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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Quem vê tamanho não vê extinção...

Christielly Mendonça Borges

Doutoranda em Ecologia & Evolução

Universidade Federal de Goiás


O aumento da população humana e de sua capacidade tecnológica vem modificando drasticamente a natureza. A maior parte dos ecossistemas é hoje dominada direta ou indiretamente pela humanidade e nenhum está livre dessa influência. Nós alteramos a superfície do solo e os ciclos biogeoquímicos, introduzimos espécies exóticas e/ou removemos as espécies nativas. Não é à toa que consideramos que os grandes “culpados” pela crise da biodiversidade são a perda e fragmentação de habitat, a poluição, a introdução de espécies exóticas e a superexploração de recursos (que formam o "quarteto do mal", termo cunhado por Jared Diamond em 1984).


Mais recentemente as mudanças climáticas globais previstas para o futuro, que incluem o aumento da temperatura média e no nível do mar, dentre outras perturbações, também têm sido apontadas como uma grande ameaça para a biodiversidade. Coincidentemente, essas mudanças climáticas também são consequências de ações antrópicas, como emissão excessiva de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso. As principais atividades emissoras desses gases são a queima de combustíveis fósseis e a pecuária, responsável sozinha por 9% das emissões antrópicas de dióxido de carbono, 37% da emissão de metano e 65% da emissão de óxido!


Em relação às mudanças climáticas, a preocupação com a biodiversidade no presente e no futuro é fundamentada principalmente nas respostas registradas de espécies às mudanças climáticas do passado, como extinção e declínio populacional. Assim, compreender como um grupo de organismos, como os mamíferos por exemplo, responderam às mudanças climáticas do passado é essencial para compreender como eles respondem e responderão às mudanças climáticas atuais e futuras.


A última mudança climática importante ocorreu há cerca de 21 mil anos atrás no período Quaternário Superior, durante o chamado “Último Glacial Máximo” (UGM; popularmente conhecido como a “última era do gelo”). Essa foi a última grande mudança em uma série de ciclos que vêm ocorrendo há pelo menos 1 milhão de anos. Na transição climática entre UGM e o Holoceno, nosso período atual, foram registradas muitas extinções de espécies de tamanho corporal grande, chamados de “megafauna”, composta principalmente por mamíferos. Caminhando vagarosamente pelas Américas havia bichos-preguiça de 6 metros de altura, tatus do tamanho de um fusca e cavalos selvagens. Era possível encontrar mamutes na América do Norte e na Europa, sendo que seu parente mais próximo, o elefante, só́ é encontrado naturalmente hoje na África e Ásia. Grande parte dos mamíferos que conhecemos tinham um parente maior, de 40 quilos ou mais (Fig. 1).


Fig. 1 - Tatus e bicho-preguiça gigantes durante o Pleistoceno na América do Sul. Imagem por D. Bogdanov disponível em Wikimedia Commons

Todos esses animais foram extintos durante essas mudanças climáticas do passado recente, que incluíram o resfriamento da Terra seguido de um aquecimento. Essas mudanças se deram entre 50 e 10 mil anos atrás. Por muito tempo acreditou-se que esse aquecimento foi responsável pela extinção da megafauna. No entanto, se houve pelo menos 12 outros períodos glaciais durante os ciclos no Quaternário, por que teriam os animais desaparecido apenas no último ciclo? Qual seria o outro fator compartilhado entre todos esses mamíferos que culminou em suas extinções? A resposta somos nós, Homo sapiens.


É estimado que H. sapiens tenha se originado na África há cerca de 300 mil anos. Com o tempo colonizamos outros continentes: Europa e Ásia há 50 mil anos, Austrália há 40 mil, e as Américas há pelo menos 15 mil anos (embora essas datas sejam sempre controversas e tendam a recuar cada vez mais...). Para muitos cientistas, o fato da África conter vários mamíferos grandes, como elefantes e hipopótamos, reflete a coevolução dos humanos com esses bichos. O mesmo não pode ser dito para os animais das Américas e da Austrália. Quando os humanos chegaram nestes continentes, já́ tinham técnicas e ferramentas eficazes para a caça. Os animais, em contrapartida, desconheciam os humanos, o que tornava a caça bem-sucedida (Fig. 2). Imagina que você é um bicho-preguiça gigante e de repente vê um bando de animaizinhos de duas pernas correndo na sua direção com flechas? Você̂ correria? O bichos-preguiça não tiveram tempo de aprender a correr...


