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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Adão era um Australopithecus?


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“Tratar as pessoas de todos os níveis como pensadores comprometidos, cujas perguntas nos ensinam a todos, é a chave para enfrentar os desafios da ciência na era da pós-confiança” (Jerry Ravetz)




Minha última postagem, uma crítica ao nosso “programa” de divulgação e comunicação científica, gerou muitas discussões e vários colegas me mandarem e-mails e mensagens com diversas ideias e pontos de vista alternativos. Por coincidência, participei também esses dias de uma oficina sobre divulgação científica organizada pelo INCT em “Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia”, com o Dr Luís Amorim, da Fiocruz, que me trouxe algumas novas ideias e percepções do problema. Alguns desses comentários sugeriram que temos que continuar tentando alcançar a sociedade por outros meios de comunicação e que uma visão mais negativa da superação das dificuldades pode ser desestimulante para os jovens. Outros colocaram que nosso programa de divulgação científica (assim como nossa ciência) é muito novo e de fato não tivemos tempo ainda de ver os seus resultados. Eu entendo e concordo, em parte, de modo que quero aqui ser um pouco mais propositivo, em um contexto mais específico na minha área de pesquisa em Ecologia e Evolução.


Voltando rapidamente à minha critica na postagem anterior, acho que o problema não é simplesmente dar mais visibilidade às pesquisas na Universidade e ampliar a quantidade de informação científica disponível para a sociedade, para que esta possa valorizar a ciência (de modo que possamos usar isso para convencer os políticos a continuar a apoiar a ciência e a tecnologia, especialmente no contexto da nossa crise econômica e política atual no Brasil). Meu ponto principal é que essa informação já está em grande parte disponível, mas a sociedade não é capaz de absorver porque ela não é preparada para isso, tanto porque o nível educacional em geral é muito baixo quanto porque existem restrições de diversas ordens.


Depois de refletir sobre os vários comentários e discussões, acho que posso sintetizar minha critica da seguinte forma: não se trata (apenas) de colocar mais informação científica à disposição da sociedade, mas principalmente de não deixar que se instalem na mente das pessoas, especialmente das crianças, crenças e “verdades” que impeçam o desenvolvimento de um pensamento crítico e racional! Eventualmente até seria possível substituir essas crenças, mas com muito mais dificuldade...Se conseguirmos fazer isso, e torcendo para que Carl Sagan estivesse certo, naturalmente as pessoas vão entender o significado da ciência uma vez que o ser humano seria intrinsecamente racional (como coloquei antes, Y Harari, por exemplo, não é tão otimista...). De qualquer modo, o ponto é que, ao fazermos divulgação científica, não podemos apenas assumir um fluxo unidirecional de informação do cientista ou jornalista científico para a sociedade sem entender qual o conhecimento prévio instalado no público a ser alcançado pelas ações de divulgação (pois isso irá restringir a possibilidade de aceitação de qualquer nova informação).


Pensando na minha área de trabalho em Ecologia e Biologia Evolutiva, essa questão da estrutura social pode ser bem exemplificada por um dos empecilhos mais sérios que temos atualmente em termos de divulgação científica, que é a questão do criacionismo. Há um "continuum" de visões envolvendo o criacionismo, como proposto pela importante pesquisadora, professora e ativista Eugenie C. Scott, mas em geral usamos esse termo para indicar uma visão na qual as espécies e o Homem foram criados por Deus conforme o Livro do Genesis (algumas pessoas referem-se à essa visão de forma mais específica como "fixismo"). Importante ressaltar também que há uma série de tentativas de discutir o criacionismo sob um ponto de vista “científico”, como na “teoria” do “planejamento inteligente” (Intelligent Design Theory), mas isso está claramente no domínio da pseudociência, como já discutimos bastante antes. De fato, a ideia do criacionismo possui um profundo componente religioso, ponto final. Por outro lado, a concepção geral de evolução e do chamado “tempo profundo” é central não só na Biologia, mas em diversas áreas do conhecimento científico (como Cosmologia e Geologia), de modo que podemos colocar com clareza que é totalmente incoerente que um cientista seja criacionista. Estabelecemos, portanto, uma arena clara para o conflito e para as restrições à divulgação e popularização do conhecimento científico nessa área.


