Temos hoje muitas evidências científicas de que há grandes mudanças climáticas em curso na Terra, causadas pelas intensa ação humana que se intensificou especialmente após a revolução industrial (a despeito do que tem sido dito por alguns pseudocientistas e negacionistas, inclusive com apoio dos Governos Trump e Bolsonaro...). Nas últimas duas décadas diversos grupos de pesquisa em climatologia em todo o mundo têm analisado os dados empíricos e construídos modelos que descrevem o comportamento do clima, revelando mudanças rápidas e tendências claras de mudança ao longo do tempo. Usando esses modelos os pesquisadores são também capazes de simular a dinâmica da atmosfera e dos oceanos e projetar as condições climáticas no futuro (e no passado) considerando diferentes cenários de mudança tecnológica e emissão de gases de efeito estufa. Cada grupo de pesquisa possui diferentes modelos e usa dados e parâmetros ligeiramente diferentes, de modo existe alguma variação entre as projeções futuras de cada um deles. Esses modelos são no geral chamados AOGCMs (sigla para Atmosphere-Oceanic coupled General Circulation Models) e você vai encontrar também siglas como CNRM, CCSM, COSMOS, GISS, MPI, MRI, MIROC, entre outras, referindo-se aos modelos criados por esses diferentes grupos de pesquisa, bem como a diferentes RCPs (Representative Concentration Pathways) referindo-se aos cenários mais “otimistas” (RCP 2.6) ou mais pessimistas (RCP 8.5) em termos de emissão de gases de efeito estufa. Mas, independentemente dessa incerteza e dessas variações, as diferenças são realmente pequenas e há um bom consenso sobre as tendências principais dessas mudanças climáticas que irão alterar drasticamente o futuro do planeta.
Nesse contexto, meu objetivo aqui é discutir rapidamente como essas mudanças no clima podem afetam a biodiversidade nos próximos anos e como nós, ecólogos e biogeógrafos, usamos e processamos essa informação. O ponto de partida para a maior parte dessas análises é definir os limites de tolerância de uma espécie, ou construir o que alguns chamam de “envelopes bioclimáticos”. Esses “envelopes” possuem alguma relação com um conceito complexo de “nicho ecológico”. A ideia dos limites de tolerância é estabelecer, por exemplo, em que faixa de temperatura uma espécie é capaz de sobreviver e reproduzir. Mas como definir esses limites? Podemos fazer experimentos em laboratório e tentar determinar esses extremos analisando a mortalidade ou o comportamento dos indivíduos. Mas isso só é possível se conseguirmos manter as espécies nessas condições experimentais, e não são muitas... O mais comum então é obter, em coleções zoológicas e botânicas e museus, dados sobre onde a espécie ocorre, registrar as condições ambientais nesses locais e, a partir daí, construir um “envelope bioclimático” em volta dos pontos, como aparece na Figura 1 abaixo. Para fins de ilustração, estamos usando apenas temperatura e precipitação como "eixos climáticos", mas certamente a sobrevivência e reprodução das espécies é afetada por muitas variáveis, de modo que essas análises são de fato "multidimensionais". O circulo azul na figura 1 define os limites do envelope que, no mapa à direta, aparecem delimitando a região mais azulada que não é ocupada pela espécie. Mas na verdade existem muitos métodos matemáticos e computacionais complexos para estabelecer esse "contorno" em torno dos pontos, que são usados portanto no que chamamos de Modelos de Nicho Ecológico (ENM, do inglês Ecological Niche Models; existem vários nomes para essas técnicas).
Um ponto interessante é que, uma vez que esse envelope é definido, é possível projetar os pontos “dentro” do envelope de volta no espaço geográfico, criando assim um mapa de “distribuição potencial” da espécie (por isso esses modelos de nicho também são comumente denominados SDMs, do inglês Species Distribution Models). Há, portanto, uma correspondência entre a posição dos pontos no espaço climático (o envelope) e o espaço geográfico. Esse princípio foi batizado pelos meus colegas Robert Colwell (atualmente na Universidade do Colorado) e Thiago Rangel (aqui na UFG) de “Dualidade de Hutchinson” (em homenagem ao grande ecólogo G. Evelyn Hutchinson, 1903-1991, que revisou e ampliou o conceito de nicho há mais de 50 anos) e publicado no Proceedings of National Academy of Sciences of USA (o PNAS), uma das revistas científicas mais importantes do mundo. Assim, os dados de ocorrência das espécies podem ser projetados no espaço ambiental, modelados e reprojetados de volta no espaço geográfico.
