Luisa Fernanda Liévano-Latorre
Rejane Santos-Silva
Lilian P. Sales
Raísa R. S. Vieira
Rafaela Aparecida da Silva
As transformações econômicas e sociais observadas nos últimos séculos estiveram associadas à expansão do capitalismo a partir da Europa. O acúmulo de riquezas permitiu importantes avanços científicos. Por exemplo, o desenvolvimento de vacinas reduziu drasticamente as taxas de mortalidade, aumentando a expectativa de vida da população. Além disso, o desenvolvimento de tecnologias agrícolas tornou possível o aumento da produção de comida, suficiente para alimentar os mais de 7 bilhões de humanos (atualmente, o desafio da humanidade é superar a má distribuição do alimento). No entanto, a ciência não está dissociada dos valores da sociedade, por isso ainda reproduz valores machistas, sexistas, racistas e homofóbicos ou capacitistas, ainda que exista um crescente esforço para alcançar a diversidade e a inclusão.
O debate sobre equidade e diversidade em áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática (conhecidas como STEM, pela sigla em inglês) ganhou mais força nas últimas décadas. Os obstáculos enfrentados ao longo da carreira em consequência do gênero, orientação sexual, etnia e/ou cor, deixaram a invisibilidade e têm cada vez mais espaço nas discussões nos espaços científicos. Mas o que torna essa pauta tão necessária e urgente durante a pandemia? Esse tema parece estar muito longe das pesquisas em STEM, mas é notório que ainda falta muito tempo para superar aquele viés. Então, por esse motivo, é importante tirarmos um tempo para falar sobre isso...
As áreas das ciências biológicas e exatas ocupam um espaço de prestígio intelectual, mas, ao mesmo tempo, os cientistas enfrentam diferentes dificuldades para se manter e estabelecer na carreira. O acesso e permanência de grupos historicamente minoritários é ainda mais desafiador. A instabilidade na carreira, aliado a comportamentos e atitudes hostis pelos pares do sexo masculino são responsáveis pela desistência nas carreiras científicas. No Reino Unido, o alto grau de abandono e desistência da comunidade LGBT em cursos STEM está relacionado ao desconforto no ambiente de trabalho. As pessoas com identidade LGBT sofrem por comportamentos como assédio moral e sexual, uso de linguagem pejorativa, e exclusão. Esses fatores que levam a desistência de pessoas com identidade LGBT. Pesquisas sobre diversidade acadêmica envolvendo a comunidade LGBT ainda são escassas e precisam ser aprofundadas, porém isso não nos impede de buscar estratégias para maior retenção desses profissionais.
O abandono por estudantes de cursos de graduação e carreiras em campos da STEM é enorme. Puxa na sua memória o perfil das turmas da graduação em cursos da STEM: Quantas dessas pessoas são mulheres, negras ou indígenas? Enquanto alguns cursos de graduação se aproximam da equidade de gênero - como é o caso nas Ciências Biológicas e Ecologia - outros ainda exibem menor permeabilidade e revelam maior proporção de homens brancos, como é o caso das engenharias ou matemática. Além disso, graças às políticas afirmativas implementadas na última década, mais da metade dos estudantes da graduação nas universidades federais se autodeclaram negros ou pardos. Se olharmos quantas dessas pessoas conseguem se formar e seguir na pós-graduação, encontraremos um viés ainda maior. O viés torna-se muito mais visível se analisarmos com quantas professoras ou professores negras ou indígenas já tivemos aulas durante o ensino superior. É por isso que falamos que existem grupos sub-representados nas ciências.
A sub-representação das mulheres é observada principalmente em posições de liderança em espaços acadêmicos, empresariais e políticos. Segundo o Fórum Econômico Mundial, ainda existe uma lacuna de 31,4% no mundo, sendo mais evidente na área da política, e espera-se que a lacuna de gênero global seja superada em 99,5 anos! Na área da educação, a brecha varia de acordo com o país. Se focarmos na área das Ciências Biológicas, homens e mulheres formam-se em proporções similares, mas, ao longo da formação, elas enfrentam o “teto de cristal” na ciência. A expressão “teto de cristal” é usada para descrever as barreiras artificiais e invisíveis que impedem às mulheres e outras comunidades sub-representadas de avançar a posições mais importantes dentro da sua área. No caso das mulheres, existem vários fatores que tornam mais difícil o avanço nas suas carreiras. Podemos citar, os preconceitos relacionados às habilidades e características socialmente construídas dada às mulheres, sobrecarga de trabalho doméstico que força à dupla jornada de trabalho (no Brasil, as mulheres trabalham em média 11 horas semanais a mais que os homens!), a gravidez e maternidade, além do assédio e a homofilia. O termo homofilia descreve o fato que homens preferem trabalhar, dirigir e publicar com homens, limitando a possibilidade de parcerias em trabalhos. Além disso, homens recebem maiores qualificações nos seus artigos quando revisados pelos pares e os corpos editoriais de revistas científicas costumam ter maior proporção de editores homens. Nas revistas de ecologia, só 16% do corpo editorial são mulheres. Todos estes fatores fazem com que as mulheres ocupem muito menos cargos de liderança nas ciências. Por exemplo, nos Estados Unidos menos de 30% do corpo docente em ciências biológicas nas Universidades é composto por mulheres. Além disso, em ambientes em que o machismo é normalizado há maior dificuldade para criar harmonia no ambiente de trabalho. Recentemente, mulheres cientistas latino-americanas exigiram uma mudança de postura aos comportamentos sexistas e de assédio reproduzidos pelos pares do sexo masculino. Tais atitudes e comportamentos impedem a capacidade das mulheres de progredir e desenvolver todo o seu potencial e contribuem notavelmente para a saída da carreira acadêmica.