Eliminando a questão da pseudociência, acho que o mais importante é entendermos a natureza religiosa subjacente ao criacionismo. Não se trata, por um lado, de fazer aqui uma discussão ampla sobre o conflito potencial entre ciência e religião, que sempre é um tópico polêmico e com opiniões que abrangem um espectro bastante amplo. Vamos discutir isso com mais calma em outro momento, mas em resumo alguns acham que ciência e religião - pelo menos em um alto nível intelectual - não são incompatíveis; outras pessoas acham que sim (e eu tendo a ficar deste último lado, pois acho difícil pensar em como alguém religioso realmente encara a evidência cientifica; mas no hard feelings). De qualquer modo, o problema aqui está no pensamento religioso dogmático e fundamentalista que adota uma interpretação literal da Bíblia e do Genesis, principalmente por diversas igrejas neopentecostais. Trata-se de uma visão ingênua e totalmente “primária” de pensamento religioso, cujas origens estão na falta de educação científica (e geral, em termos de História, por exemplo) e na dificuldade de desenvolver um pensamento crítico e racional. Pessoas muitas vezes inescrupulosas se aproveitam dessas falhas para realizar uma forte doutrinação com interesses políticos e eleitorais. Mas, independentemente da origem, não podemos ignorar o problema existente e suas consequências.


A Igreja Católica, por outro lado, já há muitos anos aceita formalmente a ideia de Evolução, embora continue obviamente rejeitando uma interpretação materialista da vida (como temos de fato no neodarwinismo e em todas as teorias científicas). Naturalmente, a Igreja Católica entende também que ações divinas guiam a evolução e, consequentemente, há um propósito em todo esse processo (dentro do continuum de E. C. Scott já mencionado, seria algo como evolutionary creacionism ou theistic evolution). Isso nos leva a uma discussão sobre as “causas finais” aristotélicas e sua apropriação pela filosofia escolástica durante a Idade Média, bem como ao “ponto Ômega” do Padre Teilhard de Chardin, ou seja, a visão do Homem como o ser supremo e o propósito último da evolução (infelizmente, se esse for o caso, acho estamos realmente perdidos e alguém vai ter que assumir que Deus falhou terrivelmente na sua escolha para o ápice da evolução, considerando os estragos que temos feito ao planeta e a nós mesmos!). Assim, a discussão entre evolução e religião, em um contexto mais "maduro", está em pontos filosóficos profundos que envolvem questões sobre causalidade, propósito e sobre a própria percepção da natureza humana e sua relação com o resto da vida. Não acho que a discussão sobre esses aspectos metafísicos, pelo menos em um primeiro momento, atrapalhe o avanço da ciência e seja prejudicial a ela, muito pelo contrário (independentemente da posição de cada um).


Mas mesmo que a Igreja Católica entenda e aceite formalmente as concepções gerais de evolução, e outras religiões tenham também posições menos conflituosas sobre o assunto, não podemos esquecer que as religiões que impõem a seus fiéis uma visão literal do Genesis como “verdade” têm crescido de forma assustadora no mundo todo. Mais importante, elas têm crescido não só em número de pessoas, mas também em termos de poder e influência política. Todos sabem que no caso do Brasil temos uma forte “bancada evangélica” no Congresso Nacional, com uma forte agenda de ações anti-científicas e anti-educacionais, além da defesa da “moral e dos bons costumes na família” (seja lá o que isso signifique...). Com isso, temos um problema sério de crenças instaladas que criam uma séria restrição a qualquer divulgação científica sobre evolução, que inclusive começam a afetar o próprio contexto educacional (no Brasil esse debate sobre ensino de criacionismo como parte da ciência está sendo continuamente levantado, mesmo quando nos Estados Unidos a Suprema Corte já tenha se pronunciado contrária ao ensino do criacionismo em um contexto de ensino de ciências ou biologia por diversas vezes; vejam como sugestão o excelente livro de Michael Shermer, “Why Darwin Matters: the Case Against Intelling Design” para uma discussão histórica sobre o problema).

Voltando à questão da divulgação científica e tomando por base a ideia de divulgar e popularizar o nosso conhecimento sobre evolução, como proceder e levar em consideração esse problema do fundamentalismo religioso? Claramente essa é uma restrição que precisa, de alguma forma, ser contornada minimamente. Há posições mais radicais em termos de defesa do ateísmo, como a de Dawkins, que certamente não vão ajudar nesse caso especifico, pois elas vão apenas acirrar o debate e aumentar a resistência da pessoas quanto à ideia de evolução. Muitos insistem em mostrar que, na realidade, a visão da criação do Genesis é uma alegoria e que, de fato, ela não é incompatível com a ideia de evolução etc, como colocado acima (e como assumido pela Igreja Católica). Afinal, todas as culturas possuem seus próprios mitos sobre a criação (gosto do texto de Luiz Aguiar, "Assim tudo Começou" de 2005, da Quinteto Editorial). Embora seja obviamente uma boa tentativa, pelo menos em um primeiro momento, talvez ela não seja eficiente diante do fundamentalismo e de uma doutrinação contínua apoiando uma interpretação criacionista. Mas pode dar certo, nas circunstâncias certas. A proposta de um continuum de posições no "debate" evolucionismo-criacionismo, como definido por E. C. Scott, pode ajudar a tranquilizar as pessoas, que podem se sentir melhor psicologicamente com posições menos radicais (e algumas dessas posições, em um certo sentido, não são irracionais e não vão contra a evidência científica).