Mais interessante ainda, esse envelope passa a ser então um “modelo” de como as condições ambientais (climáticas) determinam a distribuição geográfica da espécie. Assim, se o clima muda e as regiões onde a espécie habita começam a ficar, por exemplo, mais quentes ou mais frias do que o tolerado pela espécie, então haverá uma mudança na distribuição da espécie. Vejam que estamos implicitamente assumindo que o envelope bioclimático não vai mudar muito rapidamente, o que chamamos de princípio da “conservação do nicho” (esse ponto vai ser importante depois...). Utilizando os modelos elaborados pelos climatólogos para o clima do futuro, podemos então "projetar" o envelope bioclimático da espécie e entender como vai ser sua distribuição esperada com as mudanças climáticas futuras (ou passadas; veja aqui uma revisão sobre assunto com aplicações para a extinção da fauna de mamíferos do Pleistoceno). Esse processo de modelagem é uma das áreas mais ativas da Ecologia e da Biogeografia hoje e se desenvolveu muito nos últimos 20-30 anos, e portanto existe uma enorme literatura técnica sobre isso. Para os iniciantes, recomendo fortemente o livro do meu colega Townsend Peterson (da Universidade do Kansas) e colaboradores, Geographical Niches and Species Distributions , e para os pesquisadores ou estudantes já interessados em aplicar esses modelos sugiro recente Habitat Suitability and Distribution Models, de Antoine Guisan, Wilfried Thuiller e Niklaus Zimmermann, que explora em mais detalhes as técnicas de implementação computacional dos métodos na plataforma computacional R).
Vamos fazer um rápido resumo das etapas desse processo de modelar o nicho e construir a distribuição geográfica de uma espécie, a partir de dados de distribuição geográfica do sapo “cururu” do gênero Rhinella, muito comum em toda a região centro-sudeste do Brasil (Rhinella diptycha). Podemos combinar os 532 registros de ocorrência que conseguimos para essa espécie em museus, coleções zoológicas e bases de dados internacionais (como o GBIF – Global Biodiversity Information Facilities) com dados climáticos e ambientais que foram gerados pelos modelos climatológicos (podemos usar, por exemplo, uma base organizada pelos meus colegas Levi Carina Terribile e Matheus Lima Ribeiro da Universidade Federal de Jatai, e colaboradores, o EcoClimate). Para combinar essas informações e criar o modelo do nicho usamos várias técnicas estatísticas e computacionais diferentes, algumas bastante complexas e envolvendo inteligência artificial. A partir do resultado de cada uma delas construímos um mapa da "distribuição potencial" da espécie, e esses vários mapas podem ser então combinamos (sobrepostos) de modo a chegamos à uma ideia de que locais são ambientalmente mais adequados para a espécie (cores mais vermelhas nos mapas abaixo) e onde os diferentes modelos convergem para prever a sua ocorrência. Essa é uma técnica muito utilizada para os modelos de nicho e que foi proposta inicialmente em biogeografia pelo meu colega Miguel Araújo, atualmente pesquisador no Museu Nacional de Ciências Naturais em Madri, denominada de ensemble forecasting, ainda em 2007. Uma vez definidos esses modelos, podemos agora usar o clima futuro e projetar a distribuição potencial nesses dados (no caso, usamos os modelos dos climatólogos para os anos 2080-2100). No mapa da distribuição futura podemos ver que o sapo cururu deve reduzir em muito suas populações e sua distribuição geográfica, que irá “colapsar” na direção noroeste – sudeste.
