À medida que o número de programas de pós-graduação no Brasil cresceu nos últimos 20-30 anos, se tornou cada vez mais difícil para a CAPES realizar avaliações detalhadas da qualidade das dissertações e teses e o perfil dos egressos. Começamos a ouvir críticas de que a avaliação tinha se tornado muito “automatizada” e baseada em métricas quantitativas que nem sempre capturam componentes de formação importantes nos programas de pós-graduação. Talvez parcialmente em resposta a esses comentários e críticas, em 2006 a CAPES instituiu o “Prêmio CAPES” de tese. Todos os anos, cada uma das 49 áreas de CAPES indica um conjunto de pesquisadores e docentes que vão compor um comitê para escolher a melhor tese de Doutorado defendida no ano anterior (e duas outras teses recebem uma “menção honrosa”).
Na prática, seria obviamente impossível que esses comitês de pesquisadores e docentes se debruçassem sobre cada uma das centenas de teses de Doutorado defendidas no Brasil a cada ano, em cada área (e portanto milhares de teses em todas as áreas). O que acontece é que anualmente a CAPES lança um "edital" que estabelece as regras para a premiação e recebe a inscrição de apenas uma tese de Doutorado indicada por cada curso de Doutorado no Brasil, em cada área. Os programas devem assim instituir uma comissão que vai escolher a sua melhor tese de Doutorado defendida no ano anterior, com base em critérios internos de seleção. Em seguida a coordenação do programa envia, no início do ano, uma série de documentos à CAPES referente ao processo seletivo interno e sobre a tese e sobre o(a) estudante selecionado(a)s. A comissão discute os critérios, recebe e avalia todo esse material e finalmente seleciona a melhor tese em sua área, dentre as melhores teses que foram enviadas por cada programa. É, portanto, um sistema hierárquico de seleção Há então uma cerimônia na CAPES para a entrega dos prêmios aos estudantes e seus orientadores (o prêmio atualmente consiste em um valor de R$ 3000,00 como auxílio para o orientador participar de um congresso científico no país e uma bolsa de Pós-Doutorado nacional por 12 meses para o estudante).
Na cerimônia também são divulgados e entregues os “Grandes Prêmios” adicionais, destinados às melhores teses, dentre as selecionadas anteriormente, em 3 grandes áreas: 1. Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, chamado “Grande Prêmio CAPES de Tese Graziela Maciel Barroso”; 2. Engenharias, Ciências Exatas e da Terra e Multidisciplinar (Materiais e Biotecnologia), o “Grande Prêmio CAPES de Tese Oscar Sala”, e 3. Ciências Humanas, Linguística, Letras e Artes, Ciências Sociais Aplicadas e Multidisciplinar (Ensino), e finalmente o "Grande Prêmio CAPES de Tese Josué de Castro”. Assim, uma tese pode ser agraciada com o prêmio tese em sua área mas, durante a cerimônia, o estudante e o orientador podem ser (positivamente) surpreendidos com mais um prêmio em sua grande área! Esses prêmios maiores consistem em uma bolsa de pós-doutorado internacional para o estudante e apoio de R$ 9000,00 para o orientador participar em um congresso internacional, e valores mais elevados de premiação para o estudante que são concedidos por instituições parceiras da CAPES nesse processo, como o Instituto Serrapilheira, Instituto Ayrton Senna, Comissão Fullbright dos EUA, Fundação Carlos Chagas.
Os prêmios CAPES de tese 2019 foram divulgados na última 6ª. feira, dia 6 de setembro. Seria um evento normal e aguardado ansiosamente pelos indicados de cada programa de pós-graduação em todo o Brasil, com ampla divulgação dos temas dos trabalhos das melhores teses e todos os eventos sociais e de mídia associados a esse tipo de reconhecimento público de mérito acadêmico. Os estudantes ainda cursando o doutorado começam a pensar na possibilidade de serem agraciados nos anos seguintes, e acho que isso deve estimulá-los no sentido de tentar desenvolver trabalhos mais inovadores e publicá-los nas melhores revistas internacionais (pelo menos no caso das ciências “naturais”, onde isso tem sempre um grande peso nos critérios de seleção para o prêmio).
