"Vivemos tempos sombrios,
onde as piores pessoas perderam o medo
e as melhores perderam a esperança"
(Hannat Arendt, 1906-1975)
Vivemos de fato em tempos estranhos e a cada dia aparecerem novos fatos e assuntos que nos deixam perplexos. Criei esse blog para discutir aspectos gerais relacionados à “Ciência, Universidade e Outras Ideias”, em um contexto de divulgação científica e defesa da educação pública (ação ingênua, como já assumi anteriormente), diante dos ataques dos negacionistas e do avanço da pseudociência, rapidamente ampliados a partir do início do governo Bolsonaro em 2019. Mas, ao longo de 2020, as postagens foram dominadas pelas várias questões ligadas à pandemia da COVID-19 e passaram a servir, inclusive para mim, como “crônicas” dos vários eventos que se desenrolavam. Dentro de alguns meses (ou anos) espero poder reler as postagens em sequência e relembrar toda a trajetória que nos levou àquele futuro hoje distante, se lá qual seja ele.
Como coloquei na postagem anterior, a nova onda de expansão da pandemia que se instalou a a partir de novembro/dezembro de 2020 e continua elevando o número de óbitos a cada dia exige a compreensão de diferentes pontos de equilíbrio. Temos, por um lado, o início da campanha de vacinação a partir de janeiro em fevereiro, que avança devagar, mas que trouxe algum otimismo e tende a começar lentamente a diminuir os eventos de hospitalização e óbitos, especialmente considerando a prioridade de vacinação dos idosos. Por outro lado, esse efeito (ainda potencial) positivo é fortemente contrabalanceado pela chegada das novas variantes do coronavírus (especialmente a forma bem mais agressiva conhecida como P1 que se originou em Manaus) junto com a diminuição gradual do isolamento social a partir de novembro, dois fatores que tendem a aumentar as transmissões. Há muitas interações complexas entre todos esses fatores mas, subjacente a tudo isso, vemos a falta total de capacidade do Governo Federal de coordenar as ações a fim de mitigar a pandemia...As sinergias entre todos esses efeitos nos colocam em uma trajetória ascendente de casos e óbitos...Estamos chegando aos 300 mil óbitos no Brasil e as perspectivas não são boas.
De fato, a principal dúvida que tenho nem é a falta de ação ou capacidade de coordenação (isso é obvio), mas qual a verdadeira intenção subjacente a essa falta de controle. Vimos na semana passada o escândalo envolvendo o youtuber e influenciador digital Felipe Neto, processado pelo Governo Federal por chamar o presidente de “genocida”. Algo similar ocorre com o ex-ministro e candidato à presidência Ciro Gomes. Miriam Leitão (sim, ela mesmo...) publicou no domingo, dia 21/03/2021, no jornal “O Globo”, um artigo de opinião duro nessa mesma direção. Tudo isso mostra que estamos diante de um Governo que deliberadamente decidiu por incentivar a diminuição do isolamento social e deliberadamente ignora o impacto da pandemia (algo sustentado por alguns estudos) e persegue quem está dizendo mostrando isso. O nome indicado para o ministério da saúde, Marcelo Queiroga, ainda nem assumiu e já fala em visitar os hospitais para ver se os óbitos são mesmo por COVID-19! Isso significa, na prática, que os Governadores e mesmo os prefeitos mais esclarecidos e bem intencionados devem lidar com os seus problemas da melhor forma possível e tentar resolver os problemas. Ao Governo Federal resta, por enquanto, apenas encarar as milhares de manifestações e charges expressando a concordância com a expressão “genocídio”, e como síntese de tudo isso deixo aqui o texto do grande Rui Castro publicado na Folha de São Paulo.
Mas, diante de tudo isso, qual a posição da sociedade? Incrivelmente, ela está “dividida”, e vimos que, com o crescimento absurdo da pandemia em praticamente todos os Estados do país, os Governadores e prefeitos das grandes cidades começaram a rediscutir medidas mais rígidas de isolamento e distanciamento social, na prática implementadas com o fechamento da maior parte das atividades não-essenciais. Como já havíamos visto em 2020, rapidamente a parte politizada do “setor produtivo” reage e organiza manifestações, começam a circular mais notícias falsas sobre a eficiência do tratamento precoce e sobre a ideia de que implementar lockdown nas cidades não funciona. Vimos inclusive a publicação recente de artigo em uma revista de prestígio (a Scientific Reports, do grupo Nature) que defende essa posição (mas já notem a mensagem de alerta do editor de 11/3; vou aguardar os desfechos para comentar em mais detalhes esse tema, estou otimista e acho que teremos muitos aspectos interessante para discutir aqui sobre a prática científica a partir desse caso!). Um caso que demonstra tragicamente as consequências dessa atitude foi a morte do Senador Major Olímpio, que participou de atos desse tipo alguns dias antes de ser internado por causa da COVID-19, falecendo no dia 18/03. O presidente acaba de promover uma festa clandestina comemorando seu próprio aniversário, em um prédio público (o Palácio da Alvorada), violando não só o bom senso e o conhecimento médico e científico ao criticar o isolamento social mais uma vez, mas violando as próprias leis do Estado e desrespeitando o luto das milhares de famílias que perderam seus entes queridos para a COVID-19. Paradoxalmente, enquanto isso, as forças policiais e de fiscalização das secretarias municipais e estaduais tentam conter as festas clandestinas e as aglomerações...A sinalização é a pior possível!
