Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estamos enfrentando umas das mais sérias pandemias já registradas até hoje, causada pela difusão do vírus SARS-CoV-2. Todos temos acompanhado com apreensão a evolução dos casos e das taxas de mortalidade em todo o mundo, causadas não só por efeitos da infecção viral, mas pela incapacidade dos sistemas de saúde de tratar do grande número de infectados. Nesse sentido, a importância do distanciamento e isolamento social no sentido de desacelerar a velocidade de expansão da pandemia tem sido considerados como a alternativa mais eficaz no sentido de reduzir o número de mortes.
Portanto, em um contexto de modelagem da pandemia, uma das maiores preocupações sobre o SARS-CoV-2 diz respeito à sua notável capacidade de se disseminar. Os epidemiologistas medem a capacidade de propagação de agentes infecciosos estimando o número médio de pessoas que cada pessoa já contagiada é capaz de infectar (o chamado R0). De acordo com a OMS, a pandemia atual se expande com um R0 em torno de 1,4 - 2,5, maior do que os vírus da gripe sazonais que se espalham todos os anos em todo o planeta. Claro que essas taxas podem ser reduzidas por medidas de mitigação e distanciamento social (levando ao famoso "achatamento da curva" tão falado hoje; mas vamos discutir mais isso oportunamente!).
Para antecipar o momento e a magnitude das intervenções públicas e mitigar as consequências adversas para a saúde pública e a economia, é urgente compreender os fatores associados à sobrevivência e transmissão da SARS-CoV-2. Nesse sentido, um dos fatores importantes a considerar no contexto da expansão do vírus é a variação do clima no mundo. Embora se saiba que a temperatura e a umidade afetam a propagação e a sobrevivência de outros coronavírus, com efeitos sazonais, é difícil usar dados de ocorrências atuais dos casos de SARS-CoV-2 para criar modelos correlativos de adequação climática (muito usados em Ecologia para entender processos de invasão ou resposta às mudanças climáticas, por exemplo) sem levar em consideração o próprio processo de expansão geográfica ainda em curso e as condições que o vírus encontra em cada país ou região.
Assim, resolvemos investigar essa questão partindo de alguns trabalhos que já estavam sendo desenvolvidos no nosso Grupo de Trabalho em “Macroecologia Humana” do INCT em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade que consistiu em usar uma abordagem macroecológica alternativa e modelar a taxa de crescimento exponencial nos casos atuais de infecção por SARS-CoV-2, levando em consideração características sócio-econômicas e climáticas dos países e suas ligações comerciais. Para aqueles interessados nos aspectos mais técnicos do trabalho e das análises, um preprint publicado hoje no medrxiv.
Começamos calculando as taxas de crescimento da pandemia apenas para países com 100 ou mais casos e para os quais as séries temporais já tinham mais de 10 dias após esse centésimo caso. Vejam o exemplo para o Brasil na Figura abaixo, com uma taxa de crescimento exponencial (r) aproximadamente igual a 0.27 a partir do dia em que chegamos ao centésimo caso.
Repetindo essas análises para todo o mundo, ficamos com 44 países para os quais pudemos estimar essas taxas de crescimento com uma certa robustez. Não há um padrão muito claro dessas taxas, em termos geográficos, e não observamos que os países com clima tropical teriam taxas menores (conforme sugerem as análises iniciais de adequabilidade ambiental recentemente divulgadas).
Fizemos então vários modelos de regressão dessas taxas em função de características sócio-econômicas (como PIB e taxa de crescimento populacional geral) e de clima (precipitação e temperaturas média, máximas e mínimas nos meses de dezembro-março, em diferentes combinações). Incluimos também nesse modelo uma variável que descreve as conexões comerciais entre os países, a partir de um “indicador” do número de voos entre os paises, e que dá uma medida de “centralidade” do país em relação aos demais. Conseguimos explicar cerca de 45% da variação nas taxas de crescimento da pandemia nos países em sua fase exponencial, mas somente a última variável de conexão entre os países teve um efeito significativo no modelo. Uma representação visual dessa conexões encontra-se abaixo.
Nosso resultado sugere, portanto, que a pandemia, pelo menos em uma primeira fase (da expansão exponencial), deve se comportar de maneira semelhante em diferentes países, apesar das diferenças de clima e condições socioeconômicas. Somente a conexão de vôo entre os países teve correlação significativa com as taxas de crescimento de casos em todo o mundo, o que revela a importância da “pressão de propágulo” na disseminação da doença. Além disso, revela mais uma vez a capacidade humana de alterar padrões biogeográficos, no caso a distribuição da pandemia. Com o transporte de 4.3 bilhões de passageiros por ano (!), os humanos determinaram a forma de propagação da COVID-19.
Pode ser que as fases posteriores da situação de pandemia da COVID-19, em termos de tempo de pico de infecção e diminuição das taxas de mortalidade, estejam melhor relacionadas a características socioeconômicas e de governança dos países. Isso porque já podemos perceber tanto a partir dos modelos teóricos e de simulação e de dados empíricos os efeitos da mitigação e de isolamento ou distanciamento social na difusão da pandemia (os resultados na China mostram claramente esse efeito, embora as particularidades econômicas e políticas do país devam ser consideradas) e, em um lado oposto desse espectro, em países europeus como Itália, Espanha e Inglaterra.