Esses modelos têm sido muito utilizados não só para avaliar o impacto das mudanças climáticas, mas para prever as novas ocorrência de uma espécie, preenchendo lacunas de informação geográfica, para entender processos de invasão biológica, para analisar a expansão potencial de doenças ou pragas agrícolas (pensem que podemos modelar, por exemplo, a distribuição de insetos vetores...), dentre outras. Além disso, podemos fazer esse processo de modelagem para várias espécies ao mesmo tempo e assim, avaliar de forma mais geral o impacto das mudanças climáticas sobre a biodiversidade com um todo. Vejam, por exemplo, a mudança na riqueza de espécies (ou seja, o número total de espécies que encontramos em um lugar) a partir dos modelos sobrepostos para 2780 espécies de anfíbios em todo o mundo (cerca de 30% do total de espécies do grupo) (Figura 3 abaixo).
Ao pensarmos nessas projeções para o futuro, de fato estamos pensando que vários processos ecológicos acontecem para permitir a ocupação das diferentes regiões, e de fato temos uma série de pressupostos para que isso aconteça. Ou seja, esses modelos se baseiam em ideias ou princípios que temos que assumir como “verdade” de antemão. Muito disso pode ser sintetizado no que chamamos de “diagrama BAM (acrônimo do inglês, Biotic, Abiotic and Movement; vejam a Figura 4 e um artigo de revisão geral sobre o meu tema do meu colega Joaquin Hortal, no Museu de Ciências Naturais de Madri). Quando aplicamos um modelo de nicho ecológico e projetamos esse envelope bioclimático no espaço, dizemos que a espécie vai ser encontrada nessas regiões, na verdade estamos modelando explicitamente apenas o que podemos chamar de componente abiótico (o componente A do diagrama BAM). Mas assumimos também que o componente biótico, ou seja, a interação da espécie modelada com as outras espécies também permita a ocupação geográfica. Por exemplo, se estamos modelando uma espécie de inseto que depende de uma planta para colocar os ovos, mesmo que um local possua condições climática adequadas para ela (o componente A) ela só vai pode existir onde a planta também existir (componente B). Por outro lado, a espécie de inseto não vai poder existir onde a planta exista se as condições climáticas forem inadequadas para ela (isso pode acontecer se os limites de tolerância das duas espécies forem diferentes). Assim, quando projetamos a distribuição da espécie, de fato estamos assumindo que essa área é, de fato, a sobreposição das possibilidades combinadas do componente B e do A. Além disso, quando pensamos, por exemplo, que no futuro outras regiões geográficas passarão a ser adequadas para espécie e projetamos a sua ocorrência lá, estamos assumindo que a espécie conseguirá chegar lá, e esse é o componente de movimentação (M). Então, dentro da síntese do diagrama BAM, a espécie de fato só vai ocorrer se as interações bióticas permitirem, se o clima for adequada e se ela conseguir colonizar essas áreas no futuro. Quando mostramos um mapa de distribuição potencial futura, como nas figuras anteriores, estamos na realidade assumindo que isso vai acontecer...
Na realidade, hoje podemos não simplesmente "assumir" esses componentes BAM como verdadeiros, mas tentar explicitamente modelá-los (na maioria das vezes modelamos apenas o componente A e os demais são assumidos como "verdadeiros" ou "plausíveis" em grandes escalas, como expliquei acima...). Por exemplo podemos usar simulações de processos demográficos de colonização para ver se será possível ocupar uma dada região que será adequada climaticamente daqui a alguns anos, considerando diversos parâmetros, tais como as taxas natalidade e mortalidade, bem como a probabilidade e distância de dispersão dos jovens e adultos a cada geração. Essa é uma abordagem comum em epidemiologia, por exemplo, para estudar a expansão geográfica de uma epidemia. No contexto de mudanças climáticas, modelar a dispersão hoje é de fato um problema, porque muitas das possíveis rotas de colonização das espécies são inadequadas pela própria ocupação humana; ou seja, temos uma interação entre os componentes B e M, pensando no Homo sapiens como uma espécie que interage negativamente com a nossa espécie de interesse, ou entre A e M, pensando que o ambiente que era “natural” passou a ser inadequado (antropizado), como uma cidade ou uma pastagem que existe hoje onde antes era uma floresta.
