Na semana em que testemunhamos uma comoção global com as notícias sobre o assassinato do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, estamos envolvidos em uma série de discussões, claro, sobre a destruição da Amazônia por uma longa série de ações de desmatamento, pesca e garimpo ilegais. Esses problemas têm sido considerados "crônicos" na região, mas não é realmente possível ignorar o descaso do atual Governo Bolsonaro para com eles. Na realidade descaso é um eufemismo, o que temos visto desde 2019 é um incentivo tácito, às vezes explícito, a muitas dessas ações. Assistimos a um desmonte contínuo da infraestrutura e da possibilidade de ação do pessoal do IBAMA e do ICMBIO, isso sem falar nos muitos problemas na FUNAI, aliás órgão do qual o indigenista Bruno Pereira foi exonerado justamente por fazer seu trabalho e denunciar e atuar contra muitas dessas ilegalidades. Os problemas sérios enfrentados por esse último órgão nos remetem a outra questão bastante relacionada, que é a questão da proteção dos povos indígenas. Esses povos têm sido colocados, por exemplo, como “guardiões da floresta”. Só para resumir, diz a letra da música (fantástica...) de Nando Reais lançada ano passado, na parte cantada por Gilberto Gil e Milton Nascimento.
“...Dos povos da floresta sob pressão,
O indígena seu grande guardião,
Em comunhão com ela há milênios,
Nos últimos e trágicos decênios,
Vem vendo a mata sendo ameaçada
E cada terra deles atacada por leva de peões de poderosos,
Com planos de riqueza horrorosos...”
Essa parte da letra – e claro, vejam todo o resto (o videoclipe encontra-se no final da postagem) - resume bem a percepção de pelo menos parte da sociedade sobre a questão. Os indígenas vivem em harmonia com a floresta e são seus guardiões, estando sob pressão dos poderosos gananciosos que querem suas terras...Não dá para não lembrar também de dois ícones da nossa indústria cinematográfica (Hollywoodiana...eu sei, sorry, mas é a vida!), “Dança com Lobos” e a sua versão alienígena mais recente, “Avatar”! Lembrei ainda da época do colégio, ainda que vagamente (confesso), de toda a literatura indigenista do período romântico brasileiro, epitomizada por romances como “O Guarani”, “Iracema” e “Ubirajara” de José de Alencar no século XIX (e certamente muitos outros). Claro, outra parte da sociedade (includindo os bolsominions...) imaginam os indígenas como "selvagens" e "vagabundos" que são privilegiados por possuírem tantas terras...
Sem dúvida nenhuma os “povos da floresta” têm sido, em todo o mundo, exterminados à medida que houve principalmente a expansão da civilização europeia a partir dos séculos XV e XVI. Vejam que esse extermínio inclui não só populações mais tradicionais e de caçadores e coletores, ou sociedades tribais com agricultura itinerante, mas também grandes impérios incluindo os Incas e os Astecas, para mencionarmos apenas os exemplos mais conhecidos aqui na América do Sul. Na verdade a extinção dessas culturas, seja por aculturação ou genocídio, está levando a uma onda paralela de extinções em massa, e um bom exemplo disso é o desaparecimento das línguas.
Entretanto, a separação entre o Homem em “estado natural” e a “civilização” sempre foi algo difícil de estabelecer e de discutir. Como biólogo, essa discussão sempre me intrigou e em vários momentos me incomodou um pouco. Ou seja, dado que somos uma espécie de primata de grande porte que evoluiu na África e se espalhou pelo mundo há 70 mil anos mais ou menos, como discutimos em mais detalhes na última postagem, uma primeira questão interessante é tentar pensar em quando deixamos de viver de forma “natural” e passamos a ser "outra coisa". Afinal, quando saímos da África já dominávamos o fogo (há pelo menos uns 500 mil anos...), já tínhamos tecnologia para avançar, por exemplo, por regiões mais áridas e frias do planeta usando roupas e sapatos, driblando culturalmente nossas limitações fisiológicas. À essa altura não éramos mais um primata indefeso vagando pelas savanas africanas temendo os grandes predadores. Já tínhamos armas relativamente sofisticadas e capazes de abater presas muito maiores do que as esperadas para um mamífero caçador do nosso porte. Isso inclusive levou à discussão de que o H. sapiens teria exterminado boa parte da megafauna do final do Quaternário, dentro do modelo de “sobrematança” elaborado por Paul Martin ainda nos anos de 1970. Essa é uma discussão técnica mais complexa e em muitos casos é difícil separar os efeitos das mudanças no clima dos efeitos da caça sobre a extinção das espécies. Mas, por hora, a questão é pensar em quando passamos a ser destruidores do meio ambiente e uma ameaça concreta para as outras espécies e para todo o Planeta? Como chegamos a esse ponto, será que podemos traçar essa linha ao longo da nossa história? E como ficam as populações indígenas atuais nessa discussão?