Mais recentemente se chegou a um certo consenso de que as extinções da megafauna no Quaternário foram devidas à ação sinergética entre as mudanças climáticas e a imigração humana, que trouxeram caça e mudança de uso de solo para esses continentes. A mudança climática reduziu a distribuição geográfica potencial desses mamíferos, diminuindo seu tamanho e densidade populacional, não sobrevivendo assim à nova pressão antrópica. Portanto, digamos, onde antes podia haver 20 mil mamutes agora só caberiam 5 mil, pois o habitat adequado para ele foi sendo reduzido à medida que o clima esquentava depois do UGM. Com uma população pequena e uma baixa capacidade reprodutiva, as populações das espécies caçadas foram levadas à extinção. Ou seja, as mudanças climáticas reduziram o tamanho das populações desses animais e os humanos deram o golpe de misericórdia.



Fig. 2 - Humanos caçando um gliptodonte (pintura por Heinrich Harder).


Se as mudanças climáticas do passado diminuíram as áreas favoráveis para a megafauna, este fenômeno pode também ter diminuído as áreas para os demais mamíferos sobreviventes que conhecemos hoje. Embora essas espécies tenham resistido a esse acontecimento no passado, com a possível redução de áreas favoráveis, e em ação sinergética com os efeitos antrópicos, elas são altamente vulneráveis aos impactos contemporâneos.


Em resposta às mudanças climáticas, a área de ocupação de uma espécie pode se deslocar, expandir ou contrair. Espécies que vivem atualmente em áreas pequenas podem ter ocupado áreas maiores ou menores no passado. A maioria dos estudos sobre diminuição na área de ocupação de espécies focam principalmente na era pós-colombiana, período de expansão europeia, que representa somente os últimos 500 anos. No entanto, considerando que as espécies que temos hoje já enfrentaram mudanças climáticas no passado, é possível que muitas ainda estejam lidando com os efeitos negativos desse impacto. Publicamos recentemente um artigo que propõe justamente que a dinâmica climática do Pleistoceno pode explicar o risco de extinção e o declínio populacional de mamíferos terrestres atualmente listados como ameaçados de extinção pela IUCN. Vamos entender melhor como testamos essa ideia.

De acordo com a IUCN, do total de 4645 espécies de mamíferos conhecidas atualmente, 793 estão em alguma categoria de ameaça (“criticamente ameaçado”, “em perigo” ou “vulnerável”) e 3390 não estão ameaçados de extinção (vejam que para 462 delas não temos nem informações suficientes para fazer uma classificação do risco!). Para descobrir se os mamíferos sofreram redução de áreas climáticas favoráveis para sua ocupação, nós modelamos o nicho ecológico de cada um dos 4645 mamíferos existentes no mundo todo, obtendo assim a distribuição potencial de cada espécie para o passado (UGM) e para o presente (veja aqui uma postagem sobre esse método e aqui uma descrição técnica mais detalhada).


A partir desse modelo, podemos obter duas medidas de distribuição: adequabilidade climática e a distribuição geográfica binária (presença e ausência) de cada bicho. A adequabilidade climática varia de 0 a 1, sendo que o zero indica áreas com condições climáticas onde a espécie jamais ocorrerá, e 1 indica as áreas mais favoráveis para sua sobrevivência. A adequabilidade é uma variável contínua e às vezes pode ser mais fácil trabalhar com uma variável binária, que indique algo como “a espécie está aqui e não aqui”. Assim, calculamos pontos de corte baseados na eficácia de previsão dos modelos. Cada espécie tem um ponto de corte diferente, e esse foi escolhido quando 95% das presenças eram previstas corretamente pelos modelos de nicho ecológico. Tudo isso possibilitou que pudéssemos comparar 1) as áreas de adequabilidade climática favoráveis para cada espécie no passado com as do presente e 2) as áreas de distribuição potencial do passado e do presente (Fig. 3). A partir dessas informações, podemos calcular se essas áreas aumentaram, diminuíram ou permaneceram as mesmas.



Fig. 3 - Exemplos de duas espécies de roedores no mesmo gênero e em diferentes categorias da IUCN. Ctenomys rionegresensis, está listado como ameaçado de extinção (EN) e demonstra redução de adequabilidade climática (e-f) e áreas de distribuição geográfica potencias (i-j) entre o último glacial máximo e o presente. Já Ctenomys torquatus, listado como não ameaçado (LC), demonstra aumento na adequabilidade climática (g-h) e áreas de distribuição potenciais (k-l) para o mesmo período. Ponto de corte de adequabilidade foi de 0.81 para C. rionegrensis e 0.86 para C. torquatus. Nos mapas, áreas mais verdes indicam adequabilidade mais alta, conforme legenda. Figura modificada de Borges et al., 2019. PLoS One, 14(9).