Assim, o prêmio CAPES de tese tem tido um papel importante não só no reconhecimento das atividades acadêmicas realizadas quanto no estímulo para que os jovens cientistas ingressando no Doutorado desenvolvam cada vez melhor seus trabalhos de pesquisa. Entretanto, algumas "idiossincrasias" me chamaram a atenção no momento da divulgação do prêmio CAPES 2019 e de fato me motivaram a fazer essa postagem (e inclusive colocá-la na categoria de “atualidades” e não dentro da sequência “normal” que tenho desenvolvido explicando e discutindo o funcionamento das "Universidades").
Em primeiro lugar, o prêmio CAPES de tese 2019 foi divulgado justamente no final de uma semana na qual foram anunciadas medidas econômicas que causam seríssimos problemas ao sistema nacional de pós-graduação e à atividade de pesquisa no Brasil, com impactos incomensuráveis em curto, médio e longo prazo. No início da semana, no dia 2/9, a CAPES anunciou o bloqueio do sistema de concessão de bolsas e o cancelamento de pouco mais de 5600 bolsas de mestrado e doutorado no País (um cancelamento semelhante já havia sido feito em março/abril de 2019, totalizando assim uma redução de algo em torno de 12000 bolsas neste ano). As notícias eventualmente falam em “bolsas ociosas”, ou não-utilizadas, o que não é verdade na grande maioria dos casos. Essa “ociosidade” ocorre em geral por pouco tempo e em pequenas proporções (justamente na ordem de 5% do tamanho do sistema, considerando as ~90000 bolsas concedidas pela CAPES) pode ser considerada "natural", dada a dinâmica do sistema. Há diversas situações possíveis, mas o que acontece é que, em muitos casos, os alunos defendem suas teses e finalizam suas bolsas e os programas eventualmente podem ainda estar realizando processos seletivos para um nova turma (ou complementando um processo seletivo anterior), ou um novo estudante pode ainda não ter entregue a tempo documentação necessária para a implementação naquele mês. Com isso, cotas de bolsas ficam disponíveis, sem utilização (e portanto sem gastos financeiros) no sistema da CAPES por 1 ou 2 meses. Mas isso não significa que elas estejam sendo mal utilizadas ou que o programa não precise delas...Enfim, essa vacância é absolutamente circunstancial na maioria dos casos, e essas são as cotas que foram bloqueadas e recolhidas esta semana.
Esse bloqueio causa uma série de problemas, pois eventualmente estudantes já saíram de suas cidades de origem, ou rejeitaram propostas de emprego. É sempre importante lembrar que essas bolsas de mestrado e doutorado exigem dedicação exclusiva, ou seja, os estudantes não podem ter vínculo empregatício e têm que se dedicar integralmente ao curso de mestrado ou doutorado. Muitas pessoas acham que essas bolsas são "assistenciais", no sentido pejorativo que infelizmente muitos usam de forma injustificada para o termo "bolsa"... Mas de fato estamos falando de pagamento de "salário" (mas sem nenhum benefício trabalhista...), para os jovens que estão auxiliando tremendamente no desenvolvimento científico e na educação do País. Enfim, além da redução de bolsas “per se”, com uma economia pífia para o País (considerando o volume total de recursos do MEC e da própria CAPES), esse cancelamento causa uma série de frustrações na nova geração de potenciais pesquisadores e cria um clima perverso de incerteza e desmotivação para os programas de pós-graduação no Brasil.
Mas não foi "só" isso...Simultaneamente, essa semana o Presidente da República enviou ao Congresso Nacional o projeto da Lei Orçamentária Anual (pLOA) para 2020, e toda a comunidade acadêmica recebeu em choque a notícia de que o orçamento da CAPES para bolsas de mestrado e doutorado seria reduzido em quase 54,3%, caindo de 2,68 bilhões em 2019 para 1,23 bilhões em 2020! Ainda não é possível avaliar especificamente como esse corte vai ser aplicado, mas sem a menor dúvida o impacto vai ser tremendo e em bases desconhecidas (o MEC já havia anunciado há algumas semanas uma mudança na forma de concessão de bolsas, levando em consideração o PIB dos municípios, e o incentivo a “áreas estratégicas”). O fato é que a CAPES e todo o Sistema Nacional de Pós-Graduação, um dos projetos de longa duração mais bem sucedidos e com um papel fundamental para colocar o Brasil em uma posição de destaque internacional em ciência e tecnologia, foram duramente atingidos!