Como ecólogo, a minha primeira ideia é pensar em nossa população e sua densidade, e em como esses números afetariam outras espécies em termos de utilização e disponibilidade de recursos. À medida que H. sapiens avançou no planeta, encontramos muitas outras espécies e começamos a interagir com elas. Claro, temos hoje quase 8 bilhões de seres humanos ocupando o planeta, e não há duvida que com esses números temos problemas de todo tipo. Mas e se voltamos no tempo, digamos, entre 12 e 15 mil atrás, quando já havíamos ocupado praticamente todos os continentes, incluindo a América, mas ainda antes da origem da agricultura, do sedentarismo e das primeiras aglomerações urbanas? É possível estimar esse número usando modelos demográficos, mas uma outra ideia mais fácil que já pode nos dar uma pista da situação é entender padrões em grandes escalas e de forma comparativa com outras espécies. Essa é uma área, abordagem, ou perspectiva que chamamos de Macroecologia, que começou a se desenvolver mais efetivamente a partir do final dos anos de 1980 e com a qual tenho trabalhado há muito tempo. Mais recentemente, uma subárea dentro da Macroecologia tem se dedicado a tentar entender os padrões em nossa própria espécie, a chamada “Macroecologia Humana”, com fortes interações com a Geografia, Economia e Sociologia, claro. Tivemos inclusive um excelente workshop sobre esse tema no final de 2018, coordenado pelo meu amigo Ricardo Dobrovolski, docente da UFBA, no contexto do nosso Instituto Nacional de Ciência & Tecnologia (INCT) em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade (aliás, vejam o excelente texto de Ricardo que acabou de ser publicado no Monthly Review sobre a lacuna existente entre o conhecimento científico e disponível e sua aplicação na solução dos nossos problemas, especialmente ambientais, que tem relação com muito do que vamos discutir posteriormente em relação à questão da devastação ambiental pela nossa civilização industrial e a expansão do capitalismo).
Workshop sobre "Macroecologia Humana", realizado no INCT em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade entre 29 e 31 de outubro de 2018!
Temos, em Macroecologia, uma relação negativa entre o tamanho do corpo médio das espécies e sua densidade populacional que tem sido muito estudada e discutida. Ou seja, espécies de grande porte tendem a existir em menores densidades populacionais do que espécies de grande porte; por exemplo, em uma área qualquer vamos encontrar muito mais indivíduos de uma espécie de roedor do que de onça-pintada. Além disso, claro, existem também efeitos da dieta e especialização ecológica, o que já sugere que a densidade populacional em relação ao tamanho do corpo envolve questões ligadas a como as espécies usam a energia nos ecossistemas. Existem alguns modelos teóricos que nos ajudam a entender essa relação a partir de vários mecanismos ecológicos e evolutivos que estariam gerando essa relação e os leitores mais interessados podem consultar o excelente trabalho recente de Philip Stephen e colaboradores publicado em 2019 na importante revista científica Ecology Letters (um dos coautores do artigo é o meu colega da UFRJ Marcus Vieira, aliás!!!). Entretanto, no nosso caso o interesse é estabelecer a posição relativa de Homo sapiens nesse espaço e, a partir daí, tentar entender o seu impacto potencial no resto do ecossistema. Ou seja, qual seria a densidade populacional esperada para a nossa espécie nesse contexto comparativo?