Em todo caso, acho que muitos (ou todos?) concordariam que essas ações seriam mais eficazes pensando em crianças e jovens ainda em formação (a despeito da dificuldade em termos de “competição” entre a escola e a doutrinação contínua na família e na igreja). Sendo esse o caso, precisamos reforçar nosso sistema educacional e dar uma sólida formação em Ciência e em Biologia para nossos licenciados, para que estes consigam atingir as crianças e adolescentes em formação. Mas sei que é difícil para muitos dos jovens professores desempenharem esse papel em um ambiente hostil, sem condições mínimas de trabalho e recebendo salários aviltantes...Mas pelo menos podemos tentar ajudá-los e lhes dar uma boa formação. Temos que mudar o sistema de ensino e cada vez mais insistir que os jovens devem aprender a pensar e não aprender apenas conteúdos soltos e isolados.


Sendo otimista, todos sabemos que as crianças são muito curiosas e questionadoras (de fato, todos os filhotes de mamíferos o são - observem seus gatinhos e cachorrinhos). É preciso manter esse espírito nas crianças e impedir que elas tenham seus pensamentos cristalizados em torno de falsas verdades. Cada vez mais acho que nosso sistema educacional, em muitos casos, distorce a percepção das pessoas sobre a ciência e sobre como o conhecimento humano é acumulado, de modo que muita coisa se perde no caminho. Deveríamos valorizar algo como um “efeito Peter Pan” intelectual, isso é muito importante para os cientistas. Sei que é difícil manter essa curiosidade viva, mas esse seria o trabalho mais importante dos professores ao longo do ensino fundamental e médio...


Como professores, deveríamos pelo menos tentar plantar uma “semente de dúvida” nas crianças e, dadas todas as dificuldades discutidas acima, esperar pelo melhor. Lembrei que isso, em um certo sentido, aconteceu comigo há muitos anos atrás. Eu queria muito aprender a ler para poder entender o que estava escrito nos dois volumes da coleção “O Mundo em Vivemos”, da Abril Cultural (não achei a data na minha edição, que guardo até hoje - mas é do início dos anos 70). Essa coleção, em resumo, conta a história da formação da Terra e da vida em geral, com excelentes (e hoje “clássicas”) ilustrações e fotos, além de contar a história de Darwin e da viagem do H. M. S. Beagle (e a coleção continha também como brinde uma edição do livro “Viagem de um Naturalista ao Redor do Mundo”).





Lendo com dificuldade e principalmente olhando as figuras sobre evolução e sobre os fósseis humanos, fui entendendo a mensagem geral daquele fantástico livro de divulgação científica. Sempre me impressionou a figura da capa, de um Australopithecus lutando contra dois mandris usando uma ferramenta de osso (o que remete também à cena marcante de “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick – vejam a cena clássica no final da postagem; mas notem que nossa percepção dos Australopithecus hoje é bem diferente). No contexto de divulgação científica e pensando nos problemas do criacionismo, discutir evolução humana lança obviamente desafios adicionais (mas ao mesmo tempo aparecem grandes oportunidades...). Na verdade, mesmo para quem aceita a ideia de evolução, mesmo entre os biólogos, sempre fica, lá no fundo, a concepção de que o ser humano é especial e não apenas mais uma contingência na história da vida na Terra.


Eu tive uma formação católica em termos de família e escola, mas logicamente nada muito radical e sem que houvesse qualquer constrangimento em relação à Ciência (muito pelo contrário, sendo filho de pesquisadores e professores universitários!). Não lembro bem dos detalhes, mas devo ter ouvido desde muito pequeno histórias ou relatos sobre o Genesis. Mas, em algum momento, aos 5 ou 6 anos de idade, lembro vividamente de ter perguntado a meu pai: “Adão era um Australopithecus?”. Depois disso, nunca mais deixei de estudar evolução humana...





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