De qualquer modo, a questão passa a ser tentar entender por que tudo isso acontece, mesmo diante da evidência. A resposta óbvia, infelizmente, é que a evidência não importa, o que está em jogo é uma guerra de narrativas, em um contexto de “pós-verdade”, uma consequência nefasta do movimento pós-moderno, como já discutimos aqui (vejam o excelente ensaio de Carlos Orsi na “Questão de Ciência” sobre esse tema). Isso significa, na prática, que a opinião dos cientistas que conhecem o assunto e estudaram durantes antes para isso é tão importante quanto de qualquer pessoa que leu uma mensagem no WhatsApp, não importa! Aproveitando-se das ideias filosóficas sobre como a ciência funciona, no sentido de não termos verdades absolutas e do conhecimento científico sempre estar aberto e ser “provisório”, criam-se falsos debates e consegue-se facilmente abalar a convicção da sociedade em questões científicas por causa de interesses obscuros políticos ou econômicos. Estamos vendo isso fortemente em relação à pandemia, mas essas questões cresceram gradualmente e essas práticas extremamente eficientes de guerra de narrativa têm sido usadas para defender o criacionismo, a indústria do cigarro, as empresas petroleiras e, claro, as “controvérsias” em relação às mudanças climáticas. Nada disso é novidade...
Mas o que estamos vendo agora no Brasil vai além da guerra de narrativas. Uma vez que os cientistas tentam colocar suas posições em relação a esses tópicos “polêmicos” e que possuem, subjacentes a eles, fortes interesses políticos ou econômicos, eles passam a ser perseguidos e ameaçados por pessoas que se sentem fortemente apoiadas pelo discurso violento do presidente. Suas falas e ações legitimam não só o negacionismo, mas perseguições reais que podem se tornar realmente aterrorizantes.
No contexto mais específico da pandemia, com a saída anunciada do pseudo-ministro Pazuello, as lideranças políticas, em uma tentativa desesperada de mudar os rumos do combate à pandemia no Brasil, convidaram no início de março a cardiologista Ludhmilla Hajjar, professora da Faculdade de Medicina da USP para conversar com o presidente e assumir a liderança no ministério da saúde. Considerando as suas posições claras em defesa da ciência (ver entrevista recente no jornal Opção), não sei nem o que ela foi fazer em Brasília, mas enfim...Não vejo como uma pessoa minimamente competente e bem intencionada possa assumir essa posição no contexto político atual (isso é um ponto importante a discutir...) e, obviamente, ela não aceitou assumir o ministério após uma conversa com Bolsonaro. Mas o ponto que quero destacar aqui é que ela foi rapidamente atacada nas redes sociais e, pior, começou a sofrer ameaças a sua integridade física, inclusive com invasão ao hotel onde ela se encontrava.
Esse caso é apenas um entre muitos...Por exemplo, os pesquisadores que mostraram que a cloroquina não funcionava, ainda em abril de 2020, foram ameaçados de morte, desencadeando uma série de manifestações por todo o Brasil, da ABRASCO e da Fiocruz. Tivemos casos de profissionais de saúde agredidos em várias ocasiões, e que continuam a se repetir agora em 2021. Há muitos e muitos exemplos...Em um contexto mais local, nosso grupo que tem atuado na modelagem e análise de dados da expansão da COVID-19 em Goiás já recebeu ataques e foi alvo de uma campanha de difamação, especialmente dirigida ao meu colega e amigo Thiago Rangel, quando, no final de julho de 2020, o Governador Ronaldo Caiado decretou um novo esquema de isolamento intermitente (que foi apenas parcialmente implementado, após pressão do setor empresarial e dos ataques). Esse decreto foi agora reeditado pelo Governador em uma live em 16 de março, diante do crescimento absurdo da pandemia do Estado. Como. Tivemos sérias manifestações contrárias às medidas que já tinham sido implementadas na região metropolitana de Goiânia há uns 15 dias atrás e como o Governador se referiu diversas vezes ao nosso trabalho de junho, vamos aguardar o desenrolar da situação....Em outro exemplo local, uma divulgação recente do trabalho de colegas da UFG e PUC pelo Jornal que estão fazendo o sequenciamento das variantes aqui no Estado de Goiás e indicam predominância da variante P1 gerou comentários absurdos e mostra o nível do problema de ignorância e negacionismo que estamos enfrentando!