Podemos tentar responder à essa questão utilizando dados da base de dados Pantheria, que contém muitos dados sobre as milhares de espécies de mamíferos, e associar os padrões com informações sobre as densidades em populações humanas. Claro, não temos dados das populações ancestrais de 10-12 mil anos atrás, mas podemos fazer estimativas e, mais fácil, pensar em uma equivalência funcional destas com as populações atuais de caçadores-coletores (embora estas já possam ter suas abundâncias em parte reduzidas por efeitos antrópicos). Os dados etnográficos disponíveis mostram densidades entre 0,02 e 3 indivíduos por quilômetro quadrado, e se colocarmos um peso médio de 60 kg para a espécie humana, vemos na Figura a seguir que a densidade das populações de caçadores estaria um pouco abaixo da densidade média esperada para os mamíferos em geral, mas bem próxima à média esperada para espécies de mamíferos carnívoros do mesmo porte (pouco menos do que 1 individuo por km2). Existe muita variação vertical nessa linha, mesmo para os caçadores-coletores, que pode ser explicada também pelo modo de subsistência (ou seja, se aquela sociedade usa mais ou menos recursos animais e com diferentes abundâncias), além da própria produtividade total do ambiente, que por sua vez está ligada à disponibilidade de água e energia.
Relação entre densidade populacional e tamanho corpóreo para mamíferos, revelando uma relação linear negativa em escala logaritmica. As linhas tracejadas indicam os limites teoricos propostos por Stephens et al. (2019). A linha vermelha vertical indica os valores de abundância observados para a populações humanas, considerando um valor médio global de 60 kg para H. sapiens (ver texto para detalhes).
Então, o primeiro ponto importante é que a nossa densidade populacional estimada “ancestral” não difere muito da expectativa para as demais espécies de mamíferos, e de fato está dentro do esperado para populações de mamíferos carnívoros e predadores do nosso porte. O outro ponto, entretanto, é que à medida que começamos a ver outros tipos de sociedades urbanas e maior desenvolvimento de agricultura, essa densidade começa a aumentar e, para as populações urbanas, está próxima dos limites máximos para uma espécie do nosso porte! E não se deixem enganar pela forma da relação, prestem atenção que os dois eixos do gráfico acima estão em escala logarítmica (o que permite ajustar um modelo linear à relação). Então, estamos falando de populações urbanas com até 8000 indivíduos/km2, ou seja, mais de 5000 vezes maior do que a densidade mediana nas populações de caçadores coletores! A densidade média global estaria por volta de 200-250 indivíduos/km2, um pouco abaixo dos limites teóricos definidos por Philip Stephen e colaboradores (~470 indivíduos/km2), mas bem próxima ao máximo observado para uma espécie do nosso porte. Mas essa média, obtida dividindo simplesmente população por área, não deve ser um bom descritor da distribuição das densidades no mundo, já que hoje já mais do que 50% da população mundial já vive em cidades e a população humana não se distribui de forma aleatória ou uniforme sobre os continentes.
Então, essa análise macroecológica bem simples sugere que as populações de caçadores-coletores viviam, até bem pouco tempo atrás, em “equilíbrio” com a natureza? Sim, faz sentido sob um ponto de vista comparativo em relação a outras espécies de mamíferos carnívoros e predadores. Mas quando falamos em equilíbrio nesse caso não estamos pensando em uma visão “romântica”, entendemos simplesmente que a densidade populacional de uma espécie é ecologicamente compatível com os recursos disponíveis. Essa compatibilidade, por sua vez, refere-se apenas ao fato de que, com esses recursos disponíveis, as taxas de natalidade e mortalidade são similares, de modo que a população pode persistir e se manter próximo ao ponto de equilíbrio, que no caso de modelos populacionais simples é o que chamamos de “capacidade de suporte” ou K nas equações logísticas (as curvas em forma de “S”, onde um crescimento rápido inicial, depois uma desaceleração desse crescimento e uma estabilidade ao final). Existem muitos modelos demográficos interessantes para as populações humanas, mas vamos voltar a eles em outros momentos! Na realidade, em resumo, à medida que as populações humanas começam a ficar mais densas e desenvolvem novas tecnologias, esse valor de K começa a subir e isso significa que, em termos absolutos, o consumo de energia e recursos aumenta. E claro que isso significa mais impacto sobre o ecossistema e uma monopolização por H. sapiens dos recursos naturais e da energia disponível para outras espécies.
