderiam coexistir, mas que teriam, ao longo do tempo, trajetórias diferentes (veja uma postagem anterior sobre o Darwinismo como um programa de pesquisa).
Por outro lado, a visão de Thomas Kuhn de paradigma também não permite pensar realmente em grandes debates, exceto nos momentos de crise e substituição de paradigmas. A concepção de um paradigma no sentido de Kuhn é justamente que não há grandes debates durante a fase de “ciência normal”, pelo menos em relação às concepções maiores e teóricas, como colocamos antes. O debate estaria reduzido à questões menores e detalhes da solução prática de problemas...Outros autores com visões menos radicais da visão estrutural da ciência (em dois níveis, análogos às fases paradigmática e de revoluções, de Kuhn, mas em “escalas” menores), como Irme Lakatos e Larry Laudan, por outro lado, assumem explicitamente que o debate vai acontecer entre programas ou tradições de pesquisa que estariam centradas em T1 e T2, respectivamente, e é isso que vai consolidar essas estruturas e, em última instância, gerar o progresso científico.
Outro ponto que me parece importante ressaltar é que a escolha entre as alternativas de debate (ou “não debate”) pode também revelar posições metafísicas em filosofia da ciência, ligadas, por exemplo, à concepção de realismo científico (veja uma excelente introdução ao tema em Samir Okasha). Se, em um dado campo, as teorias são encaradas como aproximações da “verdade”, como aceitar que há explicações alternativas no momento, igualmente válidas ou prováveis para a realidade? Por outro lado, se um dado campo de pesquisa tem uma concepção mais “instrumental” e pragmática das teorias, entendendo que o melhor que podemos fazer é predizer o comportamento de um sistema e utilizá-lo (se for o caso) em aplicações práticas, na realidade a escolha das teorias é bem mais simples no sentido de estar ligada, localmente, à capacidade preditiva. Se as duas teorias têm a mesma capacidade preditiva (e essa seria, no caso, a evidência importante à luz da concepção epistemológica mais profunda), então não importa, é possível viver com duas ou mais teorias ao mesmo tempo e escolher qualquer uma delas (ou até mesmo validar dados empíricos com as duas aproximações?). Ao mesmo tempo, não é preciso esperar novas evidências, pois isso simplesmente não é necessário, pois o objetivo é continuar trabalhando e fazendo previsões ou projeções. Na verdade, talvez nesse contexto toda a ideia de debate científico, como estamos colocando aqui, nem faça sentido.
Finalmente, é interessante notar que a maneira com que as pessoas lidam com conflitos, de modo mais amplo, é muito diferente. Mas quero crer que, de um modo geral, as pessoas não gostam de conflitos (mas, em tempos de Bolsonaro, certamente devo estar errado...) e o debate científico não seria exceção...Talvez por isso tenhamos um avanço da pós-verdade e do relativismo? Mas pensando de forma idealizada, o debate científico seria sempre “saudável”, e não haveria uma mistura de questões pessoais e profissionais. Mas, pela minha experiência, a natureza humana parece ser inescapável...Já estive envolvido em alguns debates ao longo da minha carreira e, confesso, sempre foi “divertido” e estimulante e, de modo geral, entendo que houve progresso na nossa compreensão dos problemas científicos a partir daí. Mas, ao mesmo tempo, já presenciei várias questões e é inevitável que apareçam ofensas pessoais, bulling, grupos de alunos e colegas se formando e debochando do outro grupo, uma forte competição por prestígio e por publicações em revistas de maior impacto. O “live and let die” fica quase literal (e, para Kuhn, realmente às vezes o debate só se encerra quando o pesquisador sênior se aposenta ou morre mesmo...). Gosto de pensar que raramente o debate pode descambar para fraudes e má conduta acadêmica, infelizmente (e talvez eu até tenha presenciado um ou outro caso, mas não tenho certeza...). É a natureza humana, surpreendente que mesmo entre pessoas que deveriam intelectualmente “diferenciadas” e esclarecidas as coisas às vezes parecem fugir do controle...
Em conclusão, vemos que o debate científico pode ser bem mais complexo do que imaginamos em um primeiro momento. Há muitos nuances tanto conceituais (no sentido filosófico) quanto práticos e operacionais e, de fato, podemos concluir que não é tão simples assim tomar decisões em relação a teorias alternativas. Mais importante, temos que estar conscientes de que muitas dessas escolhas não são sempre objetivas, nem mesmo racionais em alguns casos. Sendo assim, voltamos à questão inicial, como distinguir um debate científico genuíno de um debate entre ciência e pseudociência? De fato, dada a complexidade e a “subjetividade” envolvida, talvez não seja tão simples. Mas temos alguns elementos importantes, ligados à ideia de pares acadêmicos e à maneira como o debate é conduzido...
O mais importante de tudo é que não há dúvida de que toda vez que há um debate científico existe um movimento das várias partes e não posições dogmáticas e cristalizadas (indivíduos podem até assumir essa posição, mas ela não se sustenta por muito tempo e a área do conhecimento ou o grupo de pesquisa termina por repensar posições dogmáticas). Até pelas questões pessoais misturadas com profissionais que discuti acima, as partes vão tentar “provar” o seu ponto de vista, e para isso vão tentar conseguir mais evidência, seja coletando mais dados em novas situações ou desenvolver novos métodos para avaliá-los...Esses pesquisadores vão explorar novas ideias, aumentar os horizontes e tentar fazer previsões mais “ousadas”, como diria Popper. Nesse sentido, uma visão mais criativa da ciência pode ser vantajosa, com certeza, seguindo um pouco a posição de Paul Feyerabend...Cabe aos “perdedores” em relação a T1 ou T2 aceitar a análise da evidência final e passar a explorar outras ideias e, em última instância, é isso que acontece, seja no nível individual ou no nível da comunidade científica! Perde-se umas e ganha-se outras, eventualmente...Com isso avançamos cientificamente, essa é a atitude correta do cientista.
Então, esse pode ser realmente o ponto-chave final na nossa discussão. A ciência avança, mesmo que aos trancos e barrancos, enquanto a pseudociência não...É isso, mantenha viva a teoria vigente e deixe morrer uma teoria ultrapassada!
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