Na postagem anterior discutimos de forma ampla os cursos de pós-graduação, especialmente os programas de Mestrado e Doutorado, e um pouco das atividades desenvolvidas pelos estudantes nesses programas. Estamos falando de cursos formais e regulares, com disciplinas, coordenação e secretaria, bolsas de estudo, prazos para concluir os trabalhos, avaliação dos programas pela CAPES. Todo esse sistema de pós-graduação que está bastante consolidado hoje, entretanto, é relativamente recente (digo, nos últimos 40 ou 50 anos no Brasil). Mas o aspecto central da pós-graduação, que “sempre” existiu e se mantém até os dias de hoje, é a figura do orientador e a relação de “mestre-aprendiz” que se estabelece entre este e seus estudantes de pós-graduação. O que quero dizer é que embora hoje tenhamos cursos de pós-graduação com muitas atividades formativas, na verdade a “prática científica” se estabelece, como em tantas outras atividades humanas, com uma pessoa (o “mestre”) ensinando o que sabe diretamente a outra (o “aprendiz”). Essa relação “mestre-aprendiz” é muito forte em nosso imaginário, e não sem razão! Isso implica também que há um balanço entre a relação pessoal e profissional que ai se estabelece, significando que o estudante aprende não só o lado profissional, mas termina sendo influenciado de forma muito mais ampla, em um contexto pessoal, pelo seu “mestre”. Essa relação é inevitavelmente muito complexa já que envolve uma série de aspectos emocionais, psicológicos e de personalidade...Vamos conversar mais sobre isso aqui então!
Já comentamos em várias postagens anteriores que há muita variação entre as diferentes áreas da ciência, e a maneira como se estabelece a relação orientado-orientador não é exceção. Em algumas áreas, a figura do orientador é muito mais “distante”, servindo apenas para uma orientação geral, um auxilio na definição do tema de pesquisa e algumas opiniões sobre o desenvolvimento do trabalho de mestrado ou doutorado do estudante em formação, e uma leitura para ajudar a clareza dos textos finais. Assim, o estudante é muito mais independente (e tem que lidar com isso...). Em outras áreas, por outro lado, o orientador é muito mais próximo e tende a ser, em alguns casos, mais um colaborador do que um orientador. Essa proximidade, entretanto, pode implicar que há menos independência do estudante em relação a certas escolhas.
A questão da maior dependência do estudante em relação ao orientador, em termos do projeto a ser desenvolvido no mestrado ou no doutorado, pode envolver aspectos de conhecimento, mas na prática há também uma questão mais operacional relacionada ao projeto de pesquisa a ser desenvolvido. Como vamos discutir posteriormente, em muitos casos a pesquisa em uma dada área envolve muitos recursos financeiros, em termos de equipamentos, trabalho de campo ou material de laboratório, por exemplo. Esses recursos em geral são “captados” pelo orientador a partir de um projeto que é financiado por uma agência de fomento (ou por um empresa ou por uma ONGs, ou mais raramente pela própria instituição). Assim, espera-se que o estudante vá desenvolver seu trabalho de mestrado ou doutorado no contexto daquele projeto já aprovado e que já conta com recursos financeiros para ser executado. Ele ou ela não precisa se preocupar com essa questão financeira e tem recursos garantidos, o que é mais “seguro” em termos de chance de finalizar seu mestrado ou seu doutorado com resultados potencialmente interessantes. O orientador, por sua vez, espera poder contar com o estudante para finalizar com sucesso seu projeto. É uma via de mão dupla, certamente! Mas isso restringe a possibilidade de escolha do estudante, que de fato não tem como desenvolver seu “próprio” projeto, e ele ou ela tem que se contentar em trabalhar desenvolvendo parte do projeto do orientador. É interessante pensarmos que, nesse sentido, a ideia do estudante terminar o doutorado e se tornar realmente um pesquisador independente a partir dai, que discutimos na postagem anterior, é realmente explícita!