Mas vejam essa conclusão geral não implica em ausência de impactos mais extensos de populações humanas de caçadores-coletores sobre o ambiente ao seu redor. Entretanto, quando isso acontece, nem sempre é possível reverter a situação e ai, nesse caso, a tendência do K é inversa, ou seja, a própria população humana começa a declinar e pode se extinguir localmente. Na verdade, temos uma série de exemplos ao longo da nossa história de colapsos populacionais em sociedades que não conseguiram manter esse equilíbrio com os recursos disponíveis, como relatado no excelente “Colapso” de Jared Diamond. Ele descreve esses vários exemplos e, claro, tenta expandir o raciocínio e mostrar como a população humana pode (deve?) estar se dirigindo para um colapso global sem que, de fato, ela coletivamente esteja consciente disso (os cientistas e ativistas percebem, mas a sociedade “como um todo” não está necessariamente prestando atenção, por diversas razões...).
Essa visão de equilíbrio e harmonia com a Natureza ecoa a ideia do “bom selvagem” e nos leva a uma visão paradisíaca do mundo dos nossos antepassados de 10 mil anos atrás. Esse é um dos temas clássicos dentro da filosofia política e da sociologia, epitomizado pelo contraste entre a visão de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Thomas Hobbes (1588 e 1679). Resumindo (talvez excessivamente...), para os seguidores de Rousseau o Homem é intrinsecamente “bom”, e a organização do Estado, com suas leis e instituições, e inclusive a ideia da propriedade privada, corrompe essa natureza e leva a todos os problemas que conhecemos (e não podemos deixar de associar isso com a ideia de “expulsão do paraíso”). Por outro lado, a visão dos seguidores de Hobbes é exatamente oposta, o Estado político em seu sentido moderno é importante justamente para conter a natureza destruidora do Homem e resgatá-lo da existência brutal dos “selvagens” (não que estes seja “mau”, simplesmente não conseguem viver em sociedade grandes e mais complexas que se desenvolveram posteriormente...). Claro, há muito mais discussões para além dessa simples dicotomia, como discutido no excelente livro recente de David Graeber e David Wengrow, “The Dawn of Everything” (e um ponto muito, muito interessante é que eles começam discutindo como a influência dos indígenas do Canadá, por meio dos relatos dos missionários e jesuítas, gerou um discussão e um questionamento dos valores da sociedade francesa da época, o que, em última instância, levou ao desenvolvimento das ideias revolucionárias do iluminismo e da revolução francesa! Uau, isso muda muita coisa, mas certamente é um assunto para outra postagem!).
Apesar da falsa dicotomia, que claramente não se sustenta em uma visão não-romântica, mais ecológica e biológica das relações entre os organismos na natureza, ainda assim há pontos interessantes no contraste Rousseau-Hobbes. Graeber e Wengrow discutem que, no final, esses extremos se tornam obviamente ligados às ideologias existentes e rapidamente os seguidores de Rousseau se alinham com uma visão política mais “à esquerda”, enquanto os de Hobbes seriam mais “à direta” e mais conservadores, como dizemos hoje em dia (mas notem que esses termos para os espectros políticos não existem na época e, de fato, Rousseau era um conservador...).
