Com a colaboração de
Lucas Jardim
Pesquisador associado ao LETS/UFG e bolsista DTI-A do Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade
Hoje, 12 de fevereiro, comemoramos o “Dia de Darwin” (International Darwin Day), data de aniversário de Charles Darwin! Um dia para celebrarmos e promovermos a curiosidade humana, a busca pelo conhecimento através da ciência e a bravura intelectual que permite a luta de batalhas diárias para a difusão da razão, da racionalidade e da contribuição da ciência para o bem-estar humano. Apesar de ser uma data para celebrarmos a Ciência, a Educação e o Humanismo, a motivação inicial para a celebração foi a contribuição intelectual de Charles Darwin sobre a evolução e diversificação dos organismos por meio da seleção natural. Embora muitos progressos tenham sido feitos na compreensão dos padrões e processos na evolução desde o século XIX, o pioneirismo de Darwin e a amplitude do seu pensamento o colocam no panteão de “heróis” da Ciência moderna.
Entretanto, como discutido recentemente aqui no “Ciência, Universidade e Outras Idéias” (no contexto da evolução do coronavírus), em geral não é fácil testar a evolução adaptativa e por seleção natural, principalmente pelo fato de estarmos lidando com eventos históricos. Além disso, a diversidade biológica que observamos não é gerada somente por seleção natural...
Até a Síntese Moderna da Evolução havia ainda um grande debate sobre a importância relativa da seleção natural como processo evolutivo, o que foi em princípio pacificado nos anos de 1940. Mas logo apareceram algumas incongruências em relação à magnitude da variabilidade genética existente nas populações a partir do momento que técnicas de Biologia Molecular começaram a ficar mais acessíveis, no início dos anos de 1960. O problema é que havia mais variabilidade do que deveria se a seleção natural estivesse agindo sobre a diversidade genética nas populações (que, por sua vez, regularia a variação morfológica, comportamental etc.). Esse problema levou ao desenvolvimento de modelos teóricos que demonstravam que, no nível molecular, processos aleatórios gerariam variações genéticas, o que chamamos de “evolução neutra”, e que foi elaborada inicialmente por Motoo Kimura e colaboradores. Além disso, os fenótipos dos organismos são expressos por uma rede complexa de expressão e interação gênica e, portanto, pressões seletivas em uma caraterística podem resultar na seleção de outro caráter que não possui vantagem adaptativa, por um “efeito carona”. Há também a possibilidade de haver características nos organismos atuais que foram selecionadas por pressões seletivas no passado e atualmente não possuem mais uma vantagem adaptativa, sendo, portanto, mantidas somente por herança, ou por “inércia”.
Sendo assim, ao observarmos determinadas característica em algum animal ou planta que avistamos num passeio pelo parque, por exemplo, sempre nos perguntamos qual a vantagem daquela característica que pode nos chamar atenção, principalmente se são "extravagantes". A resposta é que só saberemos isso se realmente testarmos se aquela característica fornece vantagem adaptativa e não o resultado de uma evolução neutra. Esse teste pode ser feito tanto por experimentos (mas com limitações, por causa da questão histórica) como pela análise de dados observacionais, comparando-se diferentes espécies, que é o que vamos abordar a seguir.
O ponto de partida para testarmos a hipótese de adaptação por comparação entre espécies é criar um modelo, ou expectativa, de qual seria a relação evolutiva, ou de "parentesco", entre essas espécies, ou seja, estabelecer a sua relação filogenética. Essas relações normalmente são expressas por um gráfico em forma de “árvore”, como mostrado na Figura abaixo. Em resumo, esses esquemas mostram a sequência de eventos de bifurcação das linhagens dando origem às espécies, com os seus ancestrais comuns em diferentes momentos do tempo.
Representação de uma árvore filogenética de grandes macacos (os Hominoidea), com um detalhe para as relações estimadas entre as espécies extintas de hominíneos, que “preenchem” o ramo que é obtido quando são comparadas apenas as espécies ou gêneros viventes. Notem que na filogenia à direita as espécies e linhagens não "chegam" até o presente, pois estão extintas.
Aliás, uma representação da relação de parentesco entre as espécies é a única figura na Origem das Espécies, o mais importante livro de Darwin publicado em 1859, sendo na verdade uma das representações (feita por ele) mais conhecidas de seu pensamento sobre a evolução (o desenho do “I think...”).
Essas relações filogenéticas entre as espécies podem ser inferidas por métodos estatísticos que modelam a evolução de características como proteínas, fenótipos ou material genético e, desde os anos de 1950, diversas abordagens foram gradualmente sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas. Assim, comparando-se diferentes espécies é possível tentar reconstruir a história dos eventos de diferenciação entre as espécies e estabelecer relações de parentesco a partir da similaridade entre elas (abordagem de semelhança), estabelecendo árvores evolutivas mais simples e que minimizam o número de eventos de mudança (abordagem de parcimônia), métodos maximizam a probabilidade de gerarmos os dados observados (abordagem de máxima verossimilhança), ou métodos para encontrar a hipótese filogenética mais provável uma vez que temos os dados em mãos (abordagem bayesiana).