Em relação aos efeitos particulares do clima, também é importante lembrarmos que existe uma relação negativa entre o clima e as condições socioeconômicas locais ou regionais, em escala global. Por uma série de razões históricas, muitos países com menos recursos e piores condições sócio-econômicas (que por sua vez levam a más condições sanitárias e piores condições nutricionais das pessoas), estão nas regiões tropicais do planeta. Esses problemas facilmente neutralizariam qualquer efeito climático e de sazonalidade potencial em escalas mais locais, como menores taxas de sobrevivência do vírus exposto ao sol e alta temperatura. Por exemplo, no artigo recente de Miguel Araújo e Babak Naimi, que sugere um efeito do clima sobre a possibilidade de expansão da pandemia, eles dizem que “...Brazil, for example, with a combination of high human population density and absence of proactive political response to COVID-19, could face epidemic outbreaks even under moderate climate suitability”. Finalmente, mesmo que esses aspectos ambientais locais sejam importantes em algum nível, a região tropical começará a ter condições climáticas amenas em alguns meses, de modo que seriam esperadas altas taxas de contágio nos próximos meses.
Não esperamos que nossos resultados usando uma abordagem macroecológica em escala global tenham um efeito definitivo na tomada de decisões em termos de saúde pública em qualquer país, província ou cidade em particular. Mesmo assim, esperamos que nossas análises mostrem que as análises que sugerem que a expansão do SARS-Cov2 podem ser menores nos países tropicais e em desenvolvimento devem ser vistas com cautela, sob o risco de perturbar as políticas conhecidas e eficazes de isolamento social recomendadas pela OMS, que podem efeticamente ajudar a evitar uma mortalidade mais alta devido ao colapso nos sistemas nacionais de saúde.
No nosso contexto atual (e para não perdemos de vista a situação da Ciência brasileira que temos discutido aqui no "Ciência, Universidade e outras Idéias"), nossos resultados são importantes dada a postura do Governo Federal e algumas declarações públicas do próprio presidente da República no sentido de abandonar as práticas de isolamento/distanciamento social usando, em alguns momentos, o efeito do clima como justificativa. Embora haja, certamente, uma discussão científica sobre a importância de diferentes fatores na disseminação da pandemia (incluindo o clima), bem como sobre quais seriam as estratégias mais eficazes para minimizar seus impactos, há um consenso de que medidas de distanciamente e isolamento social podem ser extremamente importantes nessa fase inicial, tal qual esperado pelos modelos epidemiológicos básicos. Em um primeiro momento, a postura mais "conservativa" (em termos de preservação da vida e mesmo em termos de capacidade de recuperação posterior da economia) é adotar ao máximo essas medidas. Na verdade, se há algum efeito positivo dessa crise é que as algumas pessoas devem mudar sua atitude em relação à ciência. Como disse Yuval Harari em um ensaio publicado recentemente no Financial Times,
“Nos próximos dias, cada um de nós deve optar por confiar em dados científicos e especialistas em saúde em detrimento a ouvir teorias da conspiração infundadas ou políticos egoístas”.
Nesse sentido, existem evidências de que essa mudança já pode estar acontecendo e alguns mais otimistas acham que um dos efeitos dessa crise pode ser a recuperação da imagem da ciência perante muitos setores da nossa sociedade. Não é preciso lembrar também que essa atitude do atual Governo Federal em relação à pandemia não difere de outras atitudes de negação do conhecimento científico e do desmantelamento do sistema nacional de educação, ciência e tecnologia. A diferença clara, agora, é que essas ações podem levar à morte de milhares de pessoas em um espaço relativamente curto de tempo. Talvez por isso estejamos observando uma a queda de popularidade do presidente Bolsonaro e o aumento dos pedidos de seu impeachment, ao mesmo tempo em que a divulgação científica de alto nível ganha espaço na midia (como por exemplo os excelentes vídeos de Átila Iamarino, que viralizam nas redes sociais).
Sem dúvida há um impacto sócioeconômico nas práticas de mitigação, isolamento e quarentena, mas é uma falsa dicotomia fazer com que as pessoas achem que precisam “optar” entre vida e economia. Na realidade, como também disse Yuval Harari, em seu ensaio no Financial Times, a escolha de fato é entre isolacionismo nacionalista e cooperação global. Harari também indica que, independente das escolhas que façamos, “Sim, a tempestade vai passar, a humanidade sobreviverá, e a maior parte de nós vai estar viva – mas vamos viver em um mundo diferente”. Talvez a crise do COVID-19 nos ajude a encontrar um caminho mais adequado guiar nossas decisões e onde seja possível entender a ciência em termos de seus valores primordiais e avançar para uma sociedade mais justa e igualitária. Com certeza, já vemos algumas mudanças positivas nessa direção!
A primeira seção dessa postagem é uma versão de divulgação do preprint publicado no MedRxiv, sendo uma primeira contribuição do GT de Macroecologia & Macroevolução do nosso INCT para a questão da COVID-19. Para esse projeto contribuiram Marco Tulio P. Coelho (Pos-Doutorando no PPG em Ecologia & Evolução da UFG), João Fabricio da Mota Rodrigues (Pos-Doutorando no PPG em Ecologia & Evolução da UFG), Anderson Medina (Pos-Doutorando DTI-CNPq, INCT EECBio, UFBA), Paulo Scalco (FACE, UFG), Levi Carina Terribile (UFJ), Bruno Vilela (UFBA), José Alex Diniz Filho (ICB, UFG) e Ricardo Dobrovolski (UFBA) (de cima para baixo, da esquerda para a direita).
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