Não defendo, como biólogo, essas visões mais românticas e idílicas dos povos indígenas vivendo “em harmonia com a natureza”, em um paraíso que nos remete inclusive ao mito bíblico do Jardim do Éden e de como o Homem (por culpa de Eva, diga-se de passagem...) foi expulso dele. Na realidade alguns dos meus trabalhos de pesquisa, junto com vários colegas, mostram que o impacto das populações de caçadores-coletores humanos avançando sobre o mundo pode ter sido sim algo devastador para muitas das espécies, especialmente alguns mamíferos e aves de grande porte, embora especialmente para aquelas que estavam já em colapso por efeitos de mudança climática ou vivendo em ambientes insulares com distribuições geográficas restritas. Mas isso certamente não significa que eles eram “maus”, isso não faz o menor sentido. Estamos falando de seres humanos, com suas virtudes e seus defeitos, usando suas habilidades, sejam elas biologicamente intrínsecas ou culturalmente elaboradores, para enfrentando os desafios do dia a dia como qualquer outra espécie, em termos de sobrevivência. Mais importante, a estruturação social não levaria a que eles sejam “bons” em relação aos impactos sobre a natureza na região em que vivem (nesse sentido de fato a história nos mostra que o efeito fui justamente o contrário, por causa do aumento da densidade populacional!). Isso sem nem falar do próprio impacto da civilização industrial e tecnológica moderna, que é milhares de vez maior, como veremos a seguir...
Mas, mesmo que essa seja a nossa compreensão como biólogos, se nos prendermos a aspectos puramente “científicos” e quisermos avaliar a questão de forma “objetiva” essa questão, como alguns acreditam, temos que estar pelo menos cientes de que corremos alguns riscos, como discutimos na postagem anterior em relação ao racismo (i.e., ao dizer que não existem raças biologicamente, corremos o risco de que pessoas comecem a dizer que, sendo assim, também não existe racismo...). Se dizemos, por exemplo, que o conceito do “bom selvagem” é realmente um mito e que as populações indígenas estão sim explorando (e eventualmente sobre-explorando) os recursos naturais e podem levar algumas espécies à extinção, será que isso não seria uma justificativa para grandes corporações pressionarem os políticos pelo fim de políticas públicas de proteção às terras indígenas? Afinal, seria melhor que usássemos tudo isso para o nosso bem comum como civilização global...Deixaria de ser uma questão simplesmente de explorar ou não alguns recursos, e passaria a estar ligada também à quem tem esse direto de explorar. Portanto, não surpreendente que haja uma enorme pressão para utilizar as terras indígenas e se apropriar delas, como está ilustrado na discussão ridícula sobre o chamado “marco temporal”, proposto pela chamada “bancada ruralista” do Congresso Nacional e que diz respeito à uma ação no STF que defende que os povos indígenas só poderiam reivindicar terras onde já “se encontravam” em 5 de outubro de 1988, dia no qual entrou em vigor a Constituição Brasileira. O uso que se há de fazer dessas terras é altamente questionável, claro, basta vermos quem está propondo isso...
Mesmo que em densidades mais altas populações tradicionais e indígenas possam eventualmente ter causado problemas no passado (e essa é justamente a discussão da extinção da megafauna do Quaternário tardio), essa certamente não é a situação atual, inclusive porque suas populações foram em grande parte exterminadas. Mais importante, de qualquer modo ela seria uma exploração de subsistência, totalmente diferente do que vemos quando uma população “civilizada” começa a extrair recursos naturais, por várias razões (vejam a excelente revisão de David Tilman, um dos mais influentes ecólogos da atualidade, publicada agora em 2022 no Journal of Ecology). Primeiro, o alcance dessa exploração no início do século XXI não é local, ou mesmo regional, ele é global. Os recursos que são extraídos da Amazônia ou das florestas tropicais de todo o mundo, as terras convertidas de floresta ou savanas para agricultura, são usadas para subsidiar enormes agregados urbanos a milhares de quilômetros de distância, em uma rede extremamente complexa de produtos que, direta ou indiretamente, chegam às grandes cidades. Em segundo lugar, isso nem sempre está ligado (para não dizer quase nunca, sendo um pouco mais pessimista...) realmente à subsistência das populações, mas sim a interesses criados por um modelo econômico capitalista extremamente agressivo, uma economia de mercado com uma série de sistemas de feedbacks positivos para aumentar a nossa “necessidade” por recursos. As análises em macroecologia humana mostram, por exemplo, que o nosso metabolismo basal (em repouso) é de ~120W, mas a nossa demanda energética passou de pouco mais de 300W em média nas populações de caçadores coletores para algo como 10000W nas populações urbanas dos países desenvolvidos (esse excesso de energia que usamos vem, em última instância, de apropriação e concentração de energia nos sistemas naturais e/ou extração de combustíveis fósseis). Uma outra métrica mais conhecida em função justamente da nossa necessidade de controlar e melhorar nossa dieta está no nosso consumo diário de calorias. Passamos de algo em torno de 1500-2000 kcal/dia, que seria o adequado para sobrevivência saudável, para algo como quase 9000 kcal/dia nos países industrializados...Ao mesmo tempo, estamos cansados de saber que a distribuição de recursos e alimentos está longe de ser equitativa, e ao mesmo tempo em que alguns consumem 9000 kcal/dia, milhares morrem de fome...