Mas além da questão financeira há também uma boa razão para que os estudantes trabalhem todos em um grande projeto, ou pelo menos em um mesmo tema de pesquisa em um dado momento, durante a sua formação. A prática científica hoje é cada vez mais colaborativa, de modo que há uma série de vantagens se o estudante estiver envolvido desde o início em grandes projetos, entendendo que ele ou ela está desenvolvendo uma parte de um todo maior. Nesses casos, o projeto de dissertação ou tese às vezes pode depender de uma série de outros estudantes e pesquisadores (por exemplo, o projeto pode se desenvolver a partir de dados de campo coletados por outro estudante em uma fase anterior do projeto). Ao mesmo tempo, ele ou ela passa a entender também que outros colegas poderão vir a depender futuramente de seus resultados e conclusões, o que em princípio aumenta sua responsabilidade e seu “senso de pertencimento” no grupo. Na minha experiência pessoal, os melhores momentos de orientação ocorreram quando os meus vários estudantes, em vários níveis, estavam trabalhando em um mesmo grande projeto, em diferentes “subprojetos”. Ou seja, cada um deles estava desenvolvendo um tema que foi usado para obter seu título de mestre ou doutor e para publicar seu trabalho posteriormente (como já discutimos na postagem anterior), mas que na realidade fazia parte de um todo maior. Essas orientações em temas comuns, podemos assim dizer, me parecem ser bastante produtivas e são comuns pela maneira como os laboratórios ou grupos de pesquisa se desenvolvem e se organizam.
Há uma outra prática interessante que termina aparecendo no contexto dessas orientações mais gerais em grandes projetos, mas que em muitos casos, dependendo de como ocorre, pode ser problemática e gera muitas controvérsias. É a ideia de uma “orientação hierárquica”, informal. Quero dizer que não é incomum, principalmente em grandes laboratórios ou grupos de pesquisa que estão desenvolvendo grandes projetos, que os alunos de graduação da iniciação científica (IC) sejam na prática supervisionados pelos estudantes de mestrado ou doutorado, ou que os estudantes de doutorado ajudem nos trabalhos dos mestrandos, e que todos eles possam ser orientados pelos pós-doutorandos, tudo isso em maior ou menor grau (logo discutiremos mais essa figura importante do pós-doutorando...). Vejam na figura abaixo um esquema desse “modelo” de orientação, com a espessura das setas indicando a intensidade de interação entre os componentes do grupo de pesquisa.
Esse esquema hierárquico aparece certamente quando o orientador principal tem muitas outras atividades, o que se torna quase inevitável à medida que avançamos na carreira como pesquisador ou professor, com um grande acumulo de atividades na Universidade e fora dela, e quando passamos a liderar esses grandes projetos...E quando assumimos cargos de gestão e administração? Em uma nota mais pessoal nesse sentido, o que seria de mim e de meus doutorandos Davi Alves, Lucas Jardim e Jesus Ledezma se não fosse o meu amigo e colega Fabrício Villalobos, hoje pesquisador no Instituto de Ecologia do México, que era meu pós-doutorando com bolsa do CNPq no programa "Ciência sem Fronteiras" quando assumi o cargo de Pró-Reitor de Pós-Graduação da UFG, entre 2014 e 2016! De qualquer modo, o esquema hierárquico é interessante nesse contexto porque significa que mesmo um aluno de IC, chegando no laboratório, não ficaria desamparado mesmo se o seu orientador é muito ocupado (no sentido de que, indiretamente, ele ou ela estaria “acolhido” no grupo pelos outros estudantes em já em níveis mais elevados).
