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  • Foto do escritorJosé Alexandre F. Diniz F

Morrendo por causa da COVID-19...

Atualizado: 19 de jan. de 2021



Quando na semana passada o Brasil chegou a 200 mil mortes oficialmente registradas por COVID-19, mais uma vez o presidente Bolsonaro minimizou o problema e usou uma abordagem negacionista que já havia aparecido logo no início da pandemia com relação às causas da morte. O comentário foi no sentido de dizer que algumas pessoas morriam “com COVID-19” e que isso era diferente de morrer “por causa da COVID-19”, como destacado em negrito (meu) na sua frase a seguir:


"A gente lamenta hoje estamos batendo aí 200 mil mortes -- muitas dessas mortes com Covid, outras de Covid, não temos uma linha de corte no tocante a isso aí...mas a vida continua, a gente lamenta profundamente..."


E segue com a ladainha da importância de manter economia e os empregos (quais?) e negando a importancia do isolamento social e da quarentena, etc (para aqueles que querem confirmar a frase, vejam o video no final da postagem...).


Mais de 200 mil mortes...



Fonte: G1, em 19/01 (clique na Fig. para a ir à webpage)





Já discutimos anteriormente como estimar a letalidade da COVID-19 (ou qualquer outra doença) em um nível populacional, calculando o que se chama de letalidade “por caso” (“case fatality rate”, ou CFR) ou letalidade “por infectado” (“infected fatality rate”, IFR) que seriam duas maneiras de estimar a letalidade da doença. Um problema geral é realmente saber o número de mortes por COVID-19, ou seja, o numerador dessas “taxas”, mais isso principalmente porque às vezes nem todas as mortes são registradas por uma série de razões operacionais (vejam, por exemplo, as estimativas mais complexas do Conselho Nacional de Secretários de Saúde - CONASS - a partir do excesso de mortalidade, que mostra que haveria algo como 24% a mais de mortes do que oficialmente registradas.


Na postagem anterior, focamos principalmente no problema do denominador, ou seja, estamos pensando em letalidade por “caso” ou letalidade por “infectado”. No caso do CFR, é preciso definir o que significa “caso” no sentido clínico; seriam casos mais graves que requerem hospitalização? Ou apenas sintomas, mesmo que leves? E como chegar a esse número se nem todos procuram o serviço de saúde e se não há realmente testes efetivos para todos os possíveis casos? Por outro lado, o IFR depende de testagens e estimativas populacionais que incluiriam, no caso da COVID-19, também casos assintomáticos, e existe mais uma dificuldade aí porque os assintomáticos podem ser menos sensíveis aos testes rápidos por desenvolverem menos anticorpos. Apenas como exemplo, no final de setembro já haviam sido registrado 1671 óbitos por COVID-19 em Goiânia (com dados de hoje, importante por causa dos atrasos de notificação que já discutimos também), para um total de 64640 casos registrados. Por outro lado, um inquérito populacional estimou que, mais ou menos na mesma época, pouco mais de 16%-17% da população (mais ou menos 247,5 mil pessoas, já corrigindo pelo decaimento dos anticorpos) já teria se infectado pelo SARS-COV-2. Desse modo, o CFR e o IFR seriam, respectivamente, iguais a 0,026 (2,6%) e 0,0067 (0,67%). Claro, esses valores seriam subestimativas se o relatório do CONASS estiver correto e tivermos algo como 25% a mais de mortes (e isso pode variar muito entre cidades e regiões, dependendo da ação da vigilância epidemiológica e da capacidade de diagnóstico e testagem). Por outro lado, o IFR poderia ser um pouco menor se as estimativas de soroprevalência forem subestimadas nos assintomáticos.


Mas, de qualquer modo, a questão levantada por Bolsonaro, na verdade, afeta o numerador do CFR e IFR e o problema é diametralmente oposto ao discutido nos dois parágrafos anteriores, pois pelo que ele colocou a ideia é que a letalidade seria MENOR do que realmente é... A questão levantada leva a dois aspectos que não tínhamos discutido anteriormente. Primeiro, para entender essa questão em particular precisamos deixar de pensar na letalidade em nível da população e passar a pensar na morte no nível do indivíduo. Segundo, e mais importante, precisamos pensar de forma mais geral em termos de CAUSALIDADE (pensando bem, entender essas causas em diferentes níveis significa entender o próprio significado de morte).