Esse último ponto ilustra bem a ideia de que hoje estamos avançando no sentido de combinar em uma mesma análise os modelos de nicho e os modelos populacionais que são estudados há muito tempo na Ecologia. Mas existe uma questão bem interessante e mais geral aqui....Os ecólogos usualmente “esquecem” que o nicho ecológico pode evoluir por pressão das próprias mudanças no ambiente! De fato, a mudança no ambiente e do clima parece ser um dos processos mais importantes para desencadear a evolução da diversidade biológica, ao longo do tempo geológico (vamos discutir essa questão mais histórica e evolutiva em outra postagem, mas por enquanto vejam aqui uma síntese do nosso artigo publicado na Science em 2018). Na verdade, a ausência de evolução é um pressuposto dos modelos de nicho que mencionei brevemente, a "conservação de nicho". Esse pressuposto vem da ideia de que os processos evolutivos são muito lentos e graduais e, como estamos pensando em uma escala de tempo relativamente curta (algumas poucas gerações), podemos praticamente ignorar essa dinâmica evolutiva, que seria de fato pouco provável no geral. Entretanto, a intensidade da seleção natural e de outros fatores evolutivos depende de muitos fatores e podemos incorporar isso aos modelos. Na verdade, dependendo do tipo de organismo que estejamos analisando e da intensidade das pressões ambientais, mesmo algumas poucas gerações podem ser suficientes para que haja adaptação genética às novas condições (e não a extinção, como vimos no caso das populações à noroeste na distribuição da Rhinella). Assim, a mudança climática pode permitir a adaptação da espécie que consegue então persistir no local que se tornou inadequado pelas características originais da espécie, e chamamos esse processo de "resgate evolutivo".
Esse processo de resgate evolutivo pode ser entendido da seguinte forma. Vamos pensar que uma população de uma espécie qualquer está em um local que sofre uma grande mudança no ambiente (por exemplo, a temperatura começa a aumentar e passa a haver verões muito mais quentes). A população, que estava em equilíbrio antes (ou seja, tinha as mesmas taxas de natalidade e mortalidade - população constante ao longo do tempo), passa a diminuir de tamanho porque essa mudança do clima aumentou a mortalidade. Assim, a população irá inevitavelmente se extinguir, seguindo a trajetória vermelha na figura 5 abaixo.
Entretanto, e se alguns dos indivíduos que nascem conseguirem viver e reproduzir um pouco melhor do que os outros nesse novo ambiente mais quente? Eles podem ter uma ligeira variação em alguma enzima associada ao controle de temperatura ou uma adaptação comportamental que aumente sua chance de sobreviver em um verão mais quente. E se eles deixarem descendentes que sejam semelhantes a eles nessa capacidade de sobreviver no novo clima? A cada geração, a proporção desses indivíduos melhor adaptados irá aumentar e, com o passar do tempo, a mortalidade não será tão alta quanto era antes. Na realidade, a cada geração a população está ficando melhor adaptada ao novo ambiente e ela pode então voltar ao equilíbrio (a trajetória azul). Se isso acontece, dizemos que houve um resgate evolutivo. Matematicamente, é uma questão de equilibrar os dois processos, ou seja, será que a perda total de indivíduos ocorrerá antes da possibilidade de adaptação ao novo ambiente? Vejam a figura 6 abaixo para visualizar essas duas trajetórias possíveis (extinção ou resgate).
Obviamente a ideia apresentada no parágrafo acima não é nova...De fato, o que estamos descrevendo é o principio de seleção natural proposto por Charles Darwin e Russel Wallace em 1858 (e apresentado em detalhes no famoso livro de Darwin, “A Origem das Espécies”, de 1859, que lançou as bases da Biologia Evolutiva moderna). A teoria da seleção natural de Darwin-Wallace foi proposta como um modelo verbal-conceitual, mas a partir do início do século XX, principalmente com os trabalhos de Ronald Fisher, Sewall Wright e J. B. S. Haldane, a teoria foi formalizada e matematizada, permitindo analises e testes mais efetivos de sua capacidade de desencadear processos de mudança nos organismos. Mesmo assim, só a partir dos anos 70-80 do século XX é que começaram a aparecer mais trabalhos mostrando a intensidade da seleção natural em populações naturais (antes o mais comum eram experimentos em laboratório ou condições controladas). Os modelos teóricos mais novos, propostos a partir de 1995, conseguem integrar esses modelos clássicos da genética de populações e evolutiva com processos mais dinâmicos de mudança no ambiente, que têm sido o foco do trabalho de ecólogos e biogeógrafos.