Então, não basta mais trabalhar na guerra de narrativas, é preciso intimidar os pesquisadores e os formadores de opinião para que eles não se manifestem sobre essas questões, e isso tem ficado mais forte no contexto da pandemia. É preciso restaurar a censura e proibir os servidores públicos de se manifestar ou apresentar informações à sociedade sem autorização prévia. Mas o problema não está só no Governo... De fato, as atitudes do presidente e de alguns associados dão visibilidade e legitimidade a um componente nefasto e sombrio da nossa sociedade, como disse Eliane Brum ainda na época dos “indecisos” na eleição de 2018:
Há algo que o Brasil já perdeu. E que vai custar muito para recuperar. Com Bolsonaro ou sem Bolsonaro, descobrimos que vivemos num país em que a maioria dos brasileiros acha possível votar num homem como Bolsonaro. Sem nenhum drama de consciência, compactuam com todo o ódio que ele produz, são cúmplices do desejo de exterminar aqueles que são diferentes, apreciam as ameaças e os arrotos de poder, exaltam a ignorância e a brutalidade.
Fiquei me perguntando esses dias o que significam esses crescentes ataques à ciência e aos formadores de opinião. Será que, diante do cenário surreal e do número absurdo de mortes por COVID-19 no Brasil, o Governo tem medo de que a sociedade e as várias autoridades responsáveis pela gestão do país, em diferentes esferas e nos diferentes poderes, comecem lentamente a acordar do seu sono letárgico e perceber que não é possível mais continuar dessa forma? Será que a opinião dos cientistas tem esse poder e podem mesmo ajudar nessa direção? Temos essa credibilidade? Parece que o movimento antivacina no Brasil está arrefecendo e as pessoas estão começando a perceber que a única solução para sairmos da crise é ampliar a vacinação a qualquer custo (além de ficar em isolamento até que as vacinas cheguem...). O falso dilema entre “saúde e economia”, tão falado pelo Governo, começa a ser seriamente questionado pelos próprios economistas e empresários...De qualquer modo, a concretização das intimidações e agressões mostra a explícita consolidação do Estado totalitário e teocrático, no qual não há mais liberdade de expressão por repressão do Estado ou da própria sociedade. Vamos torcer para que a sociedade reaja contra isso e diga um basta diante de tantos retrocessos!
Em síntese, além de lidar com uma pandemia que causou sérios problemas de saúde pública e, consequentemente, levou a problemas sociais e econômicos inimagináveis em todo o mundo (e ainda não sabemos de fato o que está por vir), temos no Brasil um efeito sinérgico ligado ao Governo negacionista que não só aumenta o número de mortes e o sofrimento, mas expõe uma série de outros problemas na nossa sociedade. Temos um avanço do negacionismo, uma guerra de narrativas que deixa a sociedade confusa e, finalmente, uma perseguição explícita e legitimada pelo Estado e pelos seguidores do presidente aos políticos, influenciadores, pesquisadores, médicos e profissionais de saúde que tendam ajudar a achar soluções para o problema. Uma situação surreal que não imaginamos em nossos piores pesadelos...Parafraseando o título do excelente livro de Tom Clancy, o que fazer diante da “soma de todos os medos” ?
Artigo bastante lúcido como sempre. Parabéns Zé!
Os negacionistas deveriam pelo menos ser coerentes em suas posições. Por exemplo, ao contrair Covid, deveriam rejeitar todos os cuidados baseados na boa ciência, ao terem dor de cabeça, deveriam não tomar Aspirina. Ou talvez melhor, deveriam abdicar do uso de celulares (uma tecnologia altamente avançada e decorrente de ciência básica) para espalhar suas fake news!
Hoje revisitei um artigo da BBC sobre o ex-presidente de Gâmbia Yahya Jammeh - que deixou o país após duas décadas no poder - foi acusado de muitos crimes. Um deles foi obrigar milhares de pessoas com HIV a se submeterem a tratamentos com uma mistura de ervas que ele mesmo inventou. Isso parecia tão distante do Brasil na primeira vez que eu li, mas agora acho que temos uma versão piorada de Jammeh no poder.
Agradeço por seus posts sempre tão lúcidos, são como um oásis em meio ao deserto que atravessamos, e atravessaremos!