Independente de discussões mais filosóficas e até metafísicas, de forma mais pragmática, o Manual de Instruções para o Preenchimento da Declaração de Óbito , em seu Anexo C, e a partir de uma conceituação da Organização Mundial de Saúde (OMS), diz que as causas de morte (em um sentido geral) e a causa básica de morte podem ser definidas, hierarquicamente, da seguinte forma (usando a numeração original do manual):


3. Causas de morte: As causas de morte, a serem registradas no atestado médico de óbito, são todas as doenças, estados mórbidos ou lesões que produziram a morte, ou que contribuíram para ela, e as circunstâncias do acidente ou da violência que produziu essas lesões.


3.1 Causa básica de morte: A causa básica de morte é definida como:


3.1.1 a doença ou lesão que iniciou a cadeia de acontecimentos patológicos que conduziram diretamente à morte


3.1.2 as circunstâncias do acidente ou violência que produziu a lesão fatal


Então, isso já mostra que a frase de Bolsonaro não tem sentido (como sempre...), mas vamos avançar no raciocínio apenas para fins didáticos, na verdade é uma discussão quase trivial apenas para mostrar a estupidez do argumento dele e de outros negacionistas. Como exemplo, vejam a seguinte situação (apenas por ser um caso público bem conhecido, independentemente de qualquer conotação político-ideológica, certamente temos milhares de outros casos semelhantes por todo o país, infelizmente...).


Na semana passada recebemos a notícia da morte do prefeito eleito de Goiânia, Maguito Vilela, que desde o final de outubro (sim, isso mesmo...) estava internado na UTI após ter se infectado pelo SARS-COV-2. Após quase 3 meses internado, quando do seu falecimento em 13/01/2021 é muito pouco provável que Maguito ainda tivesse o vírus circulando em seu corpo. Ele morreu após sucessivas infecções pulmonares que a equipe médica não conseguiu controlar.


Pensando em termos de causalidade, Maguito faleceu de infecção pulmonar ou de COVID-19? Vi algumas postagens sobre isso no Facebook e no Instagram, questionando quem “causou” a morte de Maguito? Pragmaticamente, podemos nos perguntar se Maguito teria falecido de infecção pulmonar se ele não tivesse sido infectado pelo SARS-COV2, de modo que a lógica é pensar de forma contra-factual e definir uma “causa primeira”, ou “causa básica”, que na realidade é a ideia do item 3.1.1. acima, tal qual definido pela OMS.


Claro que é difícil (ou impossível, de fato) formalizar um contrafactual no caso individual porque não podemos voltar no tempo e “repetir” a sequência de eventos e, por exemplo, impedir a contaminação de Maguito pelo SARS-COV2 para ver o que aconteceria. Mas, para fins de raciocínio, claro que ele não teria morrido desta infecção pois ela faz parte da sequencia de eventos em decorrência da contaminação pelo SARS-COV2. Voltamos ao item 3.1.1. da OMS acima...Claro, alguém poderia dizer que ele iria morrer de qualquer modo, e invocar argumentos metafísicos do tipo “a hora dele chegou...” (e chegaria de qualquer modo), ou argumentos tautológicos (como minha vó dizia, “...só se morre no dia”). Mas isso está fora da nossa maneira científica de ver o mundo, como sabemos...


Cientificamente falando, poderíamos ainda pensar em algumas ideias mais gerais para estabelecer algo como a “plausibilidade” da morte por COVID-19, pensando por exemplo se essa morte foi algo muito inesperado ou não, dado o risco envolvido. O que Bolsonaro e os outros negacionistas querem dizer é que só deveríamos falar em mortes por COVID-19 se não houvesse comorbidade ou outros fatores de risco, pensando algo no sentido de que o vírus foi suficientemente forte para causar “diretamente” a morte? Se esse fosse o caso, então realmente a letalidade seria MUITO menor, que é justamente o que eles querem para negar a importância da pandemia... Vamos seguir esse raciocínio e pensar nas comorbidades, novamente apenas para fins de entender a estupidez do raciocínio e para onde ele leva...