Vamos agora ilustrar melhor como o resgate evolutivo pode ser pensado no contexto que discutimos anteriormente, em termos de modelos de nicho e mudança climática. Vamos voltar para o nosso exemplo da Rhinella. Pelos modelos de nicho, vemos que a espécie tenderia a se extinguir na maior parte da sua região noroeste da sua distribuição geográfica. Mas seria possível ela se adaptar ali, com o clima mais quente? Vamos focar na temperatura média anual nessa região de ocorrência da espécie, que deve aumentar de 23 graus para quase 28 graus nos próximos 50 anos. Fazendo uma série de análises computacionais, com base em modelos matemáticos mais complexos que envolvem uma série de fatores, mostramos que a probabilidade de adaptação, de fato, é baixa. Fazemos isso calculando primeiro a taxa de mudança ambiental na área de distribuição da espécie, utilizando uma estatística chamada Haldane (H) (em homenagem ao grande geneticista J. B. S. Haldane, 1892-1964, um dos fundadores da síntese evolutiva moderna).
A estatística H é calculada pela diferença entre as medidas hoje e no futuro (por exemplo, se a temperatura média hoje na distribuição da espécie é de 23 graus e no futuro será de 28 graus), padronizada pela variação na distribuição atual (o desvio-padrão da temperatura ao longo da distribuição geográfica, aproximadamente igual a 2.0) e pelo tempo em número de gerações (nesse caso de mudanças climática, estamos pensando em talvez 50 gerações até 2080-2010). Com base nesses números chegamos assim a um H igual a 0,05. Mas esse valor é alto ou baixo? Ai é que entram os modelos teóricos da genética evolutiva que, com base em uma série de parâmetros demográficos e genéticos das populações, permitem calcular o que chamamos de taxa máxima de evolução sustentável (MSER, do inglês Maximum Sustainable Evolutionary Rate), que está na mesma escala de H (ou seja, diferença padronizada pela variação e pelo tempo). Esse MSER nos diz que velocidade máxima de mudança que seria possível para esses parâmetros populacionais. Desse modo, se a mudança esperada ou observada que medimos com o H é maior do que o MSER, isso sugere que essa mudança é muito mais alta do que o potencial adaptativo da população, sendo assim mais plausível que essa população se extinga (trajetória vermelha, acima) do que seja resgatada evolutivamente (trajetória azul, acima). Em geral, um valor de referência para o MSER tem sido 0,1 Haldanes, mas de fato esse valor crítico depende de vários parâmetros populacionais.
Como não sabemos bem esses parâmetros populacionais, podemos usar procedimentos computacionais para calcular uma distribuição estatística de valores de MSER, assumindo faixas mais ou menos conhecidas de alguns dos parâmetros (por exemplo, a herdabilidade, ou quantidade relativa de variação genética, da temperatura ideal individual varia entre 20% e 40%). Quando comparamos nosso valor calculado de H (igual a 0.05 neste caso) com essa distribuição estatística, chegamos a uma probabilidade de resgate evolutivo. Vejam na figura 7 abaixo que a distribuição dos valores de MSER varia de 0,02 a pouco mais de 0,06, com um pico em torno de 0,035. No caso, apenas 10% dos 5000 valores de MSER simulados são maiores do que o H esperado de 0.05, e esta é portanto a chance de ocorrer um resgate evolutivo (10%). Repetimos esse procedimento para as diferentes regiões de ocorrência da área da espécie e tentamos ver se há algum padrão espacial nessa probabilidade (e infelizmente não há grandes alterações em termos de resultados, e apenas regiões já bem próximas à área predita para a espécie no futuro, no sudeste do Brasil, teriam uma probabilidade de resgate um pouco maior). Existem outros modelos que fornecem previsões um pouco mais otimistas em termos de evolução, quando incorporamos uma maior plasticidade do fenótipo, ou seja, a determinação dos limites de tolerância seria menos determinada pelo sistema genético da espécie e capaz de se ajustar (fisiologicamente) às mudanças no ambiente.