Isso me leva ao outro ponto interessante em relação ao Prêmio CAPES 2019: as teses premiadas nas áreas de “Biodiversidade” e “Ciências Ambientais”, mais diretamente associadas à ecologia e às questões ambientais, tratam da Amazônia (agradeço ao meu amigo e professor da Universidade Estadual de Goias - UEG, João Carlos Nabout, por ter me chamado atenção para esse ponto!). Consultando as teses defendidas e os currículos do(a)s jovens cientistas que as escreveram, vários outros pontos merecem destaque e nos permitem uma discussão um pouco mais ampla sobre o momento crítico pelo qual passam o ensino superior e a ciência brasileiras.
Na área de “Biodiversidade”, a premiada foi a Dra. Carolina Levis, bióloga formada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia(Ecologia) do Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA; um instituto de pesquisa associado ao MCTIC), trabalhando sob a orientação da Dra. Flávia R. C. Costa e coorientação do Dr. Charles Roland Clement. A Dra. Carolina Levis recebeu bolsa de Doutorado do CNPq (que como sabemos também está seriamente ameçado por cortes e contingenciamentos...). A tese intitulou-se “Domesticação das Florestas Amazônicas”, e foi desenvolvida em um sistema chamado de “co-tutela”, de modo que a Carolina Levis também recebeu simultaneamente o título de Doutora pelo INPA e pela Wageningen University, na Holanda. Consultando o currículo da Dr. Carolina Levis na Plataforma Lattes do CNPq, pude constatar que ela publicou nos últimos 5 anos um total de 14 artigos científicos e, mais importante, que ela é autora principal em artigo publicado na revista Science em 2017!
Na área de “Ciências Ambientais”, a tese premiada intitulou-se “Analise dos Impactos das Mudanças Climáticas e do Desmatamento sobre a flora arbórea da Amazônia”, e foi defendida pelo Dr. Vitor Hugo Freitas Gomes, bolsista da CAPES trabalhando sob a orientação da Dra. Ima C. G. Vieira e coorientação do Dr. Hans ter Steege, no Programa de Pós-Graduação em “Ciências Ambientais” da Universidade Federal do Pará (UFPA), com um “estágio-sanduiche” na Holanda, no Naturalis Biodiversity Center. O Dr. Vitor H. F. Freitas possui uma carreira mais “interdisciplinar”, com graduação em "Tecnologia em Processamento de Dados" (pelo Centro Universitário do Estado do Pará, CESUPA), Especialização em Redes de Computadores e um Mestrado profissional em "Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local", ambos pela UFPA. Me pareceu, pelo CV Lattes, que o Dr. Vitor H. F. Freitas possui uma trajetória profissional com um forte componente aplicado, tendo publicado 5 artigos científicos nos últimos anos, com destaque para a publicação de um trabalho da tese na Nature Climate Change, em 2019.
Na verdade, além desses dois jovens pesquisadores agraciados com os prêmios principais, duas das “menções honrosas” nas áreas de “Biodiversidade” e de “Ciências Ambientais” também envolvem pesquisa na região Amazônica, o que reflete sua importância. Na área de Biodiversidade, um dos capítulos da tese da Dra. Lilian Patrícia Sales Macedo, orientada pelo Prof. Rafael Loyola em nosso programa de pós-graduação em Ecologia & Evolução aqui na UFG, que trata de questões amplas sobre modelagem de nicho ecológico e suas aplicações, intitula-se Model uncertainties do not affect observed patterns of species richness in the Amazon. Na área de Ciências Ambientais, uma das teses agraciada com a menção honrosa, defendida por Raquel Carvalho de Lima, orientada pela Dra. Ana Paula D. Aguiar, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE; outro instituto de pesquisa associado ao MCTIC), intitula-se “Secondary vegetation dynamics associated with cattle ranching systems in Pará, Brazilian Amazon”.
Assim, na minha percepção os agraciados com o prêmio CAPES tese 2019 (e de todos os outros anos desde 2006, de fato...) ilustram bem o perfil da grande maioria dos jovens pesquisadores do Brasil hoje e demonstram empiricamente o crescimento e a força do nosso sistema de ensino superior e pesquisa. No caso dos dois prêmios principais, a partir de sua formação e atividade de pesquisa na pós-graduação, os dois publicaram artigos científicos nas melhores revistas científicas do mundo (Science e Nature) e possuem uma forte inserção internacional, tendo desenvolvido parte dos seus trabalhos no exterior e envolvendo equipes de pesquisadores do Brasil e do exterior, com um forte componente interdisciplinar. As duas teses premiadas são oriundas de programas de pós-graduação bem consolidados (com nota 5 ou 6; o programa do INPA em particular foi um dos primeiros do Brasil na área de Ecologia), mas ambos estão situados fora do eixo Sudeste-Sul, e os dois egressos foram bolsistas de Doutorado da CAPES ou do CNPq. Isso mostra portanto o crescimento da ciência brasileira, tanto em termos de qualidade quanto de quantidade, com uma forte inserção internacional e se beneficiando dos programas de desenvolvimento e diminuição das desigualdades regionais nos últimos 20 anos.