Por exemplo, em Goiás, temos pouco mais de 7100 óbitos hoje e, de acordo com o portal da Secretaria Estadual de Saúde (SES), cerca de 50% deles ocorreu em pessoas acima de 70 anos, como mostra a figura abaixo. Se pensarmos, por outro lado, que essas pessoas com mais de 70 anos representam apenas cerca de 5% da população de Goiás, isso significa que o risco de morte dos idosos uma vez infectado é MUITO elevado. Uma meta-análise recente mostra que o IFR para 75 anos seria de 8,5% e para 85 anos quase 30% (em comparação, para pessoas com 35 anos, por exemplo, esse IFR seria de 0,004%). Além disso, pelos dados da SES, muitos teriam comorbidades como doença cardiovascular, diabetes ou problemas respiratórios.





Ainda nesse contexto de risco, a outra possibilidade seria pensar na expectativa de vida. Segundo as análises mais recentes do IBGE, referentes a 2019 e divulgados no final de 2020, a expectativa de vida ao nascer hoje de um brasileiro é de 76,6 anos (ou seja, em média um brasileiro que nasce hoje viverá até essa idade). Mas de fato a expectativa de vida pode ser estimada por cálculos mais complexos a partir das mortalidades por faixa etária, variando de acordo com a classe etária hoje (e além disso varia de acordo com o sexo, a localidade geográfica, condição social etc). É mais comum então expressar esse componente atual de variação por idade com a chamada “projeção de sobrevida”, de modo que alguém com 70 anos hoje ainda teria uma expectativa de vida de 15,5 anos adicionais.


De fato, é interessante que nos modelos epidemiológicos de vacinação, um dos “alvos” para otimizar os procedimentos é tentar maximizar essa projeção de sobrevida, ou seja, a ideia não seria diminuir apenas o número de mortes, mas a maior perda de anos de vida remanescente. Embora intuitivamente alguém possa argumentar que essa análise por definição prioriza os jovens – já que eles teriam mais anos de vida adicional – os resultados não são tão simples porque há muitas interações complexas e a letalidade, como coloquei acima, é muito fortemente influenciada pela idade (e de fato na maior parte dos cenários simulados no artigo os idosos estão sempre entre os grupos prioritários para vacinação).


Entretanto, avaliar a morte dessa forma “relativa” gera uma série de dilemas éticos. Então, com base nos dados acima, pensando principalmente na idade (risco altíssimo de letalidade por COVID-19, uma vez infectado) e em termos de expectativa de vida, isso significa que as pessoas idosas ou com comorbidades já deveria ter morrido de qualquer forma, ou teriam muito mais chance de morrer de qualquer modo. Isso significa então que pessoas idosas ou com comorbidades não têm valor, ou que sua morte “importa menos” por causa desses fatores? Claro que isso é absurdo e está ligado a uma série de preconceitos, como já discutimos aqui no “Ciência, Universidade e Outras Ideias” no texto forte dos meus amigos Luiz Mello e Jean Baptista. Se, como Bolsonaro sugere, a pessoa “iria morrer de qualquer modo”, porque já era idosa ou tinha comorbidades que aumentam o risco de morrer após ser infectado pelo SARS-COV-2, com certeza isso abre as portas para a Eugenia e para a necropolítica que estamos vendo no Brasil e em outros lugares do mundo...Houve inclusive declarações explicitas e infelizes logo no início da pandemia de que a morte dos idosos melhoraria o déficit da previdência...Aliás, aproveitando o péssimo momento, o que dizer das pessoas que estão morrendo em Manaus por incompetência dos Governos, vão agora justificar que elas estão morrendo por falta de oxigênio e não por causa da 2ª. onda de COVID-19 (e assumir sua incompetência, que aparece subjacente a qualquer uma das "causas")?


Enfim, tentei colocar, com todo esse raciocínio conturbado e tortuoso, que na realidade essa ideia de morrer por covid ou com covid é realmente absurda e, mais uma vez, mostra como Bolsonaro é capaz de falar sem escrúpulos algo sem embasamento, ou por ignorância ou como uma tentativa de negar a importância da pandemia, como já fez dezenas ou centenas de vezes por palavras e atos. Isso, infelizmente, influencia muitas pessoas e, em grande parte, desencadeia o que estamos vendo no Brasil já no início de 2021...Mais importante, ele ignora o drama humano e o sofrimento das pessoas na pandemia. Nesse sentido, o que será que as pessoas que perderam seus entes queridos para a COVID-19 pensam desse raciocínio de morrer “de covid” ou “com covid”? Será que elas entendem a mensagem subliminar? Quanto essas pessoas dariam para ter 1 dia a mais que fosse com seus parentes que morreram de COVID-19? Que desespero pensar nisso...!




fonte: unplash



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