Muitas pessoas acham que isso significa, por outro lado, que o orientador está “terceirizando” o seu trabalho (e em algumas críticas mais duras que ele ou ela simplesmente não quer trabalhar...). Acho que em geral esse não é o caso e eu particularmente não vejo muito problema nessa prática, desde que os papeis de cada um estejam claros e que certos cuidados sejam tomados. É importante que o orientador principal e “oficial” assuma a lógica de orientação hierárquica, ou seja, o orientador deve estar ciente de como o Pós-Doutorando ou Doutorando sob sua responsabilidade está auxiliando e supervisionando o aluno de IC em seu laboratório. Claro que também é importante que haja algum contato entre o orientador e os alunos iniciantes de IC, por exemplo, senão há um risco sério do orientador se tornar uma figura muito “distante”, quase “mitológica”, perdendo-se assim muitas oportunidades de interação pessoal e profissional. Assim, insisto que o esquema é “hierárquico” e não “independente”. Acho que esse sistema hierárquico pode estar mais restrito a questões do dia a dia, mais práticas, o aprendizado de um técnica, por exemplo...Uma maneira de contornar muitos problemas é que haja reuniões periódicas nos laboratórios ou grupos de pesquisa, ou eventualmente seminários para discutir e mostrar de forma integrada os resultados do grande projeto, onde todos os estudantes, independente do seu nível, possam discutir e apresentar os resultados ao orientador, criando assim um panorama geral do andamentos dos trabalhos no laboratório. Nem sempre é fácil criar essa rotina, mas acho que isso é bastante importante.
Certamente uma vantagem desse sistema hierárquico é que os próprios estudantes de doutorado ou bolsistas de pós-doutorado já começam a entender como funciona o processo de orientação e supervisão, algo que vai ser muito importante posteriormente em sua carreira, em um futuro próximo (com um pouco de sorte e muita competência!). Na realidade isso faz parte de uma discussão mais ampla sobre o que o “aprendiz” deve realmente aprender enquanto aluno de pós-graduação para que ele ou ela seja capaz de trabalhar como orientador em um segundo momento. Nesse contexto, na legislação atual da UFG, por exemplo, ampliamos o perfil do “estágio docência” já discutido na postagem anterior e colocamos inclusive que a supervisão hierárquica pode ser parte do estágio docência (o que implica automaticamente a necessidade de que o orientador esteja acompanhando o seu aluno de doutorado que está, por exemplo, orientando ou co-orientando uma iniciação científica).
Invertendo todo esse raciocínio acima, é possível que vários orientadores auxiliem um mesmo estudante. Já falamos que a ciência é cada vez mais colaborativa, em todo o mundo, e como consequência está ficando cada vez mais comum que os estudantes possuam um “co-orientador”. Esse co-orientador pode ser uma pessoas de outra instituição inclusive, que ajuda o estudante em novas técnicas em programas de intercâmbio nacionais ou internacionais, como já falamos antes. Expandindo esse raciocínio, em algumas áreas do conhecimento adota-se a ideia de que, embora haja um orientador principal, podem haver mais professores fazendo um acompanhamento do estudante de forma mais contínua, formando o que às vezes se chama de “comitê de orientação” (mais rara), como ilustrado abaixo. Acho que em todos os casos, a coordenação do programa de Pos-Graduação, ou às vezes comitês de avaliação, podem ser importantes para auxiliar o estudante e, às vezes, para ajudar mediando eventuais conflitos...
Sim, conflitos...Nem tudo são flores, claro! Pensando em termos “populacionais”, ou seja, olhando para uma grande amostra de cursos, programas, estudantes e docentes, é quase inevitável que apareçam conflitos de maior ou menor “gravidade” nessa relação entre orientador e orientado. Isso ocorre tanto por questões pessoais quanto profissionais. É preciso que todos entendam que essa relação orientado-orientador é mais complexa do uma relação professor-aluno, pois o convívio tende a ser muito maior, quase diário se estamos falando em laboratórios com rotinas mais fortes de pesquisa. Na minha experiência, em termos profissionais os problemas mais comuns surgem por um desacordo em relação às expectativas do papel de cada uma das partes, o que nos leva à discussão sobre quais são esses papéis.