Paradoxal? Realmente, tem muita coisa errada e não há recurso que chegue para alimentar (literalmente) todo esse consumo. Como vamos equalizar tudo isso em um planeta com 8 bilhões de pessoas e ainda crescendo? Alguns vão dizer que é justamente por isso que precisamos de mais terras e não podemos nos dar ao luxo de manter terras indígenas com populações vivendo tradicionalmente em baixas densidades. Mas o fato é que, de qualquer modo, não podemos usar toda a terra e destruir completamente os sistemas naturais, temos que dar outro jeito! Sabemos disso...Sim? Na verdade, sempre falamos, em Biologia da Conservação, que as terras ocupadas por populações tradicionais em todo o mundo são importantes componentes do sistema de unidades de conservação porque, no final, essas áreas terminam permitindo também a conservação de diversas espécies e seus ecossistemas, além de garantirem a subsistências das populações indígenas e sua cultura (e isso é MUITO importante na Amazônia e no Brasil, em particular). Embora isso pressuponha a questão do equilíbrio demográfico humano em densidades relativamente baixas, é um componente sinérgico da luta para conservação da biodiversidade em um contexto mais amplo...
Não quero dar uma impressão de uma visão “Malthusiana” ingênua, mas claro que a solução do problema não passa por aumentar a área ocupada para a produção de alimentos em detrimento de terras indígenas ou áreas para a conservação dos ecossistemas naturais, mas sim por questões de avanço tecnológico, educacional e mudança no modelo econômico vigente (de novo, vejam o texto do Ricardo no Monthly Review). Essa questão está também relacionada com toda a discussão sobre a tão discutida “tragédia dos comuns”, que ficou famosa a partir do artigo de Garrett Hardin na Science em 1968 e que merece, certamente, uma discussão à parte no contexto ambiental (inclusive por causa de uma série de problemas, vejam de antemão esse ensaio de Mildenberger na Scientific American). Mas vamos discutir posteriormente essa dinâmica que vamos chamar de Malthusiana-Darwiniana na utilização dos recursos, que é também muito interessante...
Concluindo, mesmo que biologicamente, como tenho insistido, sejamos “apenas mais uma espécie única” e não devamos nos deixar levar necessariamente pelo romantismo e por visões ingênuas do funcionamento dos ecossistemas naturais que incluam o Homem, não devemos por outro lado esquecer que certamente há fortes interesses econômicos e políticos envolvidos nessa discussão. Os povos indígenas e tradicionais merecem respeito e uma atenção especial, dadas as ameaças existentes, dentro dos princípios dos direitos humanos e valores que adotamos hoje nas nossas sociedades democráticas do século XXI. Isso sem falar que temos que reconhecer e lidar com um enorme passivo histórico gerado nos últimos 500 anos ou mais...Já discutimos várias vezes aqui no “Ciência, Universidade e outras Ideias” que a dinâmica dos grandes interesses econômicos e “de mercado” está baseada não na persistência da civilização e da natureza em longo prazo, apenas nos próprios interesses imediatistas daqueles que os comandam. Já sabemos, pelo histórico recente do negacionismo, que muito facilmente essas pessoas podem se apropriar de forma distorcida e desonesta dessas discussões científicas para alimentar, como sempre, a ganância e o egoísmo a qualquer preço. Isso inclui o assassinato de defensores da preservação da natureza e dos povos indígenas, como Bruno e Dom (e tantos outros anteriormente). Nesse sentido, independentemente de qualquer coisa, é melhor assumirmos nossos valores e ficarmos mesmo do lado de Rousseau...
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