Mais interessante, esses resultados da CAPES aparecem justamente quando há tantas polêmicas envolvendo a Amazônia, tão noticiadas em toda a mídia tanto no Brasil como no exterior, nas últimas semanas. Um grande aumento no desmatamento e nos focos de incêndio em toda a região foi detectado, na esteira de um desmonte gradual, nos últimos meses, nos programas de fiscalização pelo IBAMA que tentam coibir as muitas ações criminosas. Houve também o desmantelamento do “Fundo Amazônia” e a recusa do Brasil em receber recursos emergências estrangeiros para apoiar ações contra os crimes ambientais na região, levando inclusive a ameaça de sanções econômicas internacionais decorrentes do descaso do Governo brasileiro com toda a situação. No meio de tudo isso aparece uma "surreal" troca de farpas entre os Presidentes do Brasil e da França, desencadeada por ofensas pessoais do nosso Presidente (e posteriormente do nosso Ministro da Economia) à esposa do Presidente da França...O INPA e a UFPA, instituições-sede dos programas de Pós-Graduação agraciados com os prêmios CAPES nas duas áreas, têm sofrido sérios contingenciamentos e cortes em seus orçamentos, com perspectivas sombrias para 2020 e para os próximos anos. Em um contexto um pouco mais amplo, não podemos esquecer do negacionismo climático do Ministro de Relações Exteriores e da liberação desenfreada de agrotóxicos pelo Ministério da Agricultura (bem como a declaração recente da ministra de que não é preciso gastar dinheiro com reflorestamento, pois a floresta se recupera sozinha...)... Claro, temos a visão "desenvolvimentista" dos anos 1950 do Ministro do Meio Ambiente, expressa na sua incapacidade (ou desinteresse, ou ambos...) de compreender os aspectos científicos dos programas de monitoramento da Amazônia pelo Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais (INPE), que culminaram inclusive na demissão do Diretor do Órgão, Dr. Ricardo Galvão em agosto deste ano (veja no website da Coalisão "Ciencia & Sociedade" uma série de artigos sobre os sérios problemas ambientais brasileiros que apareceram nos últimos meses...).
Em resumo, os dois prêmios CAPES 2019 nas áreas associadas à questão ambiental ilustram muito bem que o Brasil possui uma grande competência científica em pesquisa, com grande destaque internacional, que pode sim ser efetivamente pensada em termos de aplicação para a solução de problemas nacionais e internacionais. Os programas de pós-graduação no Brasil têm feito um trabalho excepcional no sentido de formar jovens pesquisadores competentes e que têm todo um futuro brilhante pela frente, com grande potencial de melhorar a nossa sociedade com sua atuação em ciência e tecnologia e na formação de pessoas com um pensamento crítico. O prêmio CAPES de tese reflete muito bem tudo isso, mas sua divulgação vem em um momento extremamente delicado...Todo o esforço para avançar a ciência e a educação no Brasil tem sido minado constantemente nos últimos meses, não só com um sério estrangulamento de recursos financeiros nas instituições e nas agências de fomento mas, principalmente, por grandes campanhas de difamação e desmoralização do ensino e da pesquisa no Brasil... Toda a infraestrutura de pesquisa e os programas de apoio consolidados e criados a duras penas nos últimos 50 anos, bem como a própria credibilidade da ciência nacional, estão ameaçados. Até quando a academia vai assistir a esses ataques sem realmente ter ações mais efetivas? O que podemos fazer...? São ótimas perguntas para as quais eu, infelizmente, não tenho respostas nesse momento.
PS: em tempo, acabei de saber hoje (10/09/2019) que a cerimônia de premiação do CAPES tese 2019 foi cancelada...Mais um momento triste e vergonhoso para a ciência no Brasil!
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