Em termos pessoais, existem muitos problemas que envolvem em geral compatibilidade de personalidades, algo comum em qualquer sistema com interações sociais, e é muito difícil discutir isso aqui porque estamos falando dos mesmos problemas potenciais em qualquer relação humana. Existem, claro, particularidades porque estamos falando de uma relação hierárquica, na qual o orientador tem mais “poder” , em um sentido geral, o que nos leva ao problema do assédio, moral ou sexual. Esse é um problema antigo e conhecido na relação professor-aluno, mas fica potencialmente mais forte no caso da relação orientador-orientado por causa do maior contato pessoal e dos interesses profissionais. Existe hoje uma grande campanha contra essas práticas de assédio na sociedade, e a maior parte das Instituições e universidades têm se preocupado em como lidar com o problema, primeiro realizando ações educativas, em seguida ouvindo denúncias e apurando cada caso e, finalmente, tomando as providências legais e administrativas cabíveis (que podem chegar até à demissão do docente, por exemplo, dependendo da gravidade do problema!).
Podemos pensar que esses problemas do assédio estão relacionados ao lado mais “pessoal” da relação orientador-orientado, que torna as duas pessoas mais próximas e pode abrir espaço para essas práticas indesejáveis. Certo...Então se todos conseguissem manter as relações de forma estritamente profissional isso não ocorreria, muitos pensam. Será? Não sei...Além disso, não sei se nesse caso é possível realmente separar tão clara e objetivamente a questão pessoal da profissional, como já mencionei antes, pelo menos na nossa cultura “latina”. De qualquer modo, eu pessoalmente entendo que o lado pessoal da relação orientador-orientado, em um sentido amplo, também tem uma série de vantagens. O ponto principal é que, se a relação “funciona”, o “mestre” não é apenas uma referência em termos profissionais, mas passa a ser uma referência pessoal também, um modelo, o estudante quer vê-lo como um espelho. Nesse sentido, o orientador vai ter um papel também em termos de aconselhar, ajudar o estudante a escolher entre caminhos profissionais (e mesmo pessoais) alternativos etc...Isso é muito importante para os jovens em formação, e às vezes (ou sempre?) boas escolhas podem ser tão importantes quanto competência profissional. Ao mesmo tempo, para o orientador é sempre muito melhor trabalhar no dia a dia com alguém com quem ele ou ela tem uma grande empatia, estabelecendo uma relação de confiança. É muito bom ter orgulho dos seus ex-orientados e ver que eles estão crescendo intelectualmente e pessoalmente...Eu diria que essa é sempre a grande recompensa de nossa profissão, ver e entender essas “linhagens intelectuais”. Agora podemos fazer consultas interessantes nisso e avaliar inclusive esse padrão em diferentes áreas da ciência brasileira utilizando a plataforma “Acacia” , que é bem interessante. Quero crer que esses sentimentos positivos, de ambas as partes, são muito mais comuns do que se imagina!
Acho bem interessante pensarmos nas chamadas “genealogias acadêmicas” e nas linhagens intelectuais, que são a base do que vamos chamar de “tradições de pesquisa” (vamos discutir essa questão sob um ponto de vista epistemológico em outro momento). Dentro da concepção geral de “mestre-aprendiz”, gosto muito de uma ideia que ouvi há alguns anos do Prof. Warwick Kerr, um dos maiores geneticistas e professores universitários brasileiros (falecido em 2018). Dizia o Prof. Kerr que sabemos que alcançamos nosso objetivo como “mestres” (como orientadores) se, quando alguém lhe pede uma opinião sobre um assunto, você sugere que é melhor conversar com aquele seu ex-estudante, pois ele ou ela é mais capacitado e competente nesse assunto do que você. Em outras palavras, deu certo quando o “aprendiz” superou o “mestre”!
Capa: Assistam "Star Trek II: A Ira de Khan", de 1982 (vale a pena, sempre...)
Muito bom!!!! Encaminhei para os docentes e discentes do PPG em Ciências Ambientis daqui da UnB. Parabéns José Alexandre!