Em um contexto de evolução molecular, as abordagens mais utilizadas atualmente modelam de forma probabilística a evolução das características e tiveram sua origem no trabalho de A.W. F. Edwards e L. L. Cavalli-Sforza (1964), que as propuseram para reconstruir a filogenia de linhagens humanas. Cada linhagem, ou espécie, é uma unidade com várias dimensões, sendo cada dimensão uma das suas características (ex. características morfológicas, comportamentais, fisiológicas, ou mais frequentemente hoje características genéticas, como a sequência de bases nucleotídicas no genoma), que evoluem por um processo de difusão ao longo do tempo. A semelhança entre essas características nas espécies é determinada pelo compartilhamento das suas histórias evolutivas, ou seja, quanto mais próximas no tempo (ou seja, o ancestral comum é mais recente), mais semelhantes serão as características de duas espécies (na Figura acima, por exemplo, vejam que se pensarmos no tamanho do cérebro, por exemplo, o Homo sapiens é mais semelhante a um Homo erectus do que a um Australopithecus, e mais semelhante a um chimpanzé do que a um gibão, ou aos outros macacos).
Podemos começar a pensar em como a evolução acontece simplesmente criando um modelo estatístico para esse padrão descrito acima, no qual a diferença é proporcional à idade do ancestral comum mais recente. O modelo para a evolução das características escolhido por Edwards e Cavalli-Sforza para entender esse padrão foi o chamado movimento Browniano, que é na verdade um modelo de difusão de partículas que foi proposto Albert Einstein para explicar o movimento de partículas de pólen imersos em água!!!! Veja na animação abaixo como uma filogenia pode se originar à medida que uma característica evolui ao longo do tempo a partir do momento que as linhagens se separam (geograficamente, por exemplo). Assim, o objetivo da reconstrução filogenética é encontrar a relação de parentesco que melhor explica as características observadas nos organismos. Essa metodologia foi melhor elaborada por Joe Felsenstein e muitos outros pesquisadores posteriormente para considerar características discretas (ex. bases nucleotídicas) e hoje envolve uma complexidade matemática muito maior que o simples movimento Browniano, mas o objetivo e lógica são os mesmos mudando somente o método de inferência e o que chamamos de “modelos evolutivos” subjacentes à variação das características que queremos estudar.
Simulação de uma característica evoluindo por movimento Browniano durante um processo de diversificação de espécies, com o valor de uma característica hipotética no eixo Y (phenotype) e o tempo em X (da esquerda para a direita). Uma vez que, em cada instante de tempo, as variações da característica ocorrem por acaso, elas podem oscilar, mas depois de um evento de separação de linhagens, as trajetórias começam a divergir já que as variações em cada linhagem são independentes em magnitude e direção (observe atentamente o vídeo e você verá que de vez em quando aparecem novas linhagens). Assim, a semelhança final entre as espécies é proporcional ao tempo com que elas evoluíram juntas, ou seja, por quanto tempo as duas espécies formavam uma única linhagem, antes a bifurcação no nó da árvore filogenética (animação criada no pacote Phytools para a plataforma R).
Uma vez que temos uma árvore filogenética reconstruída, a ideia é então verificar se a diferença entre as espécies pode ser “explicada” por movimento Browniano ou por outros modelos um pouco mais complexos. Podemos também entender como características evoluem entre diferentes linhagens e testar se essas características tendem a evoluir de forma correlacionada umas com as outras, ou se elas estão evoluindo de forma correlacionada com mudanças ambientais. Assim, temos um arcabouço estatístico para testar a evolução adaptativa, em um sentido Darwiniano, a partir de dados comparativos.
A primeira forma de testar a hipótese da adaptação seria comparar modelo de evolução de características adaptativas contra modelos de evolução neutra. Se o modelo adaptativo explicar melhor o dado observado podemos inferir que essa característica evolui por adaptação. Por exemplo, poderíamos comparar a variação na forma da mandíbula de espécies da ordem Carnivora (ex. leões, gatos, cães) entre linhagens e ao longo do tempo contra expectativas geradas por modelos neutros e assim rejeitar a hipótese de neutralidade. Outra forma é avaliar a correlação entre as características e pressões ambientais, de modo que se linhagens independentes evoluem características semelhantes por habitarem ambientes parecidos, essa seria uma evidência de evolução adaptativa. Por exemplo, a tendência de mamíferos, de diferentes linhagens, vivendo em ambientes mais frios serem maiores e terem extremidades menores e mais robustas (o que chamamos de “regras” de Bergmann e de Allen, respectivamente), é uma evidência de adaptação aos climas frios que não é esperada por um modelo neutro dessas características, ou seja, se essas variações de tamanho e forma fosse apenas consequência dos eventos de bifurcação ao longo do tempo.