Além disso, podemos simular de forma mais realista realmente a dinâmica dos indivíduos em uma população, nascendo, se reproduzindo e morrendo, se adaptando à medida que o ambiente muda. Vejam no rápido filme abaixo um exemplo do que chamamos de “Simulação Orientada ao Indivíduo” (Individual-Based Model). A ideia é construir uma população virtual e, para cada individuo, temos um valor de temperatura ideal que seria determinado pelos seus genes, com uma média igual a 23 graus. Essa distribuição de valores de temperatura aparece no histograma no quadro superior à esquerda, com muitos indivíduos e muita variação. Entretanto, à medida que o tempo passa essa figura vai se deslocando para a direita porque o ambiente se torna mais quente (notem a barra vertical se movendo). A população está sofrendo o processo de seleção natural que descrevi acima, e vai portanto acompanhar a mudança no ambiente a cada passo. No início, a média da população (o centro do histograma) está sobre a barra, pois assumimos que ela está em equilíbrio e adaptada. Mas, à medida que o tempo passa, a barra avança mais rápido que o histograma, e a população começa a ficar menor e a perder variabilidade genética (vejam a figura superior à direita). O que estamos vendo é que a população está “perdendo a corrida” para o ambiente! Estamos vendo a seleção natural "em ação", embora o processo adaptativo esteja de fato "falhando". Voltando para o que expliquei antes, isso ocorre porque o MSER dessa população é de fato muito baixo em relação à velocidade com que o ambiente muda. No final da simulação, após 100 gerações, a população ainda existe, mas ela não está mais tão bem adaptada (veja o “fitness” na figura do quadrante inferior direito) e já sendo bastante reduzida em tamanho e em variabilidade genética. A longo prazo, essa população vai inevitavelmente se extinguir...Nesse caso, o processo de adaptação não é suficiente para resgatar a população da extinção.
O que significam todos esses resultados? Bem, o primeiro ponto importante é que, embora a evolução possa ocorrer rapidamente, é pouco provável que em cerca de 40-50 gerações a maior parte das espécies consiga se adaptar (geneticamente) ao aumento de temperatura. Desse modo, suas distribuições geográficas devem mesmo encolher drasticamente ou elas devem mudar de local. Em muitos casos isso pode levar à extinção das espécies, inclusive pelo problema da dificuldade de dispersão que já discutimos. No caso que apresentei acima da Rhinella, pode haver alguma adaptação e talvez o colapso na distribuição da espécie não seja tão acentuado quanto previsto pelos modelos de nicho (mas não muito...). Um trabalho recente de Viktoriia Radchuk e colaboradores, baseado principalmente em uma revisão do que se conhece em termos de adaptação climática em aves, corrobora essas conclusões e mostra que processos adaptativos não serão muito comuns no futuro próximo. Mas de fato ainda é cedo para decidir se a seleção natural poderá salvar muitas espécies da extinção causada pelo ocupação humana no planeta. Não podemos esquecer que a mudança climática é apenas um dos problemas que a biodiversidade enfrenta e que essa ocupação humana tem vários outros impactos, especialmente a destruição direta dos ambientes naturais.
Em um contexto mais teórico e conceitual, a análise integrada de padrões ecológicos e evolutivos para entender a resposta à mudança climática ainda está na infância. É preciso entender melhor as bases genéticas dos processos fisiológicos que determinam a tolerância da espécie e coletar mais dados nas populações naturais, de modo que os parâmetros populacionais possam ser determinados (e estamos falando de coisas relativamente simples, como a taxa de crescimento populacional de uma espécie!). De qualquer modo, há um grande potencial de integração entre diferentes áreas do conhecimento para avançar na solução de problemas e isso é, sem dúvida, um dos aspectos mais fascinantes e estimulantes da ciência moderna.
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Para mais detalhes sobre os nossos projetos de pesquisa sobre resgate evolutivo, desenvolvidos no contexto do nosso Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade (EECBio), vejam o nosso artigo de revisão integrando ENMs e modelos de genética evolutiva publicado recentemente na Ecography e um trabalho mostrando as perspectivas de aplicação dos modelos populacionais de resgate evolutivo publicado na Perspectives in Ecology and Environment, revista oficial da ABECO (Associação Brasileira de Ciência Ecológica & Conservação).
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