Com esses índices de diferença entre passado-presente para cada uma das espécies, e sabendo se ela está ameaçada de extinção ou não, calculamos diferentes estatísticas para descobrir se essa variação temporal na distribuição pode explicar o nível de ameaça (Fig. 4). De forma geral, encontramos que a maioria das espécies se beneficiaram com as mudanças climáticas entre passado e presente e puderam expandir suas áreas de ocupação, justificando o “status” de espécies não ameaçadas. A adequabilidade média aumentou para 70.2% para as espécies não ameaçadas e 54% para as ameaçadas. No mesmo sentido, somente 24.1% das espécies não ameaçadas sofreram redução na distribuição geográfica comparado com 47% dos mamíferos ameaçados que tiveram sim redução da área geográfica. Essas percentagens são referentes principalmente aos pequenos mamíferos, como tenrecos e toupeiras douradas (agrupadas por terem características em comum na ordem Afrotheria), gambás (Metatheria), ouriços, toupeiras e musaranhos (Eulipotyphla), coelhos, lebres e pikas (Lagomorpha) e roedores, como ratos, esquilos, castores, cutias e pacas (Rodentia).



Fig. 4 – Variação (%) no tamanho da distribuição geográfica potencial (ΔRange) e adequabilidade climática (ΔAdequabilidade) entre o último glacial máximo e o presente, para espécies ameaças (em vermelho) e não-ameaçadas (em azul) de extinção em diferentes ordens de mamíferos. Figura modificada de Borges et al., 2019. PLoS One, 14(9).

Uma possível explicação para esses resultados é que as espécies de tamanho corporal pequeno geralmente têm baixa capacidade de locomoção, o que dificulta que consigam acompanhar as mudanças climáticas. Assim, essas espécies acabam ficando “presas” em pequenos fragmentos de seu habitat, um fator que limita seu crescimento populacional e aumenta o risco da espécie à fatores externos hoje, como o desmatamento. Inclusive, a espécie considerada como a primeira extinção de mamífero por causa de mudanças climáticas provocadas por humanos é um roedor. Esse rato (Fig. 5), chamado popularmente de rato cauda de mosaico (Melomys rubicola), vivia apenas em uma pequena ilha ao norte da Austrália. Essa ilha foi inundada várias vezes por causa do aumento do mar, provocado pelas mudanças climáticas contemporâneas. Essas inundações acabaram matando indivíduos da espécie e destruindo seu habitat, e os dois fatores contribuíram para a diminuição populacional até que houvesse sua extinção. Se pensarmos em tudo que já foi explicado aqui, é provável que o rato ocupasse uma área maior no passado, provavelmente em outras ilhas que foram submergida pelo oceano, permanecendo apenas em uma. Encontrado em um estado já vulnerável de sobrevivência, o rato não resistiu às pressões humanas atuais.



Fig. 5 – O rato cauda de mosaico, declarado extinto em 2016. Foto por Ian Bell, governo de Queensland, Austrália

A ausência de resposta significativa em grupos de mamíferos de tamanho corporal maior, como cavalos e veados (Ungulata), onças e lobos (Carnivora), tamanduás e preguiças (Xenarthra) pode ser devido ao fato de as espécies desses grupos sensíveis às mudanças climáticas do Quaternário já estarem extintas. Para Xenarthra, 7 das 11 famílias da ordem foram extintas, totalizando quase 100 espécies de bichos-preguiça descritas pelo registro fóssil e que não existem mais. Ungulados e carnívoros também perderam conjuntamente aproximadamente 38 gêneros globalmente! As espécies sobreviventes desses grupos provavelmente se beneficiaram com as mudanças climáticas do passado, não apresentando assim indícios de redução de distribuição geográfica ou adequabilidade climática. No entanto, isso não significa que elas não irão sofrer com as mudanças climáticas futuras, e lembrando que muitas delas já sofrem com os outros impactos humanos modernos.


Mamíferos são um grupo comumente vulneráveis a perda de habitat, modificação e fragmentação da paisagem. Quando somamos esses danos ao impacto negativo das mudanças climáticas do passado, temos um cenário futuro bastante preocupante, principalmente porque as mudanças previstas para o futuro estão ocorrendo de maneira bastante acelerada. Assim, registros fosseis e dinâmicas climáticas históricas se tornam peças-chave a serem incorporadas em análises de risco de extinção e conservação. Nossa pesquisa, além de demonstrar que um fenômeno do passado ainda repercute nos padrões encontrados na natureza hoje, também pode contribuir para aumentar nossa compreensão sobre as causas da extinção e jogar luz nos processos entrelaçados que podem estar por trás da atual crise da biodiversidade.



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