Além disso, a evolução correlacionada entre as características pode também ser evidência de adaptação. A evolução do tamanho do cérebro em hominíneos poderia ser somente uma consequência da evolução do tamanho do corpo. Entretanto, sabemos que em algumas linhagens, como as que levaram ao surgimento dos seres humanos, existem mudanças da relação tamanho do corpo e tamanho do cérebro que aumentaram o cérebro mais do que o esperado por uma evolução neutra de puro acompanhando do tamanho do corpo (que chamamos de “não-estacionaridade” da evolução da característica ao longo da filogenia, com acelerações ou desacelerações independentes em cada linhagem).
Apesar da teoria evolutiva ter se desenvolvido para explicar a evolução dos organismos, a aplicação da teoria e métodos extrapola a biologia evolutiva "em si". A evolução dos organismos pode ser entendida como um exemplo de sistemas adaptativos complexos e assim o ferramental desenvolvido na biologia evolutiva pode ser aplicado em outras disciplinas como linguística para estudar a evolução da linguagem. Ao invés de fenótipos ou bases nucleotídicas, podemos usar características léxicas, fonéticas e morfológicas da linguagem para reconstruir a árvore de parentesco linguístico, que tem sido usado como aproximação da história evolutivas das sociedades humanas. Essa abordagem permite também a aplicação de métodos comparativos para testar a evolução de atributos culturais dessas sociedades, permitindo avaliar se o uso de tecnologias agrícolas por diferentes sociedades podem ter surgido independentemente, por necessidades e pressões ambientais semelhantes, ou por simples herança cultural transmitidas entre gerações nas populações humanas. Também podemos avaliar se sociedades em ambientes mais severos ou com grande tamanho populacional e estruturas sociais complexas tendem a gerar religiões com deuses moralisantes...Outra possibilidade é o estudo da evolução de característica musicais entre diferentes sociedades ou ao longo do tempo. Esses são apenas alguns exemplos de estudos teóricos que podem nos ajudar a entender a natureza humana a partir do método comparativo (vamos discutir com mais calma esses assuntos super- interessantes sobre evolução comparativa de linguagem e características sociais humanas em outro momento...).
Uma outra aplicação interessante de métodos comparativos é o estudo da evolução do câncer. Células cancerígenas evoluem por acúmulo de mutações em determinadas regiões genômicas, a reconstrução da história evolutiva por métodos de inferência filogenética permite identificar linhagens mais danosas, assim como o desenvolvimento de estratégias de tratamento. Há também a discussão sobre a intensidade de seleção em fases pré-tratamento, evoluindo provavelmente por evolução neutra, e pós-tratamento de forma adaptativa devido à pressão do tratamento. Câncer pode evoluir por anagênesis, por cladogenesis ou acumular baixas taxas de mutação ao longo do tempo e sofrer saltos de mutações como proposto pela evolução por equilíbrio pontuado.
Outra aplicação já conhecida por todos nós na pandêmia é a de modelagem da evolução de genoma de vírus, detecção de mutações que possam escapar de vacinas e testes para avaliar se a evolução de variantes na população é adaptativa, causando mais transmissão, ou neutra. Estamos assistindo em tempo real essa discussão para variantes de COVID-19 em Manaus e outras regiões do mundo, como discutido recentemente aqui no “Ciência, Universidade e Outras Idéias Recentemente”. Essa pandemia não seria (ou será...) combatida sem lembrarmos da teoria evolutiva...
Portanto, de uma teoria que surgiu para explicar a diversidade de espécies na Terra, com modelos evolutivos para explicar a variação da diversidade de fósseis pelo tempo geológico, combinada com modelos matemáticos para explicar movimento de partículas na água, surge um corpo mais amplo de conhecimento e ferramentas que são aplicadas em outras disciplinas, com consequências diretas no nosso bem-estar e saúde. ...O desenvolvimento científico é por si só um processo evolutivo adaptativo de ideias, que são selecionadas pela evidência científica que às suportam, será que existem hipóteses científicas sendo mantidas por processos neutros? Acredito que sim, mas não vou apontar quais...Para concluir, a conexão entre ciência teórica e aplicada e a sua utilização inclusive no entendimento da evolução do pensamento humano são as justificativas para a comemoração desse dia especial, de celebração da importância da Ciência! Nesse dia em que celebramos o “Dia de Darwin” nunca é demais lembrar que tudo isso começou com o seu famoso I think!
Main Hall. Darwin Sculpture. Natural History Museum. London, England, UK. January 2020 (unplash)
Obrigado por mais um excelente texto! Robert Brown, o botânico que descreveu em 1827 o fenômeno batizado em sua homenagem, recomendou a Darwin o microscópio mais apropriado para a viagem do Beagle. Aparentemente, este microscópio ainda existe até hoje e encontra-se exposto no museu de Darwin (Downe House). O falecimento de Robert Brown em 1858 deixou um espaço vago nos Anais do Simpósio da Sociedade Lineana daquele ano, que foi preenchido pelo famoso artigo "On the Tendency of Species to form Varieties, and on the Perpetuation of Varieties and Species by Natural Means of Selection", de autoria de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace. Nem o próprio Brown teria imaginado uma relação tão próxima entre ele e a Teoria da…
Excelente Lucas e Alexandre. Cada Darwin Day é um alento nesse tempo onde reina o negacionismo.