Mas as mulheres não são a única comunidade sub-representada nas ciências. As populações negras e indígenas também têm dificuldades para entrar e se manter em uma carreira. Na América Latina, isso é resultado da herança colonial, que ainda está fortemente arraigada na nossa sociedade e se manifesta em uma forte desigualdade social, econômica e moral. Embora existam atualmente algumas políticas e iniciativas para incrementar a representatividade de pessoas negras e indígenas no ensino superior, a inclusão está longe de ser atingida. Por exemplo, em 2016 só o 17,6% dos 400 mil professores universitários brasileiros se autodeclararam negros. Segundo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), menos de 5% de todos os auxílios concedidos pelo órgão contemplam negras. Em 2016, o número de alunos indígenas ingressantes a educação superior cresceu 52,5%, mas só o 32,18% conseguiram terminar a faculdade. Esses dados ajudam explicar a baixa representatividade indígena na ciência. Vimos que existe uma desigualdade na inclusão de mulheres, negros e indígenas nas ciências, podemos perguntarmos por que é importante ter comunidades acadêmicas diversas. Comunidades científicas heterogêneas promovem maior diversidade de ideias e inovações, produzindo soluções parcimoniosas às questões que estão sendo pesquisadas.
Agora entendemos por que é importante falar de desigualdade na ciência, por que é importante garantir a inclusão e manter a diversidade e propor ações inclusivas. Pensando nisso, alguns membros de “Laboratório de Biogeografia da Conservação” (CB-Lab) da UFG preparamos um artigo científico no qual avaliamos o viés de gênero presente nas revistas de conservação da biodiversidade. Antes de ser submetido, pedimos uma friendly review à pesquisadora Bea Maas, da Universidade de Viena, na Áustria. Coincidentemente, Bea estava preparando uma carta para que as lideranças científicas mantivessem a diversidade perante a crise sanitária atual. Então, nós, algumas das mulheres do CB-Lab, fomos convidadas para fazer parte dessa chamada. Mas, por que relacionar igualdade de gênero, inclusão de comunidades sub-representadas com a pandemia da COVID-19?
Como sabemos, desde janeiro, a COVID-19 infectou a mais de 6 milhões de pessoas e causou quase 400 mil mortes em 188 países. Muitas regiões aderiram ao sistema de quarentena e/ou lockdown como estratégias para reduzir o impacto no sistema de saúde e evitar mais mortes. As universidades e grandes centros de pesquisa paralisaram ou estão redirecionando suas atividades para um sistema de ensino a distância, o que pode afetar desproporcionalmente cientistas em início de carreira. Habitantes de regiões com menores investimentos, como os países latinos e africanos deverão ser mais impactados. Só na América Latina, mais de 55% dos lares carecem de acesso à internet e no Brasil, mais de 70% dos estudantes das universidades públicas são de baixa renda. Como podemos imaginar, as populações mais pobres concentram uma alta proporção de negros e indígenas, pelo qual a educação dessas pessoas corre maior risco. Mas não só eles estão sendo afetados pela pandemia. As mulheres cientistas estão tendo maiores jornadas de trabalho: sobre elas recai o maior peso do trabalho doméstico e/ou cuidado de crianças, e portanto, estão dedicando menos tempo para estudar e adiantar suas pesquisas. Então, as minorias que vivenciam discriminação de gênero, orientação sexual, étnica e portadores de necessidades especiais, tradicionalmente excluídas de posições acadêmicas e de liderança, perderão ainda mais oportunidades de carreira.
Por esse motivo, 19 pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições, incluindo cinco pesquisadoras do CB-Lab, fizemos um chamado aos líderes científicos na carta "Academic leaders must support inclusive scientific communities during COVID-19" (Os líderes acadêmicos devem apoiar comunidades científicas inclusivas durante a COVID-19, em português), recentemente publicada na importante revista Nature Ecology and Evolution. A carta chama a comunidade científica para um esforço coletivo e ordenado para garantir a diversidade, equidade e inclusão durante a pandemia. Como vimos, é crucial manter a diversidade nas comunidades acadêmicas para obter soluções parcimoniosas. No entanto, a lacuna existente na (in)equidade de gênero, orientação sexual, étnica/racial e regional pode se tornar ainda maior por causa da pandemia. Superar esses problemas torna-se ainda mais desafiador quando assumimos as diferentes realidades sociais, econômicas e culturais, principalmente agora com a crise sanitária.
Todas as figuras foram feitas pelo grupo de pesquisadoras para a divulgação do artigo original na "Nature Ecology & Evolution"
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